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Résumé

Esse artigo analisa os desafios e implicações da disjunção de duplo corpo (coletivo e individual) ocorrida na Tunísia e com os tunisianos no curso do fenômeno da migração turística que ocorreu durante a implantação da indústria do turismo no país. A reflexão dá atenção às experiências profissionais vividas por jovens tunisianos migrantes das regiões do interior que começaram a trabalhar no setor turístico da hospitalidade nas décadas de 1960 a 1990. O estudo dessas experiências ajuda a avaliar a amplitude da divisão nacional enraizada nesse fenômeno e de seus efeitos sobre os jovens, especialmente na imagem de si mesmos e de seu país. Para tal, o estudo se concentra em como eles vêem seus próprios corpos e o mundo ao redor, dadas as demandas e as condições de trabalho nas quais esses corpos tiveram que funcionar.

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Texte intégral

Introdução

“Ó, corpo meu, faça de mim um homem que sempre questiona!”
Franz Fanon

1Florescendo no rescaldo do esforço pela descolonização e acesso à independência por parte de vários países do sul durante as décadas de 1950 e 1960, o turismo internacional fornece um campo de estudo maduro para a análise das tumultuadas experiências históricas que marcaram esses países recentemente libertados do jugo colonial. As experiências merecem especial atenção porque expõem fraturas sociais, territoriais e corporais geradas pela implantação da indústria do turismo em espaço-tempos pós-coloniais frágeis e instáveis. É possível afirmar que essas fraturas são consequências de situações econômicas e políticas pertencentes a contextos nacionais e regionais muito específicos, porém, ecoando um contexto internacional mais amplo, geopolítico, que também estava sofrendo fraturas e desigualdades. É preciso lembrar que o contexto pós-Segunda Guerra Mundial, que testemunhou o crescimento do turismo internacional, foi marcado por relações internacionais de poder, provocando tensões e divisões agravadas após a Guerra Fria. Precisamos ter em mente as muitas formas de disparidade entre o Norte e o Sul, Leste e Oeste, os blocos ocidental e oriental, os países ricos e os pobres, as grandes potências imperiais e os países que ainda carregam o peso de seu passado colonial etc. Todas essas divisões penetram na política global do turismo internacional, de modo que o turismo se transforma em uma espécie de movimento de massa, para não dizer invasão, mobilizando um fluxo de turistas e investimentos na atividade turística vindos do “frio” e rico norte para o “ameno” – e pobre- sul. Emprestando a frase de Pierre Aisner e Christine Plüss (1983), “A corrida para o sol” viu seu apogeu durante esses anos de redescoberta do Terceiro Mundo e redefinição das relações políticas e econômicas entre as margens norte e sul do Mediterrâneo. A Europa dos “Trinta Anos Gloriosos” – as três décadas seguintes ao final da Segunda Guerra Mundial – estava à procura de novas “colônias”, desta vez para férias, uma vez que seus próprios resorts à beira-mar tornaram-se saturados na França, Espanha e Itália. O que se seguiu foi o surgimento de uma “dupla divisão” internacional, de trabalho e lazer, a qual beneficiou aos países ricos muito mais do que aos pobres. Ao exportar turistas e o capital necessário para a construção e, mais frequentemente que não, pela apropriação total ou parcial dos novos hotéis construídos nas novas colônias de férias, esses países emissores de turistas levaram embora a gigantesca parcela dos benefícios do investimento turístico (Turner, 1976). Neste processo, iniciou-se o que se poderia chamar de uma nova era de “recolonização turística” marcada, por um lado, por uma supremacia econômica e política ainda exercida pelos centros metropolitanos e, pelo outro, pelo contínuo estigma das margens como inferiores, meras ex-colônias – a partir de agora invadidas pelas multidões de turistas. Sobre isso, Dean MacCannell observa que “em nome do turismo, o capital e os povos modernizados foram enviados para as regiões mais remotas do mundo, mais longe do que qualquer exército jamais foi enviado” (1992, p. 1). Pela ausência de poder para confrontar essa demonstração de força, que estava longe de estar ao seu favor, os países do Sul recém-descolonizados viram-se divididos entre o desejo de ser, definitivamente, libertados de todo domínio colonial e a necessidade de atender aos incessantes desafios da construção dos “novos” Estados pós-coloniais. Visto através de um prisma de vantagens às quais poderia trazer em tais contextos, principalmente na forma de moedas estrangeiras, criação de novos empregos e instalação de novas infraestruturas urbanas e econômicas, o turismo foi visto como uma maneira de superar o dilema. Organismos internacionais como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) reforçaram esse ponto de vista com suas imagens do turismo como o “passaporte para o desenvolvimento” (de Kadt, 1979), como coloca o título de um livro, publicado em nome de ambas instituições.

  • 1 As costas não agregaram apenas a indústria turística. Infraestruturas industriais de grande importâ (...)

2A Tunísia pós-colonial é um daqueles países que acreditou no turismo como a panaceia econômica definitiva, conforme prescrito pelo grande discurso desenvolvimentista proveniente dos anos sessenta e setenta. Isso foi ainda mais significativo pois os líderes políticos da época, expressamente o ex-presidente Habib Bourguiba, enxergaram assim um caminho – para não dizer um atalho – para reconstruir os vínculos geopolíticos e geo-históricos com a Europa e, por extensão, elevar a Tunísia à posição dos países desenvolvidos, como tantas vezes foi repetido na mídia da época. A esse respeito, a construção dos primeiros resorts à beira-mar, logo após a independência, foi promovida pelo Estado pós-colonial como uma conquista de grande, e estratégica, importância. E não apenas porque deram ao país uma fachada à beira-mar que sugeria um amplo convite à Europa, dando as boas-vindas quase, exclusivamente, a turistas europeus, mas também porque eles constituíram, ao menos aos olhos do Estado, uma das ações concretas sinalizando a entrada do país na era do progresso e da modernização, na mesma linha que a libertação das mulheres e a proibição da poligamia. Vale a pena notar, a propósito, que o turismo na Tunísia, embora venha sendo, de fato, um fator importante que contribui para a mudança no contexto pós-colonial, não foi o único. No despertar de sua política de abertura de portas para a Europa, o país acolheu os investimentos industriais implantados não muito longe das zonas turísticas.1

3Seja como for, a propaganda política em conjunto com a promoção turística nacional e internacional muitas vezes retratava o país como um paraíso duplamente liberado: do jugo do colonialismo e do legado do oriente. Esse paraíso moderno e idílico atraiu não apenas turistas, mas também jovens tunisianos da época: os primeiros para aproveitar o sol e o mar para recarregar suas baterias durante o ano, os segundos para encontrar trabalho, na maioria das vezes, como garçons mal pagos nos hotéis recém-construídos ao longo da costa, daí os desapontamentos ou, para ser franco, a miséria que eles suportaram na linha de trabalho, como explorados. Neste artigo, concentro-me na desilusão desses jovens trabalhadores, mais particularmente daqueles que migraram de regiões do interior para as zonas costeiras turísticas esperando por acesso a esse paraíso, o qual chocaram-se ao descobrir ter se tornado em um inferno. Como ficará claro mais adiante, estudo essa desilusão recorrendo a um neologismo, a bio-hospitalidade; isso me permite analisar o aspecto de “adestramento” do corpo a que esses funcionários passaram no curso de seu aprendizado para o papel de garçom. Conforme Foucault (1997), o corpo é assim encarado como a subestrutura, na verdade, a base que cristaliza as experiências de subordinação e (in)subordinação, o local da fratura individual e coletiva e o espelho das divisões nacionais e internacionais. Mas antes de empreendermos essa etapa da análise, vamos definir o cenário com algumas recapitulações.

4Recém saída de sua independência em 1956, a Tunísia se viu em uma saga turística que a transformou completamente, para melhor ou para pior. Para melhor, o turismo beneficiou muito a economia do país, ou, mais exatamente, a economia de algumas de suas regiões – isto em um contexto pós-colonial marcado por todo tipo de insatisfação em meio ao claro desafio da descolonização política, econômica e sociocultural . Para pior, a escolha do jovem Estado naquela época de focar no turismo à beira-mar, mais especificamente um turismo fundado em uma hospitalidade baseada na construção de hotéis na costa, o turismo atolou o país em um desequilíbrio regional, uma disparidade econômica além da urbana-rural, uma disjunção entre as várias regiões costeiras recentemente transformadas por esses hotéis e o interior tomado como um todo, marginalizado de qualquer mudança ou progresso.

5Pior ainda, a instalação de redes hoteleiras pela extensão da costa formou, ao longo dos anos, uma linha de demarcação que divide o país em dois campos hostis. O primeiro, composto essencialmente por zonas turísticas, ostenta a fachada de um resort à beira-mar. Aparenta ser moderno, adorável, desenvolvido e abastado. O segundo, que se esconde nas “zonas opacas”, aparece para trás, retraído, tornou-se em uma palavra, pobre (Saidi, 2017, 2014). Essa di-visão, que contagiou a imaginação coletiva dos tunisianos desde aquela época até o presente, deixou o país com uma personalidade dividida, na qual uma parte da identidade, perturbada, ferida, fraturada, reflete principalmente aqueles que vivem no interior. Presos nessa imagem, estes se veem deslocados, separados – não apenas como um corpo político e social, mas cada um em seu próprio corpo puro e simples – o que se torna ainda mais significativo porque a pobreza e o desemprego, abundantes em suas regiões, os levam a migrar às zonas turísticas na esperança de melhorar suas situações. Essa peregrinação fornece à indústria da hospitalidade uma fonte inesgotável de mão-de-obra barata, acelerando ainda mais o êxodo rural já em andamento e alimentando o fenômeno da migração turística.

I. Literatura, Metodologia e Contexto da Pesquisa

6Embora não seja abundante, a pesquisa sobre a força de trabalho do setor de hospitalidade passou por um certo crescimento recente, principalmente em torno de alguns temas específicos nesse setor. Referimo-nos, entre outros, aos conjuntos de habilidades e papéis desempenhados pelos funcionários de hotéis (Sonlet et al., 2015), seus níveis de satisfação no trabalho (Lam et al., 2001; Zopiatis, 2015), condições de trabalho do hotel ( Okumus et al., 2018; El-Said, 2013; Meian-Gonzalez and Bulchand-Gidumal, 2017; Lee and Ok, 2015), relações com a clientela do hotel (Tuzun and Kalemci, 2018, Karatepe et al., 2009). A questão do corpo também foi abordada como um tema, porém, na maioria das vezes, sob o disfarce do “visual” ou aparência do funcionário procurado pelos empregadores dos hotéis (Hopf, 2018; Knezevic et al., 2015, Abubakar et al., 2019).

7Minha reflexão neste ensaio segue o mesmo sentido desses estudos. No entanto, é mais atenta ao que estou chamando de deslocamento, disjunção ou mesmo desmembramento do corpo duplo (individual e coletivo) do empregado do setor da hospitalidade. Esse deslocamento, proveniente das separações territoriais e sociais induzidas pelos excludentes locais da atividade turística, é ainda mais evidente por causa das condições de descolonialidade – política, sociocultural e até epistemológica (Mignolo, 2015; Mencé-Castor e Bertin-Elisabeth, 2018; Hollinshead, 2008, 1998). Tal deslocamento ou ruptura resulta, também, de lutas nas relações de poder ou desigualdades em jogo no corpo social e territorial, como retrabalhadas pelo turismo. Aqui recorro à Foucault (1997) ao propor o neologismo da bio-hospitalidade como um conceito para estudar a “governamentalidade” do corpo resultante do encontro entre as “tecnologias de dominação” das instituições hoteleiras e as “tecnologias do eu” (Foucault, 1997, 1994) que se desenvolveram entre os trabalhadores dos hotéis. O desequilíbrio regional vivenciado pelos trabalhadores será visto através das lentes da hospitalidade corporal – a “anatomia da hospitalidade” em um sentido bastante literal – a saber, os métodos pelos quais os processos de poder em toda a indústria turística manipulam os corpos de seus funcionários em ativos, na verdade, máquinas de produção de hospitalidade.

8No aspecto metodológico, o artigo se assenta em uma metodologia qualitativa em virtude de entrevistas com cerca de vinte profissionais do turismo, especificamente, garçons de hotéis. No entanto, neste artigo estou me limitando a apenas alguns deles, aqueles cujas histórias foram mais desenvolvidas, mais contundentes, na medida em que são representativas das outras. Todos eles vieram de áreas remotas do interior, como Jendouba, Le Kef, Kasserine, Sidi Bouzid, Kairouan, Gafsa, e migraram para o litoral em busca de um pequeno trabalho sazonal no campo turístico. Todos eles também são homens, que possuíam entre 15 e 20 anos quando começaram neste meio nos anos 1960, 70, 80 ou 90. A ausência de mulheres é explicada por uma questão sociocultural de gênero, mais especificamente religiosa: naquela época era inconcebível, socialmente inaceitável, que houvessem mulheres trabalhando como garçonetes em bares ou restaurantes servindo álcool. Lembre-se de que até as cafeterias, no mundo árabe islâmico, eram reservadas exclusivamente para homens, mesmo que não servissem álcool. Não foi antes dos anos 1990 e novamente nos anos 2000 que as mulheres começaram a frequentar cafeterias e certas zonas chiques das grandes cidades árabes e que se começou a ver mulheres assumindo a função de garçonetes. Voltando aos nossos jovens garçons, observe que os mais velhos entre eles começaram como aprendizes com 10, 12 ou 14 anos, abandonando a escola. Quase todos começaram com trabalhos pequenos, como carregadores de bagagem ou garçons – alguns até começaram na construção dos locais de futuros hotéis – e depois ascenderam nos degraus da profissão, ganhando habilidades no trabalho e conseguindo um emprego melhor remunerado.

9As entrevistas realizadas com eles assumiram uma forma abrangente (Kaufman, 1996) e foram baseadas em suas próprias narrativas da carreira (Berteaux, 2003; Delory-Monberger, 2009). Eles focaram nas experiências mais marcantes de sua vida profissional, mas também foram propelidos por um desejo de olhar para trás e adiante, para o próprio turismo tunisiano. Eu conheci esses veteranos locais da indústria turística no despertar da Revolução, ou seja, de 2011 a 2014. De repente, libertos da ditadura e varridos pelos ventos da liberdade, os tunisianos se engajaram em um debate estridente que mobilizou, mais ou menos, a todos e quase evitou mergulhar a opinião pública em uma espécie de delírio coletivo. Pode-se também dizer que na Tunísia pós-revolucionária, o debate – turismo, liberdades individuais, democracia, justiça transicional, religião, véu, niqab, franco-atiradores, corrupção na família Trabelsi etc. – se tornou o esporte favorito, uma vez que as vozes foram libertadas e o gosto pela liberdade adquirido.

10No entanto, o turismo ocupou um lugar de destaque na arena deste debate. Ele não apenas havia sido levado à crise pela conseqüente instabilidade do país, mas agora havia liberdade para falar sobre isso! – Diferentemente do período ditatorial – e se tornou um dos assuntos mais agradáveis. É preciso lembrar que durante o antigo regime, havia sido praticamente proibido falar em público sobre certos assuntos como o turismo, que era concebido como um tabu, se não um segredo de Estado, especialmente no que diz respeito aos rendimentos gerados, os clãs de oligarcas que dominavam a atividade e, consequentemente, a corrupção gerada. Assim, discutir sobre turismo nessa atmosfera pós-revolucionária era como um ato de libertação, convidando os tunisianos a reapropriarem não apenas o direito de falar sobre isso, mas também sobre a fortuna que representava para o país e que havia sido a eles negada. Nesse sentido, o tema do turismo foi abordado não apenas como um setor da economia que, tal como a economia, estava em crise, mas também como um depósito de riqueza a ser redistribuído igualitariamente, uma parte do país a ser recuperada por todos os cidadãos. Em outras palavras, o turismo passou a ser considerado sob a perspectiva de um modelo de três lados: econômico, social e político, a ser redefinido e refeito, um projeto coletivo, uma causa nacional, permitindo a todos expressar suas opiniões sobre o estado atual e futuro do país, assim como sobre a imagem que o turismo reflete de si e projeta para os outros. Além da riqueza das experiências reveladas através das entrevistas estudadas no meio deste debate nacional, o interesse reside nos vínculos que elas fazem entre os períodos pós-colonial e pós-revolucionário. Seja apontando as falhas do sistema em que cresceram ou descrevendo a gênese do turismo tunisiano como uma era de ouro agora quase derrotada, os profissionais com os quais conversei frequentemente se alternavam, ainda que não explicitamente, entre essas duas temporalidades. Seus discursos reverberaram com as paixões e sentimentos que marcaram os dois períodos: as tensões, as frustrações, as incertezas, a esperança, a euforia, o patriotismo, a relação de amor e ódio com o turismo, a indignação contra o sistema etc. É bastante significativo que a chamada Revolução da Juventude ou Revolução de Jasmim os lembrou de sua iniciação, no primeiro momento da juventude, em uma carreira em que eles sonhavam que os levaria ao paraíso, construiria seus futuros e contribuiria para a reconstrução de sua terra natal.

II. Do ensino médio ao hotel: a peregrinação dos “Amaldiçoados do Mar”

11Os quatros centros de férias no topo da lista dos mais frequentados, atualmente, na Tunísia, e que recrutam a maior força de trabalho do setor turístico, surgiram nas décadas de 1960 e 1970. São, essencialmente, complexos hoteleiros, construídos, geralmente, em tempo recorde e implantados em quatro regiões costeiras mais ou menos equidistantes, indo de norte a sul: a região de Tunis e seus subúrbios, notadamente La Marsa e La Goulette; a região de Cap-Bon, a nordeste, mais precisamente as cidades de Nabeul e Hammamet; a região do Sahel, onde se encontram duas cidades, Monastir e Sousse, onde mais tarde foi acrescentada Mahdia; e, finalmente, a região do sudeste, quase exclusivamente a ilha de Djerba e a área de Zarzis. Desde os anos 80, a região de Tabarka, no noroeste, gerou um novo “nó” à beira-mar ainda lutando para conseguir atenção, apesar de possuir uma aeroporto internacional.

12Em todas essas regiões, a construção de hotéis é tão densa e efervescente que os habitantes que sempre viveram lá não conseguem mais reconhecer seu próprio espaço. Tomemos o exemplo do Sahel, região de Sousse e Monastir. De 1962 a 1976, Monastir viu a construção de duas vezes mais hotéis do que o resto do país: “enquanto o número de hotéis no país se multiplicou por quatro, em Sahel o crescimento foi de mais do que 700%, passando de 5 a 41 unidades” (Sethom e Kassabm 1981, pp. 316-317). O mesmo se aplica à ilha de Djerba, antes de 1960, que possuía apenas dois pequenos hotéis. Em 1961, uma cadeia de hotéis foi construída ao longo da costa a cada 10 quilômetros, o que resultou em 150 quilômetros em menos de dez anos (Mzabi, 1978, p. 33). Sem mencionar, é claro, toda a infraestrutura agregada para servir e a serviço do novo dínamo turístico, como estradas pavimentadas, redes de eletricidade, purificação da água e linhas de abastecimento de água potável, ou seja, todos os serviços de infraestrutura que faltavam, e ainda faltam, nas cidades tunisianas fora das zonas turísticas.

13Dessa forma, é nesse contexto – um “boom” hoteleiro sem precedentes, porém, confinado em algumas zonas costeiras da Tunísia – que a migração relacionada ao trade turístico começou. Indo do que se poderia chamar de “Tunísia da Terra” para “Tunísia do Mar”, isso relacionava-se majoritariamente a jovens meninos, muitos dos quais deixaram as carteiras escolares para encontrar pequenos trabalhos sazonais em uma dessas zonas. Sobre essa questão, Mzabi aponta que em 1966 quase metade “dos funcionários nos hotéis de Djerba têm entre 15 e 24 anos” (1978, p. 50). O autor observa que a maioria destes é originária de áreas rurais remotas e que suas escolaridades não haviam avançado além do primeiro ou do segundo ano do ensino médio, principalmente entre os mais velhos. Assim, “em várias situações, é o ensino médio que está ameaçado pelo hotel” (Mzabi, 1978, p. 52).

14O perfil mais comum dos funcionários de hotel que entrevistei corresponde, grosso modo, a essa observação da ilha de Djerba e, sem dúvidas, corresponde a outros destinos, sendo bastante provável que os mesmos funcionários frequentemente mudem entre diferentes locais por uma série de razões. Vários dos que conheci explicaram que conseguiram migrar para as cidades turísticas graças a ajuda de parentes que já estavam lá e que lhes ofereceram a chance de morarem juntos enquanto procuravam emprego. Em outras palavras, esse tipo de migração “turística” não está ao alcance de todos. A chance de ter um parente ou conhecido no local, da mesma região de origem, torna-se uma espécie de pré-requisito para o teste de entrada nesta “nova” Tunísia, até então praticamente inacessível para este futuro “amaldiçoado do mar”, parafraseando Fanon (1961). Muitas vezes, é um irmão, uma irmã, uma tia ou um tio que fez a migração anteriormente, para Tunis, Sousse, Djerba ou Hammamet, e para quem as tradições familiares de auxílio e orientação obrigam tal acolhimento de parentes próximos, geralmente no verão com o objetivo de explorar possibilidades de treinamento ou trabalho no lugar. Uma vez agregado, o jovem tenta, sempre com a ajuda de seu parente, aproveitar as oportunidades. Sem dominar o funcionamento interno da procura por empregos em um meio desconhecido, ele pode ficar vagando entre uma agência de empregos e o “wasta” (mediador ou “pistão”, em árabe) contatados com antecedência pelo parente ou, ocasionalmente, batendo nas portas dos estabelecimentos hoteleiros, ou até se apresentando diretamente nas obras do hotel em construção. Nesse caso, trabalhar no local ainda em obras pode favorecer o recrutamento posterior no hotel, quando aberto. De fato, frequentemente os estabelecimentos hoteleiros contratam trabalhadores desse tipo, para trabalhar, alternadamente, no hotel e no canteiro de obras, o que lhes permite pagar menos do que teriam que pagar a outros funcionários qualificados.

  • 2 Pseudônimos foram usados no lugar dos nomes reais.

15Hammouda2, um garçom de aproximadamente 50 anos, era um deles. Ele começara sua carreira trabalhando na construção do hotel. Eu o conheci em Yasmine Hammamet, onde ele havia trabalhado por cerca de dez anos como gerente de um restaurante no local. Ele me contou a história de sua jornada, narrada com bastante eloquência e emoção nos pontos altos, deixando claro o que achava ter aprendido com ela. Originalmente de uma pequena vila entre Sfax e Sidi Bouzid, a qual ele preferiu não nomear para evitar ser identificado por certas pessoas, essa é a história anedótica de sua entrada no mundo do turismo. No final dos anos 80, quando ainda estava no quinto ano do segundo grau escolar, ele se juntou ao irmão mais velho, que era o supervisor das obras de um renomado hotel em Djerba, para trabalhar nas férias de verão.

16Um dia, o dono do hotel que visitava periodicamente o local, notou sua falta de habilidade com a pá e mencionou o fato com seu irmão, o supervisor. Angustiado, este explicou ao seu chefe que o trabalhador em questão não era ninguém menos que seu irmão mais novo, trabalhando pela primeira vez em sua vida enquanto ainda estava no ensino médio. “E essa foi a fórmula mágica que me levou a este meio para sempre”, conta Hammouda. “O patrão contou ao meu irmão que estava procurando estudantes, como eu, para formar uma nova equipe de funcionários para o novo hotel que abriria em alguns meses. Então, ele perguntou ao meu irmão se eu gostaria de me juntar à equipe. Eu não podia acreditar; era bom demais para ser verdade! Como um sonho. No mesmo momento, aceitei a oferta que meu irmão me repassou. Sem hesitação”.

  • 3 Isso correspondia a 600 euros, o que não era uma quantia desconsiderável na época.

17O jovem aprendiz de obras logo se tornou aprendiz de garçom antes de se tornar um, efetivamente, alguns anos depois. Em apenas alguns dias, o irmão mais velho e o patrão fizeram um acordo para registrá-lo em uma escola de turismo onde ele estudaria por dois meses. O treinamento, que custou 2.0003 dinares e foi pago integralmente pelo hotel foi realizado por professores tunisianos e franceses e consistiu em preparar Hammouda e outros jovens homens de sua idade, para trabalhar no restaurante assim que inaugurasse. “Pense nisso, um camponês como eu, que nem sabia como colocar facas e garfos, se vê, de um dia para o outro, envolvido no lançamento de um restaurante em um hotel luxuoso”, ele me contou. Ele estava ainda mais orgulhoso de aprender, intensivamente, novos idiomas, como alemão, e outras coisas, às quais chamou de “le savoir-vivre” – boas maneiras, etiqueta, refinamento, em uma palavra, classe.

18Tal expressão, “le savoir-vivre”, que esteve presente em quase todas as falas dos funcionários que conheci, resume uma visão, quase uma filosofia de vida, que eles acreditavam ter adquirido graças aos contatos com estrangeiros e a abertura para outras culturas. Eles ilustram essa situação por meio de comparações de como se comportavam e como encaravam o mundo antes, e depois, da experiência no mundo do turismo. “Eu era muito nervoso antes deste trabalho; agora eu desenvolvi um sangue frio. Me sinto verdadeiramente à vontade, não importa a situação na qual me encontro”, declara um deles. “Eu não levava as aparências muito a sério antes deste trabalho e notei que mudei no decorrer de minha carreira”. “Eu posso até dizer que me comunico por aparências: minhas e de meus clientes”, confirma outro. “Graças a minha carreira, minha maneira de enxergar outra pessoa mudou enormemente e é muito melhor, mais positiva. Eu posso respeitar a opinião do outro sem dificuldades, até mesmo quando não a compartilho, o que, certamente, não era o caso anteriormente”, acrescenta um terceiro.

19A partir do discurso desses diferentes informantes surge a ideia de que savoir-vivre e savoir-faire são dois lados de uma mesma moeda, de forma que ambos dependem de técnicas e habilidades, do “saber fazer” adquirido durante o triplo aprendizado na escola, experiência no trabalho e interações com o meio profissional. Adquiridas, enriquecidas e renovadas ao longo dos anos, essas técnicas e habilidades permitem ao funcionário desenvolver sua própria visão, sua maneira de olhar para os outros e para si, e revisar sua própria visão de si; elas o levam a aumentar sua capacidade de agir dentro de seu ambiente. Simples e concretos, os exemplos testemunhados por Hammouda nos ajudam a entender melhor a aquisição dessas experiências.

20De acordo com ele, “le savoir-vivre” vai além do simples fato de saber fazer “flambé ou como organizar as facas, seja no estilo francês ou no russo (...)”. Diz respeito, muito mais, ao entendimento da cultura do outro e ao domínio de certos códigos para não ofender os clientes quando, afinal, eles deveriam estar se divertindo, tendo um bom jantar, por exemplo. “Desde o começo, nos ensinaram a nunca colocar a caixa de palitos de dente na mesa quando os clientes fossem ingleses, porque, para eles, isso significa má sorte. E, com os turistas franceses, você deve evitar usar o número 13 [...] tudo isso me assustou no início, mas ficou mais fácil com o tempo. Como idiomas. O primeiro é sempre mais difícil de aprender, os outros vão ficando mais fáceis e assim por diante”.

III. Os garçons podem, finalmente falar?

21Além da aprendizagem sobre os códigos culturais apropriados para outras sociedades, o savoir-vivre envolve um compromisso de trabalhar a por si próprio. Retomando Foucault novamente, o trabalho em questão toma o corpo como seu objeto. Envolve incorporar regras de conduta social e profissional por meio de preparar ou educar o corpo com as técnicas do trabalho – com efeito, adestramento – e abrir caminho para a disciplina da auto-atenção e autocontrole. Em outras palavras, o treinamento formal e informal desses jovens trabalhadores do mundo hoteleiro não é nenhum outro do que um aparato de poder no sentido foucaultiano. Inculta gestos e orientação física até que se tornem uma segunda natureza para esses jovens funcionários, garantindo, por sua vez, uma bio-hospitalidade adaptável ao bem-estar e satisfação da clientela turística.

22Você aprende até como se comportar em diferentes situações nas quais pode encontrar-se com clientes”, continua Hammouda, demonstrando seu ponto com mais exemplos. “Em todos os casos, você deve prestar atenção em seu corpo durante o trabalho. Você deve evitar se coçar, por exemplo, na presença de clientes ou debruçar-se sobre eles ao servir, de maneira que que eles possam sentir suas axilas ou seu hálito”. Sobre isso, ele comparou o hotel onde trabalhou pela primeira vez, em Djerba, com uma escola única, até um quartel. Os funcionários de seu nível eram submetidos a uma rotina regrada, da mais rigorosa disciplina, vinculada a uma ordem estrita. Revendo alguns detalhes dessa disciplina, ele contou como, antes de entrar, cada funcionário precisava passar pela lavanderia e pegar seu uniforme de trabalho de “dois pares de sapato, dois pares de calças, duas camisas, dois casacos, uma toalha e um xampu”. Então, o funcionário ia ao banheiro aparar a barba e tomar banho. Ele devia se apresentar 30 minutos antes das instruções da manhã. “E isso não é tudo”, lembra Hammouda. “O diretor da sala de jantar nos colocou em fila, cheirou nossas axilas, verificou quais dos nossos sapatos precisavam ser polidos, nossas unhas, nossa barba e, depois, nos testou sobre o menu”.

23Hammouda estava claramente orgulhoso ao recordar todas essas regras aprendidas há mais de 20 anos. Eles foram carregados de importância; eles mudaram sua maneira de ser, sua forma de se ver no trabalho e além do trabalho. Em sua opinião, o fato de começar a trabalhar jovem tornara mais fácil se sujeitar às regras que o obrigavam a cuidar de seu corpo, às quais, ao longo dos anos, tornaram-se “reflexos e características” de sua personalidade, como ele tentou explicar em árabe.

24Essa disciplina havia infundido nele um desejo de tratar seu corpo como um objeto precioso, que lhe dava prazer admirar e tê-lo admirado pelos outros. Ele havia desenvolvido essas “tecnologias do eu”, para emprestar novamente Foucault, tornando-se, gradualmente, consciente de que seu corpo era um teatro, o palco no qual ele apresentava seu novo eu como um jovem homem, elegante, sedutor, passível de receber os cuidados mais requintados, como convém a uma obra de arte. “Eu tinha apenas 18 anos nesse momento e estava tão cheio de mim mesmo que não me reconhecia mais. Lembro de mim, olhando no espelho e dizendo: Oh! Hammouda, onde você estava antes de se tornar seja lá o que é agora? Corrente de ouro em volta do pescoço, um valioso pingente em perfeita evidência no decote aberto da camisa, anéis e braceletes, meus sapatos e minha roupas eram os melhores da época, eu aluguei um carro todas as vezes que fui para casa, pelo menos uma vez por mês, e assim por diante”.

25Para funcionários como Hammouda, a bio-hospitalidade combina a tentativa da submissão às regras impostas de fora por uma instituição detentora de poder correlacional, neste caso, o hotel, com o prazer de redescobrir a si mesmo dominando a arte do próprio corpo. Em outras palavras, a bio-hospitalidade simboliza a ambivalência do trabalhador em relação, por um lado, à exigência de expropriar e obliterar a si mesmo em seu corpo diante do chefe ou dos clientes e, por outro lado, a chance de florescer e “sair de si mesmo”, remodelando seu relacionamento com si. Essa separação, entre o corpo eclipsado e o corpo em expansão, torna-se ainda mais difícil de viver porque opera diante de um terceiro corpo, o original, com o qual o jovem chegou da região de onde veio.

26Em resposta ao meu questionamento sobre como se sentia ao voltar para casa, quando fazia visitas, e era visto pelas pessoas com seu novo “visual”, às quais ele havia descrito antes, Hammouda começou a suspirar profundamente. Ele disse que estava feliz de voltar para sua cidade natal periodicamente, mas, ao mesmo tempo, sentia-se pouco à vontade ao ver os jovens de sua idade continuarem a sofrer com o desemprego e a privação: “Suas roupas, a pobreza, lembravam-me de minha vida antes, e me sentia terrivelmente triste por eles, especialmente quando percebi que não poderia ajudá-los”. Ele me disse que se sentia impotente cada vez que alguém de sua vila implorava por ajuda para conseguir trabalho no hotel. Isso o deixava triste, não apenas porque ele não podia ajuda-los, mas porque sentia que seu visual zombava deles e os ofendia.

27A sequência de eventos que mais o afetou foi a que ocorreu com um amigo íntimo de sua família, chamado Mokhtar, que administrava a agência de correio. Este veio até Hammouda para pedir a ele que encontrasse um emprego para seu filho no setor de turismo, pressionando-o a fazer isto “o mais rápido possível e com um bom salário”. Conhecendo o menino, que mal tinha 16 anos, Hammouda julgara que este não estava preparado para o estresse desse tipo de trabalho “nem fisicamente, nem psicologicamente”. Ele o achava um tanto frágil e longe de estar pronto para atuar em um trabalho “tão árduo e, às vezes, humilhante”, contou-me, com a voz embargada. E, então, continuou: “Eu disse a ele, veja, Am Mokhtar (tio Mokhtar, em árabe), se quiser o meu conselho, nós somos pessoas dessa região, não temos estômago para esse tipo de trabalho. Não se deixe seduzir pelas aparências, eu estou bem vestido e aluguei um carro, certamente, mas você e seu filho concordariam em lavar a louça? Eu sei que seu filho não poderia. No dia seguinte, ele se recusou a falar comigo. Então, ele fez meu pai intervir – meu pai que nunca soube, até o dia de sua morte, o que eu realmente fazia em minha carreira. Minha resposta foi a mesma. Tio Mokhtar, então, optou por matricular seu filho em uma escola particular de turismo. Isto lhe custou 5.000 dinares, mas foi em vão, porque o jovem, tendo encontrado um emprego como o meu em Djerba, teve que abandoná-lo depois de apenas um dia, pois não suportou”. A dor e a frustração que Hammouda sentiu com essa história, claramente, ainda o afetava, como sua voz e sua postura mostraram. Quando falava dos momentos felizes de sua entrada na carreira do turismo, ele estava cheio de entusiasmo e exuberância juvenil, mas agora, de repente, estava curvado, sufocado, distante. Parecia um outro homem, alguém cuja autoestima havia abandonado. De fato, suas palavras, que um momento antes, saíram dançando de sua boca, cravejadas com joias e roupas elegantes, exatamente como o retrato do jovem homem que eles memorizaram com tanto orgulho, foram, de repente, desnudadas, despidas de toda satisfação. O mesmo aconteceu com os seus gestos e comportamento antes e depois de contar essa história. Pela alegria, abertura e juventude que havia colocado em suas palavras anteriores, nas mãos e em todo o corpo, tremulando como uma chama, ele parecia, agora, se desintegrar em amargura, mágoa, sua língua mal conseguindo falar, suas mãos mal conseguindo se soltarem.

28Esse desconforto, quase como uma ferida íntima, era parte da tensão interior que parecia habitar em todos esses trabalhadores. Embora possa variar de um homem para outro, ela sempre ressurgia todas as vezes em que eram levados a evocar o contraste entre o que eles tinham antes, durante e depois da experiência no turismo, ou entre as condições de vida em suas regiões de origem e a vida nas zonas turísticas. Daí a tendência em afundarem-se nesse sombrio estado de “bio-desencanto” ou negação de si mesmo, testemunhado da forma como falou Hammouda: um desencanto que acontece na fronteira entre dois outros estados, entre ver a si como uma corporeidade bem desenvolvida, próspera, digna de uma obra de arte, e ver-se desintegrar quando colocado sob o teste de uma certa realidade, essa mesma corporeidade afundando como um castelo de areia alcançado pelas ondas de um passado que se recusa a passar.

IV. Duas identidades irreconciliáveis

29Um colega de trabalho de Hammouda, da mesma zona turística de Yasmine Hammamet, Najib, também trabalhou lá por mais de 20 anos. Ele veio de uma das zonas rurais de Sakyat Sidi Youssef, na fronteira da Tunísia com a Argélia, mas costumava viajar regularmente para Tunis, com o intuito de visitar sua irmã que vivia lá desde os anos 1970. No final dos anos 80, não obtendo seu grau no ensino médio, ele se matriculou em uma escola de treinamento em turismo, em Sousse, e depois trabalhou como garçom em hotel por sete anos, ganhando o posto de chefe na função. Como a maioria de seus colegas, ele alega gostar do turismo, mas, na verdade, não concorda com a política do turismo de seu país. De seu ponto de vista, vindo de uma família de agricultores, o turismo não fez nada além de prejudicar a agricultura, quando deveria sustenta-la, diversificando os recursos turísticos do país. “Pior ainda”, ele diz, “o turismo corre o risco de comprometer o futuro da agricultura na Tunísia”. “Você se pergunta, como estará a agricultura daqui a alguns anos, quando escutar que a água é espoliada das reservas do interior para estar disponível nos hotéis, nos campos de golfe, nas piscinas etc?” A esse respeito, ele considera que as regiões do interior são as perdedoras na redistribuição de riqueza que foram colocadas em vigor com o advento do turismo e no novo modelo de desenvolvimento que se configurou depois da Independência: “As regiões do interior dão à costa mais do que recebem em retorno. Elas fornecem produtos agrícolas, água, mão-de-obra barata e não recebem nada em troca. Pior, elas têm se tornado ferramentas do turismo: os pobres agricultores do interior têm visto o preço de sua produção despencar com a crise do turismo, desde a Revolução”.

30Assim, Najib denuncia a desintegração do corpo social e territorial do país, resultante desse desequilíbrio entre as regiões. A discrepância econômica entre as regiões é parte de um desmembramento orgânico e psicológico, o qual leva funcionários como ele a viver uma alienação dupla; eles não sentem que pertencem a nenhuma das duas desiguais partes do país. Veem-se fatiados e presos entre dois impossíveis: a impossibilidade de se reconhecer na Tunísia do mar e a impossibilidade de voltar e se refazer na Tunísia de terra. “Estou dividido entre o camponês que ainda sou e o garçom que me tornei. Sim, eu continuo me considerando um camponês, ainda trabalho a terra com meu pai; mas, não me sinto enraizado lá como antes. Acho isso empobrecedor porque não possui a capacidade de me manter lá e nem de manter todas essas pobres pessoas que estão tentando ir embora. E eu gosto do meu trabalho no turismo, pois foi ele que possibilitou que eu construísse duas casas no campo, onde nasci. Mas não consigo me reconhecer na imagem que o turismo fez de nós, da Tunísia e dos tunisianos”.

31Entre todos os trabalhadores do hotel que conheci, Jilani é o estadista mais velho. Ele possuía mais de sessenta anos, mas continuava trabalhando. Jilani se apresentou como um dos encarregados das atividades de lazer em uma embarcação recreativa, detendo o posto de capitão dentro da hierarquia observada na marina de Hammamet, onde o conheci. E, de fato, ele usava um uniforme azul marinho com uma boina preta na cabeça. Contou-me sobre o início de sua carreira na década de 1960, quando seu pai decidiu interromper seus estudos e confiá-lo à um amigo que era dono de um hotel em Sousse, para que Jilani pudesse ter um emprego. Originalmente do interior de Kairouan, ele se viu longe da família, aos dez anos, em uma cidade que não conhecia, sem, sequer, ter tido a chance de obter seu diploma na escola primária. Embora estivesse ciente do rigor da experiência, ele estava orgulhoso com ela e dizia estar totalmente satisfeito com sua trajetória de vida, em particular com as habilidades que adquiriu. Ele enfatiza as sete línguas que aprendeu nos primeiros cinco anos. “Foi difícil, tive que trabalhar ao mesmo tempo que acompanhava esses cursos informais de meu “mestre”, que era, ninguém mais, do um colega mais velho que, simplesmente, se ofereceu para ensinar os idiomas que aprendera no trabalho. Ele me disse para escutar cuidadosamente os turistas quando falasse e transcrever o que havia escutado em uma folha de papel usando letras árabes, porque não conhecia as latinas. Ou então, ele escreveria dez frases da mesma maneira e me pediria para aprendê-las em um dia e, se eu não fizesse ou não conseguisse, ele me puniria batendo em minhas mãos com um bastão. E isso tudo funcionou: um golpe para cada frase que não aprendi”.

32Apesar dessas punições, às quais, claramente, ele recebeu diversas vezes, Jilani alegou uma grande dívida de gratidão a esse “mestre” que havia lhe passado um talento precioso, o de dominar rapidamente, e eficientemente, os idiomas de estranhos. Em sua opinião, aprender línguas estrangeiras é como viajar o mundo. Ele admite que nunca havia viajado, jamais - apesar dos inúmeros convites de seus amigos turistas; ele, simplesmente, nunca sentiu a necessidade. “Sinto que estou viajando quando começo a aprender um idioma e, certamente, quando consigo dominá-lo. Recentemente, aprendi russo. Agora estou estudando os idiomas eslavo e escandinavo. Sabe, quando aprendo um idioma, isso me dá esperança, tenho a sensação de que o mundo está se abrindo para mim e me inundando com sua generosidade, e é isso que dou em troca, recebendo turistas em meu país. Sem esperança, mundo fica triste e perigoso”.

Conclusão: turismo e revolução, uma maldição?

  • 4 Uma expressão que aparece, frequentemente, nos discursos online de blogueiros e ativistas dessas re (...)

33Como mencionado anteriormente, o contexto pós-revolucionário no qual conheci esses trabalhadores os levou a identificarem-se com os jovens revolucionários, uma vez que suas histórias se alternavam entre dois períodos: pós-colonial e pós-revolucionário. Por meio de comentários, piscadas e digressões, às quais, frequentemente, surgiam em seus discursos, eles indicavam o fato de que não foi por acidente que os jovens do interior foram os primeiros a se rebelar contra as políticas que buscavam ocultar a pobreza da visão, o “remendar e pintar” que, aos seus olhos, o turismo fazia. Também não foi por acaso que esses rebeldes haviam derramado sua raiva sobre aquilo que chamavam de “as cidades da corrupção burguesa”,4 referindo-se a certas cidades litorâneas favoritas. Meus informantes permitiram que eu entendesse que, depois de décadas de desprezo, sofrimento e senso de injustiça, eles chegaram a conclusão, assim como outras pessoas, que a fachada à beira-mar a que uma minoria de tunisianos fizera tão bem, era, simplesmente, a fonte de sua própria pobreza. Não apenas por sempre se virar contra eles, lembrando-os de sua marginalidade, mas também porque isso os reduziu à uma reserva de mão-de-obra barata. Ao contrário de muitos outros compatriotas que residem nas faixas litorâneas e enxergam as zonas turísticas como um símbolo de orgulho e uma marca de prestígio que ressoa às suas regiões, esses jovens da “Tunísia das profundezas”, do interior de ontem e de hoje, concebem a “Tunísia do mar” como um destino que é distante e hostil, uma migração estressante. Não é com pouca frequência que eles veem o sonho de deixar suas regiões de origem para trabalhar nos hotéis transformar-se em pesadelo. Apesar da pequena “fortuna” que conseguem acumular graças ao trabalho, permanecem divididos entre os pobres desempregados que foram, privados de quase toda a esperança, e os pequenos empregados que são agora, submissos, porém, excluídos, do paraíso turístico a que servem. Afinal, esse paraíso é o país deles, convertido, pelo menos uma parte, em uma cadeia de colônias de férias, justamente no mesmo momento em que se esforçava, por todos os meios, para se declarar um país descolonizado.

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Notes

1 As costas não agregaram apenas a indústria turística. Infraestruturas industriais de grande importância também foram aí implantadas. Observe que, especialmente, as fábricas de autopeças, ou de prontos para levar, ou têxteis, estabelecidas no âmbito da Lei n° 72-38 de 27 de abril de 1972, conhecida, simplesmente, como “Lei 1972”. Essa lei garantia vantagens fiscais aos investidores tunisianos e estrangeiros que desenvolviam projetos industriais voltados à exportação.

2 Pseudônimos foram usados no lugar dos nomes reais.

3 Isso correspondia a 600 euros, o que não era uma quantia desconsiderável na época.

4 Uma expressão que aparece, frequentemente, nos discursos online de blogueiros e ativistas dessas regiões.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Habib Saidi, « Sobre Bio-hospitalidade: os Hotéis como Quartéis ou os Três Corpos dos Garçons  », Via [En ligne], 16 | 2019, mis en ligne le 30 mars 2020, consulté le 13 février 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/viatourism/4587 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/viatourism.4587

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Auteur

Habib Saidi

IPAC/CÉLAT, Laval University, Canada

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