1Neoliberalismo deixou, há tempos, de ser um neologismo. Entretanto, seu uso indiscriminado como conceito tem gerado dúvidas sobre a que, efetivamente, ele se refere.
2Para Dardot e Laval (2016, p. 17), o neoliberalismo constituiu-se como a razão do capitalismo contemporâneo, podendo ser compreendido como “o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”. De acordo com os autores, o neoliberalismo não se refere apenas às políticas econômicas de austeridade ou da ditadura do mercado financeiro, sendo, em verdade, “uma racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até convertê-la na forma das subjetividades e a norma das existências” (Dardot e Laval, 2019, p. 5).
3Pensando o neoliberalismo a partir de sua dimensão espacial, Milton Santos e Maria Laura Silveira (2001, p. 302) afirmam que “o neoliberalismo acarreta mudanças importantes na utilização do território, tornando esse uso mais seletivo do que antes e punindo, assim, as populações mais pobres, mais isoladas, mais dispersas e mais distantes dos grandes centros e dos centros produtivos”. Isso tudo se dá, entre outras razões, porque o neoliberalismo “conduz a uma seletividade maior na distribuição geográfica dos provedores de bens e serviços” (Santos e Silveira, 2001, p. 302), os quais, em função da competitividade, são levados a buscar as localizações tidas como mais favoráveis.
4Em que pesem divergências entre abordagens distintas sobre o neoliberalismo, há um certo consenso de que a “virada neoliberal” nas práticas e no pensamento político-econômico teria ocorrido a partir dos anos 1970, envolvendo a “desregulação, a privatização e a retirada do Estado de muitas áreas de provisão social” (Harvey, 2005, p. 2).
5Ao tornar permeáveis estratégias de privatização, desregulação e desregulamentação, a ideologia neoliberal teria, segundo Wallingre (2017), impactado de forma intensa os territórios de países ditos emergentes, “em particular a partir da deslocalização industrial, empresarial e de serviços (como é o caso do turismo)”. Além disso, a autora aponta para a “incidência das denominadas bolhas imobiliárias e financeiras (onde o turismo participa com força)” (Wallingre, 2017, p. 32).
6A partir de uma perspectiva também fundada na existência de assimetrias econômicas em escala mundial, Boden (2011, p. 83) afirma que o neoliberalismo provocou um profundo impacto no Sul Global, “aumentando os níveis de desigualdade e pobreza” assim como “novas formas de acumulação por despossesão” e “o aumento do poder do capital financeiro tanto no nível nacional como internacional”. Tal perspectiva converge com a afirmação de Brenner, Peck e Theodore (2010), que apontam para “o caráter desigual e variado” dos processos envolvidos com a disseminação do neoliberalismo pelo mundo, e a de Harvey (2005), segundo a qual o neoliberalismo contribui para o desenvolvimento geográfico desigual.
7Apesar, portanto, de características comuns, o avanço do neoliberalismo tem evidenciado, segundo diversos autores, a existência de diferenças na sua forma de realização, considerando particularidades nacionais, regionais e locais.
8Este dossiê foi, assim, originalmente movido pela ideia central de que o modo de produção capitalista produz, dialeticamente, tensões entre processos estruturais globais e dinâmicas locais e regionais. Essas tensões manifestam-se para além da economia e da política, por meio de repercussões sociais e territoriais ainda pouco estudadas, sobretudo no que concerne à sua relação com o turismo. Como afirma Jan Mosedale (2016), a despeito de o turismo ser uma atividade profundamente moldada pelo neoliberalismo, as consequências da neoliberalização sobre a atividade são, ainda, relativamente sub-exploradas.
9Isto posto, o conjunto de artigos que compõe este dossiê pretende contribuir para minimizar esse gap na produção de reflexões sobre a relação neoliberalismo e turismo no Sul Global, pouco estudada sob esta perspectiva.
10O dossiê traz 11 artigos que adotam diferentes recortes espaciais e escalas geográficas, abordando casos de países da América do Sul e da África. O neoliberalismo é o pano de fundo para discorrer sobre temas como sistema político e políticas públicas de turismo, plataformização do turismo, violência e produção do espaço turístico, turismo comunitário, turismo responsável e produção do conhecimento.
11O artigo intitulado The Political Economy of Tourism in Brazil (2003-2016): a “Positive” yet still Neoliberal Agenda?, de Thiago Pimentel (Univ. Fed. de Juiz de Fora - UFJF), Mariana Pimentel (UFJF), Marcela Oliveira (UFJF) e Dominic Lapointe (Univ. du Québec à Montréal - UQAM), aborda os fatores macroestruturais, sociais e políticos que resultaram na expansão do turismo (massivo e concentrado) durante os governos dos Partidos dos Trabalhadores (PT), de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006; 2007-2010) e Dilma Rousseff. (2011-2014; 2015-2016)
12Com um olhar específico para os dois primeiros mandatos do presidente Lula, o artigo As políticas públicas de turismo no Brasil (2003-2011): Entre o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo, de Larissa Rodrigues (Univ. de São Paulo - USP), Cristiane Santos (Univ. Fed. de Sergipe - UFS) e Antonio Campos (UFS), analisa os planos nacionais e os programas de turismo implementados por um governo de esquerda que não rompeu com os princípios neoliberais.
13Em seu artigo Carolina Todesco (Univ. Fed. do Rio Grande do Norte - UFRN) e Rodrigo Silva (Instituto Federal de Brasília - IFB), em seu artigo The Radicalization of Neoliberalism in Brazil and the Role of the Ministry of Tourism in Coalition Presidentialism, revelam como o órgão oficial de turismo brasileiro foi útil ao sistema político dos governos ultraliberais, no período de 2016 a 2022.
14Rita Cruz (USP), Cristina Araujo (Univ. Fed. de Pernambuco - UFPE) e Luciano Abreu (Univ. Fed. Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ), no artigo Nas tramas do neoliberalismo: o impacto do Airbnb no setor hoteleiro e no mercado imobiliário em São Paulo e no Rio de Janeiro, Brasil, analisam as consequências da expansão recente da plataforma AirBnb sobre o mercado hoteleiro e o mercado imobiliário das duas maiores metrópoles brasileiras, abrangendo o período 2021-2024.
15Lucas Catsossa (Univ. de Púnguè), Bruno Campos (Univ. do Oeste do Paraná - Unioeste) e Edvaldo Moretti (Univ. Fed. da Grande Dourados - UFGD), em Violências do neoliberalismo na produção de lugares turísticos, um olhar a partir da Praia de Macaneta - Moçambique, ressaltam a segregação territorial e a subordinação da população local aos grupos econômicos internacionais da área do turismo que se apropriam do litoral de Moçambique, no caso do estudo em específico, a praia de Macaneta, reproduzindo diferentes violências e violações.
16As autoras Andreia Martins (Univ. de Coimbra - UC) e Claudete Moreira (UC), em Tourism or sustainable tourism in the Global South? Perspectives from Guinea Bissau, investigam as percepções e expectativas dos atores envolvidos e interessados no desenvolvimento do turismo em Guiné Bissau e identificam os problemas que dificultam o direcionamento para um turismo responsável. (texto a ser publicado)
17A partir da análise de iniciativas de afroturismo nas cidades de Salvador, Rio de Janeiro e São Luís, no artigo Afroturismo nos sítios dos patrimônios mundiais brasileiros: desafios e oportunidades com ênfase em uma narrativa decolonial, Ana Fernandes (Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC) e Gabrielle Cifelli (Faculdade de Tecnologia de Itu), refletem sobre como o turismo pode ser um importante vetor para consolidar uma narrativa decolonial de identidade e de senso de pertencimento da população negra.
18No artigo intitulado, Turismo de Base Comunitária no contexto do paradigma neoliberal: iniciativas contra-hegemônicas e a luta pela terra no Nordeste brasileiro, Ilana Kiyotani (Univ. Fed. da Paraíba - UFPB), Wagner Costa (Instituto Federal do Rio Grande do Norte - IFRN) e Maria Fonseca (UFRN) focam em três iniciativas de turismo comunitário no estado da Paraíba, que segundo os autores se constituem em um movimento contra-hegemônico, de resistência, em defesa dos interesses coletivos das comunidades tradicionais.
19A partir de uma perspectiva distinta, abordando um caso argentino, Triana Attanasio (Univ. Nacional de San Martín - UNSAM), em seu artigo ¿Turismo Comunitario en la ciudad neoliberal? Reflexiones desde un barrio popular de Buenos Aires, fazem uma crítica aos resultados de um programa governamental na área do turismo comunitário urbano, implementado no bairro Rodrigo Bueno, que teve sua imagem estigmatizada e a produção do espaço cooptada por agentes externos.
20Maria Canal (Univ. Federal do Pará), Elcivânia Barreto (Instituto Federal do Pará) e Milene Castro (Universidade Federal do Pará), em Patrimônio Cultural e Flexibilização da Produção Turística na Amazônia Oriental Brasileira, analisam o uso do patrimônio cultural amazônico a partir do aprofundamento da “mercantilização institucional” assentada em parcerias público-privado.
21Por fim, Gabriel Comparato (Universidad Argentina de la Empresa y Universidad Nacional de Mar del Plata - UNLP) e Florencia Moscoso (UNLP), no artigo Dependencia académica y neoliberalismo. Emergentes de los estudios turísticos en clave latinoamericana, refletem sobre como os estudos em turismo são pensados e conduzidos a partir de uma perspectiva latino-americana e as dinâmicas de poder em jogo.