1O debate sobre o neoliberalismo na área acadêmica é cada vez mais intenso em diversas áreas do conhecimento científico, considerando que é um modelo hegemônico constituído desde a década de 70 do século XX, que exige reflexões acerca de sua organização política, social e econômica. Enquanto conceito, o neoliberalismo apresenta várias acepções, as quais se convergem em alguns aspectos, sobretudo no que concerne às razões da sua emergência, suas profecias e suas contradições. Harvey (2008) aponta que “o neoliberalismo é, em primeiro lugar, uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e as capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio” (Harvey, 2008, p. 4). Nas últimas décadas, a instalação do neoliberalismo enquanto quadro político, social e econômico dominante, tem significado a acentuação de suas contradições. Para Dupas (2006, p. 12) “o progresso como discurso dominante das elites globais parece ter perdido o seu rumo”, uma vez que as desigualdades, as injustiças socioambientais, a violência, as brutalidades, dentre outras barbáries continuam a se reproduzir de forma ampliada no mundo. Isto, no entanto, se dá com graus de diferenciações, em escala e intensidade, na medida da posição de cada lugar na Divisão Internacional do Trabalho.
2Especificamente sobre o turismo importantes analises com foco na estruturação dessa atividade pelo neoliberalismo estão publicadas e apresentam considerações criticas sobre as consequências do turismo neoliberal para a produção do mundo moderno, entre estes trabalhos destacamos Bursztyn (2003); Erickson (2021); Kosmos e Vatikioti (2024), autores que apresentam as características do turismo no neoliberalismo e demonstram a participação do turismo no processo geral de acumulação capitalista em diferentes locais do mundo e suas consequências sociais, ambientais e culturais. Nesse contexto de produção do lugar turístico pelo neoliberalismo esta inserida a Praia de Macaneta, em Moçambique.
3Ainda em sua abordagem sobre o neoliberalismo, Dupas (2006) entende o cenário como sendo conformado por duas frentes, ambas importantes para a acumulação e reprodução ampliada do capital em escala global. Para o autor, isto se dá “[...] de um lado pelas exigências de um Estado minimalista, onde sua autonomia é aplicada às normas neoliberais; de outro lado, pela desregulação dos mercados, pela privatização dos serviços e pela deterioração progressiva do quadro social, que exigem um Estado forte e um aparato regulador muito eficiente. Por outro lado, os Estados são obrigados a buscar cada vez mais intensamente baixar os custos de seus fatores de produção oferecidos para atrair parte das cadeias produtivas globais a seus territórios (passam a serem mais explorados que antes), numa estratégia de especialização fortemente competitiva que estimula um rebaixamento geral entre os Estados concorrentes, especialmente dos custos gerais da mão-de-obra e dos tributos” (Dupas, 2006).
4Em países onde ocorre o regime de propriedade privada da terra, para além da flexibilização, as reformas foram feitas no sentido de demandar a privatização da natureza, e, posteriormente, a sua entrega ao capital financeiro num processo realizado de “cima para baixo” e sem nenhuma transparência. Em Moçambique, país localizado no sudeste do continente Africano, com população de 32,08 milhões de habitentes (Banco Mundial, 2021), e onde se situa o lugar de realização desta pesquisa, uma das singularidades mais relevantes em sua inserção na totalidade mundo, consiste no “abandono” do projeto socialista muito brevemente após a conquista da independência, em 1975, como consequência, em grande medida, da guerra civil e posteriormente, dos Programas de Ajustamento Econômicos, impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial. A constituição do neoliberalismo em Moçambique significou um entrave à sua industrialização, e com a alta na extração de recursos naturais, com destaque ao gás natural, o carvão mineral, as terras, bem como uma diversidade de tantos outros minérios, configurou-se uma atração de capitais estrangeiros que, aliados a uma elite local que se constituiu, delineou a nova conjuntura de forças entre o Estado, a sociedade e o capital (Waterhouse e Vijfhuizen, 2001)
5Com esta nova realidade configurada em Moçambique, a cada nova circunstância histórica, o Estado tem sido forçado pela conjuntura a rever as leis de modo a acomodar os interesses do capital monopolista na exploração da natureza, além das nuances financeira e especulativa, que assim se configuram hodiernamente no seu processo de acumulação e reprodução ampliada. Na prática, isto tem se materializado na emergência de algo similar ao Land Grabbing (usurpação/apropriação de terras), que tem sido o Green Grabbing (usurpação/apropriação dos espaços verdes) pelo capital monopolista.
6Enquanto base de acumulação e reprodução ampliada do capital em escala global, o Green Grabbing é frequente no Turismo e é a forma pela qual o neoliberalismo se expressa espacialmente. No caso do turismo, o neoliberalismo se manifesta através da expansão de empresas privadas constituídas com participação intensa do capital financeiro, as quais beneficiam-se dos processos de privatizações e concessões de parcelas significativas de territórios de conservação estabelecidos por legislações pretéritas e concedidas pelo Estado para a sua exploração mercantil.
7Muitas das áreas de conservação da biodiversidade, agora nas mãos das empresas privadas de capital estrangeiro, são transformadas em lugares turísticos. No caso específico do lugar deste estudo, a Praia de Macaneta, está em curso um processo comum a outros lugares do mundo. A manifestação da singularidade deste processo comum tem se dado a partir da apropriação privada do acesso à praia, com implantação de mecanismos de valorização económica da beleza cênica, das águas limpas, da abundância de peixes, entre outros fatores valorizados pelo mercado turístico. Se antes, as praias eram de acesso livre ao público, com a presença da racionalidade neoliberal, após a sua apropriação privada, o acesso passou a ser restrito a determinados grupos sociais, definido pelo poder de compra.
8A construção deste artigo se deu a partir da revisão de literatura inerente ao tema, com intuito de promover o diálogo entre autores que estudam como a atividade turística tem se constituído hegemonicamente no âmbito do neoliberalismo, somado a pesquisas de campo realizadas na Praia de Macaneta (Figura 1) em momentos históricos distintos, com destaque para os anos de 2014, 2016 e 2022. Se desdobra, sobretudo, de um conjunto de transformações socioespaciais que foram identificadas durante o projeto “Práticas sociais e saberes de mulheres e homens e a produção do território rural no Distrito de Marracuene em Moçambique: viabilidade das alternativas produtivas no mundo da sustentabilidade”, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- CAPES, por meio de programa que visava a mobilidade internacional nas diversas áreas do conhecimento e com vistas a incentivar a mobilidade docente e discente internacional entre os países e as instituições integrantes da Associação das Universidades de Língua Portuguesa - AULP (CAPES/AULP, 2014, 2015).
Figura 1. Localização do lugar da pesquisa, Praia de Macaneta
Fonte: Moretti, 2018.
9A estrutura do texto está constituída, primeiramente, por uma apresentação do lugar de pesquisa, com destaque para a localização da Praia de Macaneta em relação a Maputo e demais espaços do conjunto nacional e internacional; o histórico que conforma a trajetória do lugar, dando especial destaque ao cenário inaugurado pós-independência, de permanência curta no arco de influência socialista, a influência da guerra civil e por fim as modificações que têm sido promovidas com a liberalização da economia moçambicana, e o rebatimento disto nas práticas do turismo como uma das expressões da violência neoliberal vivida no país. Em seguida, serão tecidas análises acerca do lugar Praia de Macaneta, localizada no Distrito de Marracuene, pertencente a Maputo, enquanto uma expressão concreta do movimento neoliberal implantado através da prática do turismo. Por fim, com a intenção de ofertar um balanço final que se obteve a partir deste olhar para o lugar, serão delineados alguns dos principais limites, desafios e possibilidades, fundados também em Gago (2018, p. 16), que salienta o neoliberalismo “como um conjunto de saberes, tecnologias e práticas que desenvolvem um novo tipo de racionalidade, a qual não pode ser pensada apenas como sendo impulsionada de cima para baixo”.
10A produção da Praia de Macaneta nos moldes capitalistas não pode ser vista fora do contexto das reformas econômicas que empurraram Moçambique para a economia de mercado, que passou a vigorar oficialmente com a Constituição da República de 1990. Autores como Mosca (1999, 2019); Catsossa (2020); e Catsossa e Fabrini (2020), apontam que as reformas econômicas iniciadas na década de 1980, em Moçambique, e lideradas pelas Instituições da Bretton Woods – Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), culminaram na liberalização da economia moçambicana, com o objetivo de desregulamentação, privatização e redução da presença do Estado na economia. Para apoiar financeiramente Moçambique, as Instituições da Breeton Woods impunham como solução, a privatização das empresas estatais, como também da terra por parte do governo socialista da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Porém, contra a vontade das Instituições da Breeton Woods, a FRELIMO resistiu à privatização da terra e outros recursos naturais, tendo a mantido como propriedade do Estado, tal como era no período anterior a estas reformas econômicas. O Estado moçambicano continuou intervindo em vários setores sociais e da economia, embora com algumas limitações sob ponto de vista financeiro, em que para a sua materialização recorria aos empréstimos e/ou endividamento privado, às vezes, junto ao próprio Banco Mundial e ao FMI.
11A Constituição da República de 1990 formalizou a ordem econômica de mercado, na qual o Estado garante e reconhece o direito à propriedade a pessoas individuais e coletivas diante da nova conjuntura que o país se inseriu (Francisco 2014). Para além de garantir e reconhecer o direito à propriedade privada, a Constituição da República de 1990 oficializou a expropriação e, conforme o artigo 86, a mesma poderia ter “lugar por causa da necessidade, utilidade ou interesse público, definidos nos termos da lei e dá lugar a indenização”.
12Assim foram criadas as condições para as populações nativas serem expropriadas e deslocadas compulsoriamente das suas terras sob a conivência do Estado, alegando-se o interesse público. As reformas econômicas criaram condições materiais para a exploração mercantil da terra e de outros recursos naturais em Moçambique, reproduzindo a base material de acumulação e reprodução ampliada do capital em escala global.
13Através da política econômica influenciada pela razão neoliberal presente na Constituição da República desde de 1990, o Estado passou a promover o Investimento Direto Externo (IDE), com o intuito de dinamizar a economia nacional, em que o setor privado passou a ser considerado uma peça angular do processo. Esta política econômica atribuiu algumas das funções do Estado ao setor privado, sobretudo, ao capital estrangeiro. Na sua política de atuação, o capital privado deveria assumir a responsabilidade de promover o desenvolvimento local através do que se chamou de Responsabilidade Social das Empresas. No entanto, a construção de unidades sanitárias, escolas, estradas, fontes de abastecimento da água entre outros serviços básicos sociais, que por inerência são da responsabilidade do Estado, também passaram a ser executados pelas empresas privadas de capital estrangeiro em troca de concessões de terras e de outros recursos naturais para a sua exploração.
14Este processo de transformação das relações econômicas em Moçambique e de alteração nas possibilidades de propriedade e uso dos recursos por concessão, como o uso do solo, promoveu profundas alterações no setor do turismo, ampliando as possibilidades de participação de empresas privadas internacionais no sistema turístico.
15O lugar Praia de Macaneta, localizado no Distrito de Marracuene, na cidade de Maputo, Moçambique, é uma expressão concreta do movimento neoliberal implantado através da prática do turismo. O Distrito de Marracuene possui 118.949 habitantes (Moçambique, 2012), e consiste num distrito de caráter rural, realidade na qual se pertencente a Maputo, capital e a maior cidade de Moçambique, sendo o seu principal centro econômico. Localiza-se na margem ocidental da baía de Maputo, no extremo sul do país, perto da fronteira com a África do Sul e com Essuatíni, antiga Suazilândia, conformando uma tríplice fronteira.
16Historicamente, a Praia de Macaneta recebe visitantes locais ou de outros países, com destaque para residentes na África do Sul (Entrevistas realizadas em 2014, 2016 e 2022 com trabalhadores em hotéis localizados na Praia de Macaneta). (atendendo ao parecerista AVL 1) O distrito de Marracuene é uma área com atividade rural, portanto, uma população com origens no trabalho na terra, e uma parcela de moradores dedicam-se à pesca (Figura 2), sendo esta a principal atividade realizada pela população local na Praia de Macaneta.
Figura 2. Pessoas retirando rede com peixes do mar
Autor: Moretti. 2016
17As estratégias de desenvolvimento do turismo em Moçambique são feitas no sentido de atrair empresas com o programa Investimento Direto Externo (IDE), o qual tem se beneficiado de concessões feitas pelo Estado. Tanto as áreas de conservação da biodiversidade, como parques e reservas nacionais, assim como as praias, são alvos de concessões realizadas pelo Estado, sob a justificativa de falta de capacidade do poder público e das empresas turísticas locais de dinamizarem e inserirem Moçambique como atrativo turístico mundial. Para conseguir concessões feitas pelo Estado, incorporaram nos seus planos de exploração o paradigma da Responsabilidade Social.
18As concessões de terras para empresas privadas, dependendo da natureza do projeto e do tamanho do investimento, podem chegar a 50 anos, renováveis por igual período, trata-se da garantia de um período longo, no sentido de assegurar a possibilidade de retorno e lucro sobre o capital investido. Na Praia de Macaneta, ocorreu a concessão de terras para a implantação de hotéis com capital privado estrangeiro, entre eles destacam-se: Jays Beach Lodge; Surise Lodge Macaneta; Macaneta Resort; Macaneta Holiday Resort; Lugar do Mar; Tan’n Biki (Figura 3).
Figura 3. Placas indicativas de hotéis na Praia de Macaneta
Autor: Moretti. 2014
19As informações sobre as propriedades destes hotéis são bastante imprecisas, mas nas entrevistas com trabalhadores e moradores foi possível concluir que os proprietários são empresários da África do Sul, que obtiveram direito de uso da terra para implantação dos hotéis. Alguns estudos, como o de Terenciado, Muchacho e Saliao (2018), acerca da constituição da atividade turística no âmbito do neoliberalismo em Moçambique, confirmam a exclusão das populações nativas no processo. A violência que as populações nativas passam é expressa sobretudo por sua exclusão do acesso aos lugares turísticos. Após ganharem concessões, as empresas turísticas produzem os lugares a partir dos fundamentos da economia de mercado, com vista a extrair lucros. Para tal, criam condições de atratividade turística, com a implantação dos serviços turísticos, como hotéis, restaurantes, segurança, marketing, e ao mesmo tempo restringem o acesso para o consumo dos elementos de atratividade, como a praia, o mar, a beleza cênica, a pesca e principalmente, promovendo a cobrança para o acesso à praia. Os hotéis atendem preferencialmente turistas sul-africanos, motivados pelo lazer de praia, pesca no mar e mergulho. O acesso aos hotéis de Macaneta ocorre por via terrestre, com veículos adequados para as estradas que passam pelas formações de dunas. Ao se alojaram nas unidades hoteleiras do local, “[…] a maior parte de turistas visitam o distrito de Marracuene para a prática de turismo contemplativo, praticado maioritariamente pelo turista estrangeiro, e a maior parte destes tem destino preferido em Macaneta, por tratar-se de uma área rural, com alojamento do tipo camping, com lodges à beira mar que possibilitam acesso directo à praia e passeio pelas trilhas” (Nhavoto, 2013, p. 60). Esta constatação foi feita também por Gonçalves e Catsossa (2020) e Catsossa e Gonçalves (2021) em seus trabalhos sobre a dinâmica do turismo em Maracuene.
20A partir de Antunes (2018), é possível compreender este processo enquanto parte do caráter assumido por uma economia de serviços, que tem sido a dimensão fortalecida no seio das permanentes reestruturações sempre em curso no capital pós-crise estrutural, desde a década de 1970 (Arrighi, 1996). Segundo Antunes (2018), ao passo que se firma esta economia de serviços, firma-se também um proletariado de serviços, que apresenta particularidades no que diz respeito à preservação e à ampliação da lei do valor. (...)ao contrário da conhecida tese da perda de vigência da lei do valor, o capitalismo atual apresenta um processo multiforme, no qual informalidade, precarização, materialidade e imaterialidade se tornaram mecanismos vitais, tanto para a preservação quanto para a ampliação da lei do valor. A enorme expansão do setor de serviços e dos denominados trabalhos imateriais que se subordinam à forma-mercadoria confirma essa hipótese, dado seu papel de destaque no capitalismo contemporâneo.” (Antunes, 2018, p. 38).
21Ao passo que a atividade turística, e todo seu aporte de serviços gera postos de emprego, especificamente em Marracuene, se constituem tendo como público preferencial os turistas sul-africanos, motivados pelo lazer de praia, pesca no mar e mergulho, o processo de segregação territorial tem se intensificado na Praia de Macaneta, com algumas ações diretas dos hotéis promovendo o distanciamento dos moradores locais da atividade turística. Os hotéis não possuem relação com a comunidade local, identificamos que o único produto oriundo do trabalho da população local é o pescado do mar, coletado pelos pescadores locais que fornecem parte dos peixes para os restaurantes dos hotéis. Ação bastante questionada pelos moradores locais foi a implantação de cancelas nas vias de acesso a Praia de Macaneta barrando a passagem pelas estradas, protegidas por homens armados de forma ostensiva, introduzindo a cobrança de taxas para utilizar os acessos à praia. Outra ação bastante impopular junto a comunidade são placas indicativas de um dos hotéis (Figura 4), que utiliza uma representação de um homem branco para sinalizar a direção para o hotel. Na histórica relação conflituosa entre o colonizador branco e os negros locais, essa ação é considerada ofensiva, pois é entendida como se tivesse informando que o hotel é destinado a homens brancos. Essa relação conflituosa alimenta o debate sobre o racismo, que as populações nativas sofreram com grande intensidade no período colonial.
Figura 4. Representação de um homem branco segurando a placa de um hotel
Autor: Moretti. 2014.
22Outra ação de distanciamento da população local, foi relatada por pescadores em diálogos realizados nas pesquisas de campo. Os pescadores relataram que pessoas ligadas aos hotéis solicitaram que realizassem o embarque e desembarque das embarcações de pesca em pontos distantes dos hotéis de turistas (Figura 5). Essa mudança de local de embarque e desembarque de barcos de pesca, aumentou o trajeto de locomoção dos pescadores até as estradas (Figura 6).
Figura 5. Desembarque e venda de peixe fresco a turistas na Praia de Macaneta
Moretti, 2015.
23Como consequência desta mudança de local de embarque e desembarque, muitas pessoas, na sua maioria mulheres que procuram por esse pescado, tanto para o consumo, como para a comercialização, passaram a ser obrigadas a percorrer longas distâncias.
Figura 6. Mulheres levam o peixe coletado na Praia de Macaneta
Autor: Moretti, 2016.
24No conjunto das ações em vista ao distanciamento das populações nativas dos operadores turísticos, estão também os preços praticados por seus operadores.Os preços para o acesso aos lugares turísticos são definidos em função do turista estrangeiro, e não do lugar, e é o que se constata na Praia de Macaneta. No entanto, a definição dos preços em função do turista estrangeiro passou, em grande medida, a ser utilizado também como fundamento para o distanciamento das populações nativas dos lugares turísticos.
25Este cenário apenas contribui para a exclusão dos nativos do acesso aos lugares turísticos. Essa violência faz parte do processo de produção territorial promovido pela ordem neoliberal. O Estado, contraditoriamente, não garante condições para a permanência das populações locais no território produzido para o turismo, “[...] o Estado ao invés de contribuir para equalizar os benefícios socioeconômicos, prioriza a promoção das actividades económicas desenvolvidas pelos atores hegemônicos (turistas e sector empresarial), enquanto que a coletividade se torna cada vez mais subordinada às determinações do mercado turístico” (Terenciano, Muchache e Saliao, 2018, p. 149).
26As populações locais têm se integrado de forma subordinada à economia turística em Moçambique. A inserção da mão de obra local nas práticas do turismo é valorizada pela sua capacidade de geração de postos de trabalho e inserção do trabalhador no mercado formal. Os trabalhadores dos hotéis, por exemplo, são contratados de duas formas diferentes, alguns por temporada e outros fixos. Os fixos são a parcela menor de trabalhadores, mesmo em época de baixa temporada, com baixo fluxo de turistas, são contratados para realizarem a manutenção dos hotéis. Nos hotéis inventariados pela pesquisa, entre 3 a 5 trabalhadores são contratados como fixos para cada hotel. Os trabalhadores considerados “braçais” dos hotéis são moçambicanos (camareiras, atendentes, vigias, serviços gerais de manutenção), os cargos de gerência são ocupados por sul-africanos, que possuem formação técnica nas áreas de hotelaria. Como é regra no processo de geração de emprego no mundo do capital, a justificativa para a não utilização da mão de obra local é associada a racionalidade do trabalho no turismo que exige formação especializada, inserida nas normativas e regras de padronização definidas pelo mercado turístico mundial.
27No mundo do trabalho, é essencial considerar o neoliberalismo “como um conjunto de saberes, tecnologias e práticas que desenvolvem um novo tipo de racionalidade, a qual não pode ser pensada apenas como sendo impulsionada de cima para baixo” (Gago, 2018. p. 16). Ainda de acordo com a autora, […] de cima para baixo, o neoliberalismo sinaliza uma modificação do regime de acumulação global – novas estratégias de corporações, agências e governos – que leva a uma mutação nas instituições estatais nacionais. Neste ponto, o neoliberalismo é uma fase – e não uma mera matriz – do capitalismo. E de baixo para cima, o neoliberalismo é a proliferação de modos de vida que organizam as nações de liberdade, cálculo e obediência, projetando uma nova racionalidade efetiva e coletiva (Gago, 2018, p. 17).
28Portanto, o mundo do trabalho sofre profunda mutação. No caso específico da Praia de Macaneta, é preciso considerar que a inserção do turismo ocorre associada à racionalidade neoliberal de organização das relações capital - trabalho e da relação capital - Estado. Desta forma, é brutal o processo de transformação do modo de vida da população local para atender e possibilitar o fazer neoliberal no lugar. Na sua pesquisa Nhavoto (2013) concluiu que […] a relação entre operadores de estabelecimentos turísticos e população local é fraca pois existem poucos postos de trabalho, para além de oferecer baixo salário; os rendimentos conseguidos não produzem efeitos significativos no melhoramento das condições de vida dos trabalhadores, com vista ao desenvolvimento local (Nhavoto, 2013, p. 65).
29Diante disto, para que seja assegurado a melhora nas condições de vida às pessoas do lugar, mostra-se necessário a mobilização de um conjunto de iniciativas, desde o Estado, para a proteção dos modos de vida no lugar turístico Praia de Macaneta. Isto deve se dar no sentido de alavancar o projetamento e a proliferação de ganhos e possibilidades a partir dos atributos turísticos do lugar, que são inerentes às pessoas do lugar que os produzem sócio-historicamente, com vistas a atender suas demandas e necessidades acerca da dignidade econômica, viabilizando-se com base no respeito aos elementos da cultura e da identidade local.
30A prática do turismo em Moçambique é impulsionada após a independência do país do colonialismo português no ano de 1975. O processo de independência, conforme a historiografia Moçambicana demonstra (Mosca, 1999; Brito, 2019), foi longa e trágica em função da guerra de libertação e da guerra civil pós colonialismo. Neste contexto de violência armada, um país procura sua construção de forma independente, a princípio, com preceitos do socialismo e, posteriormente, sancionada a Constituição de 1990, com o processo de liberalização da economia.
31Houve um curtíssimo hiato de tempo existente entre o triunfo no processo de libertação colonial e a procura por sua construção de forma independente, movidos pelo anseio em angariar a seguridade social a partir de uma regulamentação mínima do sistema sociometabólico do capital, que tem como esferas essenciais o capital, o Estado e o trabalho assalariado (Meszáros, 2011). Isto porque reformas econômicas iniciadas na década de 1980, em Moçambique, e lideradas pelas Instituições da Bretton Woods – Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), forçaram, em uma só medida, o abandono da busca deste caráter protetivo da dignidade humana sob os preceitos do socialismo; ao mesmo tempo em que alçou o país agora independente para o sistema sociometabólico do capital em sua forma altamente desregulada, ou seja, fundada na ampliação de violências e violações.
32A estrutura política, social e econômica definida constitucionalmente, a princípio, aparece como barreira à implantação das relações econômicas e sociais neoliberais, mas os interesses voltados para inserção do país na ordem capitalista mundial e a geração de riqueza impulsionam estratégias liberalizantes através do uso e exploração dos recursos locais. Especificamente para o turismo, ocorre o uso e exploração de paisagens e lugares valorizados por suas características naturais e culturais, como praias banhadas pelo Oceano Índico, reservas naturais com presença de vegetação e animais, culturas diferenciadas em relação aos países do centro, entre outros aspectos.
33Este processo, de concessão de uso das terras para empreendimentos turísticos privados, com destaque para setor hoteleiro e setor de alimentação, ocorre na Praia de Macaneta com impulso da infraestrutura de acesso financiada pelo Estado. Como resultado, é produzido um lugar turístico valorizado pelo mercado mundial, com hotéis com padrão de serviços e estética do turismo mundial. É, ao mesmo tempo, um lugar de violência, ao retirar o direito de grupos sociais, como os pescadores, de realizarem suas práticas sociais, culturais e econômicas, dos trabalhadores moçambicanos de realizarem seu trabalho com direitos sociais e salários adequados e da grande maioria do povo moçambicano de usufruir a praia como lugar de lazer e de ócio.
34Portanto, o lugar turístico Praia de Macaneta, é produzido na perspectiva do capital, ao modo como este configura-se na atualidade, sobretudo em espaços da periferia do mundo, sob amplo delineamento de relações fundadas numa gama de violências e violações, o que gera riqueza para grupos econômicos internacionais, permite o lazer e ócio para parcelas privilegiadas da população mundial, mas lega às pessoas do lugar segregação territorial, integração subordinada à economia turística e um conjunto de dificuldades para que, ao passo da reorganização desta nova racionalidade efetiva e coletiva, possa projetar a proliferação de ganhos e possibilidades aos modos de vida no lugar turístico Praia de Macaneta.