1No Brasil, desde o período da campanha presidencial, o governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), popularmente chamado de “Governo Lula”, demonstrou a intenção de buscar caminhos para conciliar o crescimento econômico e a equidade social no interior do desenvolvimento do capitalismo tardio brasileiro. Este cenário apontava para a retomada de alguns dos postulados do keynesianismo no âmbito político-econômico, o que auxiliou no fortalecimento da hipótese entre pesquisadores acerca da emergência de um “novo desenvolvimentismo”, como símbolo da busca pela consolidação de um utópico Estado de bem-estar social, nunca historicamente alcançado no Brasil (Bresser-Pereira, 2009; Paccola e Alves, 2018).
2Entretanto, longe do consenso acerca das conduções adotadas política e economicamente serem consideradas unicamente neodesenvolvimentistas ou um aprofundamento e continuidade do neoliberalismo emergido na década anterior, a práxis política do governo nesse período sinaliza a coexistência de ambas as perspectivas, revelando uma ambiguidade fundamental que caracterizou os governos petistas no começo do século XXI (Fagnani, 2011).
3Por um lado, houve um claro distanciamento das tendências neoliberais disseminadas por todo o mundo entre os anos 1970 e 1990. A negação do paradigma neoliberal se materializou com a inserção de proposições de origem keynesiana e de caráter desenvolvimentista no direcionamento das políticas públicas, voltadas à promoção da inclusão social, distribuição de renda e redução de desigualdades associados à busca do crescimento (Pochmann, 2011; Carvalho, 2018). Simultaneamente, a posição e as decisões na condução da economia coadunavam com um recente passado neoliberal brasileiro, em que emergiram direcionamentos de tipologia neoclássica pautados pela adoção prioritária de uma agenda ortodoxa de medidas econômicas (Boito Jr., 2006; Tristão, 2011).
4No âmbito do turismo, em 2003, inaugurando uma importante mudança na gestão e condução da política pública de turismo no Brasil, o Ministério do Turismo (MTur) é criado em meio às contradições do Governo Lula frente à existência simultânea e conflituosa do neodesenvolvimentismo e do neoliberalismo. Neste sentido, considerando este caráter dual que caracterizou a condução das ações no governo federal brasileiro entre os anos 2003 e 2011, em que medida os princípios do neodesenvolvimentismo e/ou do conhecido neoliberalismo conviveram e influíram na condução do turismo a partir das orientações advindas do MTur?
5Com este questionamento central para o entendimento dos elementos norteadores das políticas públicas de turismo no Brasil, o presente estudo tem por objetivo analisar os planos e programas nacionais voltados para o desenvolvimento da atividade turística, elaborados pelo Ministério do Turismo, à luz de uma suposta propagação e reprodução dos paradigmas e princípios do neodesenvolvimentismo e do neoliberalismo, ambos consideravelmente presentes durante os Governos Lula. Metodologicamente, foram utilizadas a pesquisa bibliográfica, para levantamento de estudos sobre o neoliberalismo e neodesenvolvimentismo no Brasil nos séculos XX e XXI, e a pesquisa documental para levantamento e revisão dos documentos das políticas e programas de turismo, especificamente no período investigado (2003-2011).
6O neoliberalismo foi constituído inicialmente a partir de um movimento de intelectuais (Colóquio Walter Lippmann) como uma reação aos postulados do keynesianismo e do liberalismo social juntamente às perspectivas de Estado desenvolvimentista-nacionalista, pregando o retorno ao formato econômico do liberalismo laissez-faire.
7O neoliberalismo tem por finalidade a recuperação da feição clássica de capitalismo balizado no laissez-faire, pondo limitações à intervenção estatal na economia. A partir de uma refundação das bases teóricas do liberalismo e a definição de uma nova política, o nascimento do neoliberalismo vai mirar em uma intervenção do Estado específica, propriamente liberal (Dardot; Laval, 2016).
8Contudo, apesar de ter sido inicialmente debatido em meados dos anos 1930, logo após a grande crise de 1929, o neoliberalismo enfrentou um longo período de deserto político e intelectual com a subida do keynesianismo à ordem do dia. O neoliberalismo só alcança algum tipo de hegemonia com a crise dos anos 1960 e 1970, que levou à fragilidade e instabilidade do modelo ideológico até então pautado no “novo liberalismo”, alicerçado nas teorias de Keynes.
9Em uma tentativa de reversão do quadro de recessão que abalou a economia mundial, ameaçando a estrutura capitalista a uma possível extinção, no plano econômico e político o neoliberalismo advoga o protagonismo do mercado, com crença na eficiência e eficácia a partir da busca incessante pelo lucro, bem como através das leis do livre mercado e da livre competição com mínima intervenção estatal na regulação das atividades econômicas.
10Ademais, o neoliberalismo pauta-se na defesa das liberdades econômicas com a livre iniciativa mediante desregulamentação da economia e dos mercados, flexibilizações legais, desburocratização e descentralização do poder decisório através de reformas do Estado, estímulo e propagação de valores ligados ao individualismo, ao empreendedorismo e à competição. Por outro lado, também sustenta a reestruturação produtiva com a mundialização econômica da produção e consumo promovendo e envolvendo a livre circulação e mobilidade dos fluxos de capitais por meio das empresas e corporações que passam a atuar em escala transnacional de modo a transpor territórios, fronteiras e soberanias dos Estados-nação (Harvey, 2003; 2005).
11Embora o neoliberalismo tenha sido hegemonizado por agentes político-econômicos localizados nos países do norte do globo, foi na América Latina onde ocorreram os primeiros processos impositivos de neoliberalização. Os países ao sul, já fragilizados pela implantação de regimes autoritários e subsequentes processos de recessão econômica, serviram de laboratório para a experimentação neoliberal, correlato aos desafios e objetivos de sempre iniciar um novo ciclo de acumulação após uma démarche de desvalorização. Os processos de neoliberalização de ajuste econômico na América Latina adentraram os anos de 1980 e seguiram ao longo da década de 1990 balizados pelo Consenso de Washington, impostos aos países como condição de renegociação das dívidas externas (Soares, 2002).
12No Brasil, a “crise da dívida” e a recessão econômica caracterizada por alta inflação, estagnação econômica, queda nas taxas de crescimento, aumento da dívida externa gerando déficit e desequilíbrio na balança comercial, a dependência de empréstimos com altos juros junto ao FMI, e o consequente aumento dos níveis do desemprego, significaram o fim do milagre econômico no âmbito do regime militar e anunciaram a crise do Estado desenvolvimentista-nacionalista e seu consequentemente esgotamento (Tristão, 2011).
13Após um longo período de crescimento econômico mediante as políticas desenvolvimentistas nacionalistas adotadas desde a década de 1930, – baseadas na industrialização e substituição de importações – o colapso econômico, político e social impulsionou o declínio da ditadura militar e a instauração do processo de redemocratização na década de 80 do mesmo século. A abertura política, em grande medida ensejada pela profunda efervescência política e a crise econômica e social, significou o esgotamento do até então regime de acumulação e seguiu as tendências de mudanças ocorridas em nível mundial na estrutura do capitalismo (Gennari, 2001; Soares, 2002).
14No entanto, essa perspectiva se instala paralelamente ao fato de que, no caso do Brasil, a desigualdade socioeconômica persistia, posto que o país seguiu processos desiguais de desenvolvimento regional. Desta forma, os processos de neoliberalização se instalam em um momento de profunda fragilidade econômica, social e política, sendo responsáveis por acentuar significativamente um panorama de subdesenvolvimento alarmante presente em todos os países da América Latina.
15Com a virada da década, os anos de 1990 seriam o período-marco para o início do processo de efetiva neoliberalização no Brasil frente a uma persistente estagnação econômica e instabilidade social. O governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) inaugurou o rompimento com o modelo de Estado desenvolvimentista anterior ao demonstrar-se comprometido e adepto aos postulados neoliberais e à política americanista de abertura comercial. Porém, o neoliberalismo foi de fato impulsionado no governo de seu sucessor, Itamar Franco (1992 - 1994), com a desregulamentação financeira, e principalmente, no governo de Fernando Henrique Cardoso - FHC (1995-2002).
16O governo de FHC aprofunda o neoliberalismo no Brasil ao defender e aplicar largamente políticas incutidas nos princípios da descentralização estatal versus centralização do mercado, ambos pautados pelo livre mercado. Assim, promoveu, implantou e promulgou, no âmbito da sua gestão, a desarticulação do Estado visando torná-lo “mínimo”, ampliou a abertura dos mercados com a desregulamentação dos fluxos de capital, as privatizações do patrimônio público, a financeirização da economia, retomou o paradigma americanista em termos de política externa; entre outras ações claramente concatenadas ao paradigma neoliberal, como a centralização do tripé macroeconômico na economia (Sader, 2013). Neste sentido, todo o arcabouço político-econômico foi formulado com vistas à instauração de um novo regime de acumulação baseado na internacionalização, subordinação e dependência que visava conceder garantias para a livre valorização do capital no país.
- 1 Esta é a perspectiva apresentada por Emir Sader (2013) ao argumentar que os governos Lula são marca (...)
17Em 2003, a despeito de um governo dito de esquerda e caracterizado como pós-neoliberal1 ter sido posto à frente da direção do país, as políticas neoliberais continuaram a se perpetuar e serem reproduzidas em diversos âmbitos como na saúde, educação, trabalho, no turismo e, principalmente, na agenda econômica adotada. De acordo com Tristão (2011), o processo de inflexão do governo de Lula da Silva (2003-2011) e do Partido dos Trabalhadores para o neoliberalismo aconteceu de forma gradual entre a campanha eleitoral e o governo em si. No entanto, as ações advindas do ministro da economia à época demonstraram que não se tratava de um período de transição para outra agenda política, mas sim, de aprofundamento das políticas econômicas neoliberais iniciadas pelo governo anterior (FHC) em busca da confiança e credibilidade do mercado.
18O governo assumiu a tônica do crescimento econômico e da moderação, recusando qualquer sinalização de regulação do mercado. Por outro lado, as ações dos governos Lula também ensejaram análises voltadas para uma tendência política chamada de “neodesenvolvimentismo”. Esta tendência se estabeleceu na América Latina a partir dos anos 2000, especialmente no Brasil e na Argentina (Bresser-Pereira, 2010; Mafort; Assunção, 2016). O neodesenvolvimentismo é definido com uma espécie de um “novo desenvolvimentismo”, estratégia supostamente alternativa pautada na crítica à ortodoxia convencional das políticas liberais clássicas e neoliberais. Em contraponto às reformas estruturais, o neodesenvolvimentismo representa uma tentativa de resgate dos postulados keynesianos, visando o retorno do antigo desenvolvimentismo brasileiro dos anos 1930, ocorrido ao longo dos anos dourados do capitalismo no século XX (Bresser-Pereira, 2009).
19Em crítica a esta proposição, Sampaio Júnior (2012) aponta que o neodesenvolvimentismo não passa de uma terceira via/discurso que representa uma versão ultralight do neoliberalismo que impôs o ajuste estrutural da economia brasileira atendendo aos imperativos do capital financeiro, diferenciando-se pela premissa da busca de atenuar os efeitos mais deletérios da ordem global sob o crescimento, como o aprofundamento da desigualdade social. Neste sentido, “o desafio do neodesenvolvimentismo consiste, portanto, em conciliar os aspectos “positivos” do neoliberalismo — compromisso com a estabilidade da moeda, austeridade fiscal, busca de competitividade internacional, ausência de qualquer tipo de discriminação contra o capital internacional — com os aspectos “positivos” do velho desenvolvimentismo — comprometimento com o crescimento econômico, industrialização, papel regulador do Estado, sensibilidade social” (Sampaio Júnior, 2012, p. 679).
20Em relação ao Governo Lula, ao mesmo tempo em que este sinalizou para uma agenda econômica voltada ao atendimento dos pressupostos neoliberais em termos de estabilidade monetária e financeira, sem romper com a cartilha do governo anterior, buscou também o retorno da perspectiva do desenvolvimento econômico fundada em políticas sociais, ainda que para autores como Sampaio Júnior (2012) tamanha junção entre crescimento econômico e equidade social fosse incompatível em longo prazo.
21Fundamentado na estratégia de coordenação política entre os diversos setores da sociedade civil, como o mercado, os movimentos sociais e, a nível internacional, com os demais países latino-americanos, o presidente Lula representou uma nova era no cenário político-econômico brasileiro. O ponto de ruptura que distinguiu a era Lula frente aos demais governos reside no fato de que, ao mesmo tempo em que adotou a agenda ortodoxa neoliberal na política econômica, por outro lado a contrariou parcialmente, quando da criação e aplicação de um conjunto de políticas de transferência de renda no combate à miséria, com intervenção do Estado ativa para atenuar desigualdades socioeconômicas (Pochmann, 2011).
22Como um dos resultados destas políticas, pode-se citar o Bolsa Família, um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, foi responsável por diminuir em 27% a pobreza extrema no país, contribuindo para reduzir a desigualdade de renda (IPEA, 2010); e, o Programa Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, que teve por objetivo subsidiar habitação acessível para famílias de baixa renda, produzindo em torno de 6 milhões de unidades habitacionais (IPEA, 2015).
23Diante disso, o novo desenvolvimentismo adotado pelo governo Lula apresentou parcialmente a vertente de inspiração keynesiana, sinalizando a complementaridade e parceria entre Estado e Mercado; e o estruturalismo cepalino na defesa da estratégia de transformação produtiva junto à equidade social, buscando viabilizar a compatibilização entre crescimento econômico com melhor distribuição de renda, ainda que com o mercado exercendo significativo domínio. Essa junção demonstra que “essa ascensão do neodesenvolvimentismo mostra que a política de Estado sob os governos petistas tem direção clara e visa ao desenvolvimento capitalista sem, no entanto, romper com alguns pilares do modelo neoliberal” (Boito Jr., 2013, p. 174).
24Em coexistência e complementaridade conflituosa e contraditória, nos parece claro que, sem romper com os fundamentos do modelo neoliberal, o governo Lula passou a aglutinar neoliberalismo, permanecendo enquanto projeto hegemônico na política brasileira, com um cenário de políticas sociais que fogem ao escopo dos princípios neoliberais, corrente denominada de neodesenvolvimentismo (Paccola; Alves, 2018). Apesar disso, os governos Lula estiveram longe de suplantar o neoliberalismo, lograr o desenvolvimento e pôr fim ao regime de exploração e dependência, face histórica do país que se perpetua dia após dia.
25O turismo orbita conflituosamente em torno das duas dimensões que o definem: ao mesmo tempo corresponde a uma prática social e a uma atividade econômica. Sendo um fenômeno social amplo e complexo, o turismo abarca, influi, é influenciado e condicionado por um conjunto de fatores e pelas recônditas esferas da sociedade moderna e contemporânea, sobretudo a econômica e a política.
26O turismo é, inegavelmente, produto da ordem capitalista liberal, emergindo enquanto atividade econômica e de lazer no âmbito do século XIX. Ainda que a atividade somente se consolide ao longo do século XX, os primeiros sinais de surgimento de sua prática coincidem com o período concernente àquele do liberalismo clássico, instituidor do livre mercado burguês no âmbito do capitalismo industrial (Magalhães, 2006).
27O turismo adquire e absorve um largo espectro característico da lógica da mercadoria emergente com os processos de industrialização, internacionalização do capital e os acontecimentos históricos sinalizados pelos avanços tecnológicos, a intensificação da urbanização e as relações conflituosas estabelecidas entre capital e trabalho, todos oriundos da nova sociedade fundada a partir do conjunto das revoluções burguesa, francesa e industrial (Hobsbawm, 2006). Neste sentido, historicamente, o turismo é um fenômeno surgido elementarmente no seio da modernidade e se relaciona com todos os processos a esta concernentes.
28Desta forma, o turismo enquanto prática não está imune à totalidade-mundo e tampouco existe em uma realidade à parte. É preciso considerá-lo enquanto elemento constituidor/produtor ativo e, ao mesmo tempo, produto da sociedade moderna capitalista. Por conseguinte, o turismo é permeado pelas paradoxais e enigmáticas e contraditórias relações, transformações e movimentos advindos e acentuados pelo capitalismo continuamente hegemonizado no espaço-tempo.
29Sobretudo ao longo do século XX, o turismo desponta enquanto atividade econômica quando da emergência e consolidação da moderna sociedade burocrática de consumo dirigido (Lefebvre, 2002) que leva os indivíduos coercitivamente ao processo de compra, inclusive de serviços de lazer, no qual se enquadram os produtos turísticos. Segundo Carlos (2002, p. 49), “[...] O turismo revela, assim, a mudança da relação espaço-tempo no mundo moderno, realizando o espaço enquanto mercadoria ao mesmo tempo em que submete o tempo do lazer ao mundo da mercadoria”, em uma sociedade em que todos os momentos da vida se acham penetrados e dominados pelos intentos de realização da mercadoria.
30Na lógica do capital, o turismo é entendido como atividade econômica que, gradativamente, tornou-se atrativa pela rentabilidade obtida através da crescente geração de riquezas propiciadas de modo que “o turismo e o lazer entram neste momento histórico como momento de realização da reprodução do capital, enquanto momento da reprodução do espaço - suscitadas pela extensão do capitalismo” (Carlos, 2002, p. 49). Ao mesmo tempo, o turismo é distanciado pela hegemonia da abordagem econômica da noção de fenômeno social que abarca outras esferas críticas na qual ele impacta em meio às estratificações de classe da sociedade capitalista.
31Entendido como um importante vetor para a sustentação e ratificação dos mecanismos da reprodução, multilateralmente incorporam-se no turismo as premissas concernentes ao paradigma econômico hegemônico, sob os preceitos do livre-mercado, a competição e a livre-iniciativa. Neste cenário, a defesa do mercado como a via única de desenvolvimento possível da atividade turística dá a tônica do claro direcionamento aos interesses classistas da acumulação e do crescimento econômico.
32Com o neoliberalismo e a mundialização do capital, a atividade econômica do turismo continua sendo apresentada como um atraente setor da economia para investimentos públicos e privados e o exercício da acumulação do capital por meio da dialética da produção social/apropriação privada de riquezas. Mais do que se perpetuar como via “alternativa” (frente à tradicional produção industrial) de desenvolvimento econômico, no inaugurado capitalismo neoliberal globalizado, o turismo assume um papel chave para o sustento do quase-infinito crescimento mundial, configurando-se como uma das principais atividades recrutadas pelo novo momento da longa geografia histórica do capitalismo e central na recém-ascendida economia de serviços.
33Sendo responsável por cerca de 10% do PIB mundial (OMT, 2020), o turismo assume certo protagonismo nos índices econômicos, de modo que os agentes hegemônicos do mercado passam a direcionar ainda mais o produto turístico como um elemento fundamental para o exercício da acumulação do capital a partir dos processos de reprodução e intensificação do estímulo ao consumo. Deste modo, a partir da prática turística busca-se a recuperação das crises do capitalismo e o reinício de um novo ciclo de valorização.
34Consequentemente, o turismo fora impulsionado ao ter expandido o entendimento do setor, ao final do século XX, como importante atividade geradora de riquezas e, portanto, com potencial para propulsionar e protagonizar os índices de crescimento econômico e, supostamente reduzir disparidades sociais entre regiões e auxiliar na superação de crises econômicas.
35Destacam-se como medidas de impulsionamento do turismo, a crescente institucionalização pública e criação de políticas voltadas para o desenvolvimento da atividade no território. No Brasil, desde meados dos anos 1960, e de forma mais incisiva a partir dos anos 1990, o Estado tem dedicado esforços para institucionalizar e induzir, via financiamentos públicos, o setor privado do turismo. Além disso, o estímulo ao provimento de infraestrutura urbano-turística básica, à abertura comercial e à entrada de capitais estrangeiros desempenharam um importante papel na atração de investimentos privados para o país, voltados à aviação comercial e empreendimentos de hospedagem e lazer, ampliando os fluxos turísticos (Figura 01).
Figura 01 – Chegada de turistas estrangeiros no Brasil entre 1986 e 2009
Fonte: BNDES. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (2011).
36Os dados referentes à chegada de turistas estrangeiros no Brasil e dos desembarques ocorridos nos aeroportos brasileiros (Figura 02), apontam para o acréscimo dos fluxos no final do século XX e início do XXI, tendo em vista que as políticas públicas deste período e os investimentos públicos e privado foram destinados para o desenvolvimento do setor do turismo.
Figura 02 – Desembarque de passageiros nos aeroportos brasileiros (em milhões)
Fonte: BNDES. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (2011).
- 2 No entanto, no Brasil, o turismo se tornou matéria de políticas públicas originalmente ainda no com (...)
37No Brasil, o turismo começa a ser vislumbrado pelo novo Estado brasileiro, agora parceiro e indutor do mercado, a ponto de tornar-se matéria de elaboração de amplas políticas públicas a partir dos anos de 19902, no mesmo momento em que o neoliberalismo começa a ser hegemonizado na política e na economia do país. Neste período, seguindo as tendências mundiais, tem-se, o começo de um despertar quanto ao potencial que o setor do turismo teria de atrair investidores e, portanto, capital estrangeiro, de modo a supostamente contribuir com o fortalecimento da economia nacional.
38O turismo passa a refletir o quadro ideológico, político, institucional e econômico globalizado que começam a se fazerem presentes, primeiramente nas políticas e, posteriormente, impressos por meio de ações no âmbito do território brasileiro, de modo a incorporar em discursos e práticas os elementos balizados pelo novo paradigma instituído. Segundo Cruz (2006, p. 337), “com a consagração do neoliberalismo como paradigma econômico e político assistimos, nos anos 90, no Brasil, à fase possivelmente mais aguda da transição de um Estado interventor para um Estado parceiro do Mercado, o que se reflete, no turismo, na forma de políticas públicas comprometidas com a produção e a reprodução do capital vis à vis às inversões públicas”.
39Por outro lado, além do turismo ser apreendido como um promissor setor da economia neoliberal, simultaneamente a atividade turística foi apropriada pelos processos de neoliberalização, refletindo e reproduzindo as tendências do emergido cenário político-econômico neoliberal pautado nas flexibilizações e desregulamentações, coerente com os princípios trazidos pelo então Consenso de Washington. Nos anos 1990, estando o Brasil coadunado com as tendências de liberalização da economia, sob o setor de turismo as novidades do neoliberalismo puderam ser evidenciadas na tendência à desregulamentação do transporte aéreo, das operadoras e agências de viagens; à abertura dos mercados, permitindo a entrada no país de cadeias multinacionais de hospedagem, transporte e agenciamento/operação, em suma, de empresas e corporações turísticas de toda ordem, ensejando um turismo brasileiro consonante com o turismo global, informatizado e mundializado da era neoliberal do capital.
40Em 2003, o eleito Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, ao mesmo tempo em que sinalizou para uma agenda econômica voltada ao atendimento dos pressupostos neoliberais em termos de estabilidade monetária e financeira, sem romper com a cartilha do governo anterior, ensejou também o retorno da perspectiva da busca do desenvolvimento econômico fundada em políticas sociais. Desta forma, entre 2003 e 2011, observou-se uma aglutinação do neoliberalismo, permanecendo enquanto projeto hegemônico na condução da política brasileira, junto a uma espécie de neodesenvolvimentismo, pautado na elaboração e aplicação de políticas públicas voltadas às questões sociais, fugindo ao escopo dos princípios neoliberais.
41No período neoliberal brasileiro dos anos 1990, o Estado exercia importante papel na condução da atividade turística no território nacional a partir da criação de planos e programas orientados pela Política Nacional de Turismo. Durante o processo de neoliberalização no Brasil, o turismo alçou um lugar de destaque jamais historicamente alcançado em termos de volume de políticas públicas por parte do Estado brasileiro, tendo no Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR) uma de suas expressões máximas a partir de meados da década de 90.
42Na era neodesenvolvimentista, a atuação do Estado em termos de elaboração, promulgação e difusão de políticas intensifica-se, justificada pela perspectiva do paradigma que prevê uma maior intervenção estatal na economia. No entanto, no neodesenvolvimentismo brasileiro, o Estado não atua somente na questão da indução e fomento ao setor, mas sim, também legisla em termos de regulamentação, marcando o retorno da intervenção estatal pautada, em alguma medida, no controle.
43Entretanto, no caso do turismo, ao longo dos Governos Lula, percebeu-se, simultaneamente, a defesa da descentralização da gestão do turismo, demonstrando a coexistência de um princípio neoliberal de diminuição da participação do Estado, ao mesmo tempo em que, no neodesenvolvimentismo, este mesmo Estado deve regular parcialmente as atividades econômicas.
44No ano de 2008, na linhagem da atuação do Estado voltado para regular a atividade, o governo Lula implantou o primeiro ordenamento jurídico amplificado para o setor contendo seções e artigos de definição de competências, responsabilidades, regulação e controle: a Lei Geral do Turismo de nº 11.771 que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo (Brasil, 2008). Apesar da importante instituição do marco regulatório para a atividade sob a forma legal com uma lei específica para o setor, o principal legado do governo Lula para o turismo brasileiro foi a criação pioneira, em 2003, do Ministério do Turismo (MTur).
45Como órgão de administração direta, a atividade lograria prerrogativas com um ministério próprio e orçamento exclusivo, direcionado para gerenciar os planos e programas, além de poder articular-se diretamente com os demais ministérios e governos em escala estadual e municipal (Henz et al., 2010).
- 3 A EMBRATUR, criada originalmente como Empresa Brasileira de Turismo em 1966, se tornou Instituto Br (...)
46A criação do ministério também representou o resgate dos postulados de controle por parte do Estado, uma vez que lhe foram designadas as tarefas de regulamentação e normatização. Neste contexto, o então Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR)3 foi retirada das suas antigas funções para assumir unicamente as de execução das atividades de promoção, marketing e apoio à comercialização do destino turístico Brasil internacionalmente, de modo que as questões concernentes às decisões políticas e administrativas ficaram a cargo do novo ministério criado (Santos, 2017). A criação do MTur e as novas funções designadas à EMBRATUR inegavelmente apontaram para novos horizontes no planejamento e gestão do turismo no âmbito do setor público federal/nacional.
47No entanto, apesar de representar o enfoque especial da esfera federal dado para a atividade e significar um considerável avanço para o setor, o recém-inaugurado MTur ao passo que delineou novas ações e estratégias de incentivo para o turismo brasileiro, também continuou a pautar as políticas públicas de turismo baseadas em diretrizes antigas advindas dos governos e, consequentemente, do paradigma neoliberal. Isto tornou-se evidente com a averiguação dos planos nacionais de turismo lançados que, sem transpor à leitura do turismo que vinha sendo construído ao longo dos governos anteriores, continuava a propagar a atividade turística como um importante negócio.
48Além disso, os planos demonstram a intenção de reduzir as desigualdades regionais a partir da geração de emprego e renda mediante atração de investimentos estrangeiros, o estímulo à competitividade entre destinos, o aumento da participação do turismo nos índices econômicos nacionais, e a promoção da descentralização na gestão da atividade no país (Brasil, 2003; Brasil, 2007).
49No entanto, Becker (2001) já alertava que, embora tenha havido intensas lutas políticas para o fim do regime autoritário e seu centralismo, por outro lado deve haver certa cautela quanto aos riscos da diluição do poder em uma descentralização desregrada que estimula a competição agressiva entre os lugares. Desta forma, segundo a visão da autora, cabe à escala federal regular tamanha disputas que ocorrem entre os Estados, sobretudo no pleito de recursos, o que não ocorre, posto que este segue em via contrária ao incentivar a prática do jogo competitivo entre destinos e cidades, tipicamente neoliberal.
50Em contrapartida, abordagens inovadoras foram estimuladas no âmbito das políticas de turismo a partir de 2003, ainda que com baixo êxito e concretização. Neste sentido, se destacam as premissas da inclusão social com incentivo ao turismo doméstico e a inserção das classes de menor poder aquisitivo nas práticas turísticas; do estímulo ao desenvolvimento endógeno e do desenvolvimento local alicerçados nos pilares da sustentabilidade (Ramos, 2010).
51A demonstração da condução política que seria dada ao turismo a partir do governo Lula começa a ser delineada quando o MTur lança um novo Plano Nacional de Turismo 2003-2007 (Brasil, 2003). O plano propôs que o planejamento e a gestão do turismo no Brasil deveriam ser fundados nos princípios da ética, da sustentabilidade, da redução das desigualdades e da geração e distribuição de emprego e renda, além do apelo econômico quanto à criação do produto turístico brasileiro de qualidade e ao estímulo ao consumo deste no mercado nacional e internacional (Candiotto; Bonetti, 2015).
52Seguindo as premissas propostas pelo PNT, também foi lançado o Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil (PRT), em 2004, com o objetivo de planejar e ordenar a oferta turística através, sobretudo, da elaboração de rotas e roteiros turísticos. O PRT alterou a escala da municipalização do Programa Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT), criado nos anos 1990, para o panorama regional, como estratégia de planejamento e gestão, promoção e comercialização, visando e propondo ampliar as ações que eram, anteriormente, centradas no âmbito municipal para as regiões que seriam criadas e classificadas enquanto turísticas (Candiotto; Bonetti, 2015).
53Apesar do programa ser voltado para a escala regional, a defesa da descentralização na gestão do turismo continuou dando a tônica também no PRT. O PRT prolongou as problemáticas na metodologia de gestão que estavam ocorrendo desde o PNMT ligadas ao caráter mecânico e aleatório que desconsiderou as especificidades de cada realidade nas aplicações das proposições contidas no programa (Cavalcanti; Hora, 2002). Neste sentido, Ramos (2010) critica o direcionamento advindo do MTur voltado para a regionalização ao apontar a problemática quanto à continuação da defesa da instituição da governança local mediante a gestão participativa, posto que o programa ignora as complexidades do processo de participação.
54Além de desconsiderar os anseios e particularidades locais quanto à elaboração dos produtos turísticos, bem como do desenvolvimento ou não da atividade turística nos seus territórios, “[...] o discurso dos programas políticos do Ministério do Turismo ignora completamente as estruturas de poder local e, embora se centre na regionalização, enfatizando as características específicas de cada região, desconsidera a diversidade” (Ramos, 2010, p. 30).
55Desta forma, o PRT se voltou para a criação de produtos turísticos a partir da elaboração de rotas e roteiros que se apropriassem dos elementos atrativos de cada localidade para os rentabilizar no mercado turístico, visando agregar vantagens competitivas para cada destino que compusesse uma determinada região turística.
56Correlato aos objetivos do Plano Nacional de Turismo, o PRT, em suma, visava à atração de turistas domésticos e estrangeiros aos novos produtos formatados, a fim de incrementar a geração de divisas, iluminando a faceta econômica do turismo como uma prioridade nas estratégias de gestão delineadas para o desenvolvimento da atividade turística no país. Portanto, assim como o PNT, o PRT também se apresenta como uma política concatenada com as tendências de neoliberalização do turismo.
57No seguinte mandato de Lula da Silva (2007-2011), houve a publicação do segundo Plano Nacional de Turismo (PNT 2007-2010) (Brasil, 2007) vinculado e integrado ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) mediante a retórica de que “todos os brasileiros possam se beneficiar com a prática da atividade, seja como turista, ou como trabalhador, prestador de serviço, empresário, entre outros” (Santos, 2017, p. 107, tradução nossa).
58A propositura deste PNT esteve mais ligada discursivamente à promoção da inclusão social ao pretender socializar a prática turística com o incremento do turismo doméstico tanto em produção, quanto em consumo. No entanto, observa-se a continuidade de antigas diretrizes pautadas em preocupações quanto aos fatores econômicos, como o estímulo à competitividade através da geração de emprego e renda e da melhoria da qualidade e diversificação do produto turístico. É evidente que há uma simplificação da solução proposta para a questão da exclusão social que não considerou a complexidade do conceito que está para além dos termos econômicos e que transpassa a inserção precária de indivíduos no mercado produtivo do turismo.
59 Ainda que presentes nos discursos das políticas de turismo, a premissa do aumento das viagens por parte das classes populares, como forma de inclusão social, se concretizou muito mais devido ao cenário de prosperidade socioeconômica fruto da melhoria da renda e aumento do emprego no cenário macroeconômico, do que de ações pontuais advindas dos planos nacionais de turismo. Contudo, apesar das debilidades e ineficiência dos planos na ênfase da função social do turismo, neste período (2003-2011), novos cenários se consolidaram no planejamento e na gestão pública do turismo com a expansão, conexão e continuidade das políticas voltadas ao setor. Além disso, ainda que insuficientemente e de forma precária, o turismo enquanto prática social foi iluminada por estas políticas através da proposição de integração das classes menos favorecidas às práticas relacionadas às viagens.
60Essa perspectiva difere significativamente do modelo neoliberal seguido e aplicado na atividade turística dos anos de 1990, reproduzido em políticas concatenadas exclusivamente aos interesses do mercado, no qual, este, por sua vez, enfocava nas classes de maior poder aquisitivo enquanto público-alvo de suas estratégias de marketing, tornando a prática turística elitizada e exclusiva/excludente.
61Assim como aconteceu no governo Lula da Silva em diversos setores, conforme debatido anteriormente em termos da dicotomia entre as políticas econômicas e as políticas sociais, a atuação voltada ao turismo se apresenta de uma forma dúbia e dupla, e reflete o caráter contraditório e conflituoso da confluência e simultaneidade de dois paradigmas opostos em um único governo: o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo.
62Desta forma, as políticas de turismo são influenciadas por ambas as perspectivas: ora se apresentam com inclinações neoliberais, com a defesa irrestrita da atividade turística como importante setor para o crescimento econômico nacional com os princípios da competição e da descentralização; ora com tons neodesenvolvimentistas, com ações e perspectivas de inclusão social via viagens, o turismo aparece como estratégia de desenvolvimento local. Ou seja, evidencia-se que há uma tentativa de equilíbrio entre o turismo como ferramenta de desenvolvimento econômico nacional nos moldes do capital, ao mesmo tempo em que é alinhado à tentativa de equidade social em pequena escala.
63O “neodesenvolvimentismo brasileiro” criou dispositivos de governança no turismo marcados pela lógica da coprodução de políticas e operacionalização por agentes regionais/locais através das parcerias público-privadas para execução do papel do Estado. Este modelo impõe ferramentas neoliberais ao oferecer como contrapartida ao mercado de capitais e grandes grupos operadores do turismo, a ação facilitadora estatal, a mercantilização da natureza e a oportunidade de inserção do capital internacional no controle de infraestruturas e redes estratégicas de viabilização do desenvolvimento da atividade turística.
64Esta configuração suscita questionamentos em torno dos desdobramentos e mudanças substanciais operadas por estas políticas, no sentido de apresentar uma perspectiva inclusiva socioeconômica e espacialmente distribuída ou mantenedora do caráter concentrador da atividade turística. A realidade aponta somente para o incremento da “guerra dos lugares” entre os destinos consolidados, que realmente ampliaram e diversificaram sua oferta, e os destinos embrionários, que emergiram como “ilhas de prosperidade” mormente pertencentes ao capital internacional que inseriu uma dupla e contraditória retórica de “desenvolvimento” ao incidir diretamente na mercantilização da natureza e na criação de infraestruturas espaciais públicas.
65Ainda que estas premissas em torno do crescimento turístico apareçam como receitas prontas de desenvolvimento regional ou mesmo nacional, a “mão invisível” implacável do capitalismo neoliberal impera ampliando novas formas de “desenvolvimentos geográficos desiguais” através de sucessivas desregulamentações e flexibilizações de regras, como as leis ambientais e a desregulação do tráfego aéreo.
66Neste sentido, nos dois governos Lula da Silva (2003-2011), a perspectiva dual do neodesenvolvimentismo e a manutenção do neoliberalismo teceu o emaranhado perfil dos programas e planos colocados em prática na agenda de desenvolvimento brasileiro. O direcionamento estratégico destas políticas confirma a manutenção dos pressupostos do neoliberalismo sobre a atividade turística no Brasil, uma vez que mantém o status quo entre os donos dos meios de produção (corporações do turismo), ao mesmo tempo em que apontam para as expectativas de autossuficiência inconclusas de comunidades supostamente sustentáveis, que foram geradas pelas iniciativas neodesenvolvimentistas.