Agradecemos às lideranças comunitárias dos três casos analisados que prontamente atenderam nossa demanda de entrevistas e visitas in loco: Luciana Balbino, de Chã de Jardim; Nevinha e Dona Luísa, de Doces Tambaba e o coletivo de jovens do Porto do Capim. Agradecemos o apoio dado pela Rede Internacional de Pesquisa Turismo e Dinâmicas Socioterritoriais Contemporâneas e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que fomentou a pesquisa por meio dos recursos da Chamada Universal-CNPq/2021, processos nº 406374/2021-0 e nº 404252/2021-4.
1A partir dos anos de 1990, o ideário de Estado neoliberal começou a nortear as ações governamentais no Brasil. Inseridas nesse paradigma, as políticas de turismo privilegiaram obras estruturantes (aeroportos, rodovias, saneamento e projetos urbanísticos), no sentido de capitalizar o território para atração de investimentos e promover o país no exterior, evidenciando a opção por uma prática turística que tende a favorecer os grandes mercados e investidores, em conformidade com a doutrina neoliberal (Harvey, 2008), na qual o território é entendido enquanto um recurso para a produção de riquezas (Santos et al., 2000).
2Concomitantemente, observa-se o crescimento das discussões sobre sustentabilidade, e, a partir dos anos 2000, o fortalecimento de ações contra-hegemônicas (Santos, 2009, 2012), a exemplo do Turismo de Base Comunitária (TBC) (Moraes, Irving, e Mendonça, 2018; Coriolano e Sampaio, 2013), no qual as comunidades assumem protagonismo, valorizando a economia, os ecossistemas e a cultura locais.
3Dentre as características do TBC apontadas na literatura brasileira (Coriolano e Lima, 2003; Maldonado, 2009; Irving, 2002, 2009; Mendonça, 2009; Oliveira e Marinho, 2009; Moraes et al., 2018; Moraes et al., 2020) figura a defesa do território, que aparece em algumas demandas comunitárias, inclusive naquela tida como pioneira dessa prática no Brasil. Foi o caso da comunidade de pesca artesanal Prainha do Canto Verde, no litoral cearense, que se mobilizou via TBC para fortalecer seu território e cultura contra o avanço de megaempreendimentos que ameaçavam sua permanência (Moraes, 2019) .
4Dentro dessa perspectiva de resistência às ofensivas do capital sobre os territórios, se propõem uma investigação de três comunidades do estado da Paraíba, localizadas no Nordeste brasileiro: Chã de Jardim, no município de Areia; Doces Tambaba, no Conde; e Porto do Capim, em João Pessoa, capital do estado. Em comum, elas têm apostado no TBC como movimento de resistência territorial às intervenções públicas de cunho neoliberal, em um contexto em que a posse ou permanência na terra constitui um aspecto importante nas comunidades.
5Diante do exposto, o objetivo do trabalho é analisar os fatores motivadores e as estratégias de ações para o desenvolvimento do turismo de base comunitária em Chã de Jardim, Doces Tambaba e Porto do Capim. A partir da problemática apontada, o presente trabalho procura contribuir para a compreensão dessa perspectiva de turismo na realidade brasileira, mesmo dentro de um contexto neoliberal adverso.
6A perspectiva teórica que fundamenta este trabalho concebe o espaço como um sistema de objetos e sistemas de ações que interagem de forma recíproca e dialética (Santos, 2009), tendo como resultante o território usado (Santos, 2012). Este, por sua vez, refere-se à territorialização decorrente da função assumida por parcelas do espaço oriunda da divisão territorial do trabalho. Dessa forma, o espaço é territorializado através do seu uso.
7A partir desta perspectiva teórico-metodológica, foi feito uma busca de trabalhos cuja abordagem do TBC contemplasse a luta pela terra, tais como Coriolano (2009) e Sansolo e Burztyn (2009), ou ressaltassem a valorização do local (cultura, atividades e empregos) como característica central dessas iniciativas, dentre os quais ressaltam-se Irving (2009), Silva, Ramiro e Teixeira (2009), Gómez et al. (2015), Lima; Irving e Oliveira (2022). Consultou-se também outras publicações relevantes que têm como foco a discussão sobre o TBC na realidade brasileira, buscando entender as abordagens dos estudos já desenvolvidos. Nesse sentido, é importante destacar a biblioteca virtual da TBC-REDE que cataloga os trabalhos dessa tipologia de turismo produzidos no Brasil.
- 1 Essa pesquisa foi desenvolvida ao longo de dois anos através de editais internos de Iniciação Cient (...)
8Quanto ao mapeamento dos TBCs existentes no Nordeste brasileiro (Figura 2), este foi elaborado a partir de informações coletadas por meio de banco de teses e dissertações e plataformas digitais como Google Scholar, SciELO, Redalyc, somado a redes sociais como Facebook e Instagram. Nesses mecanismos de busca foram utilizados os termos: “Turismo de base comunitária”; “turismo comunitário”; “TBC”. Totalizaram-se 529 documentos entre teses, dissertações, monografias, artigos, websites, vídeos e páginas em redes sociais. Ademais, realizaram-se pesquisas online e por telefone em agências de viagens e receptivos, em organizações sociais, coletivos e redes de TBC1.
9Posteriormente, realizou-se uma análise dos documentos existentes sobre as políticas públicas de turismo preconizadas pelo governo brasileiro, observando como o TBC vem sendo inserido nos Planos Nacionais de Turismo (MTUR, 2013; 2018). Também foram consultadas as recentes publicações que fazem uma sistematização das políticas nacionais e estaduais de turismo no Brasil a partir de 2008 (MTUR, 2023a), quando houve a primeira iniciativa de promoção do TBC através do Edital de Chamada Pública de Projetos MTur/Nº 001/2008. Esse documento também traz o quantitativo de TBC no Brasil, no que se refere ao número de iniciativas, projetos em cada macro-região e redes já estabelecidas.
- 2 Expo Favelas é uma feira de negócios que acontece anualmente no Brasil desde 2022. Os expositores s (...)
- 3 O prêmio é um reconhecimento às organizações que colaboram com o trabalho comprometido dos profissi (...)
10Segundo levantamento do MTUR (2023b), no Estado da Paraíba existem 10 comunidades envolvidas com TBC, encontradas no interior e litoral. Para uma análise mais qualitativa foram selecionadas três iniciativas que vêm se destacando. Em 2023, duas dessas comunidades foram finalistas do prêmio Expo Favelas 2023, onde o Doces ganhou o prêmio de uma das dez inciativas mais inovadoras.2 Ademais, o TBC mais antigo do estado, Chã de Jardim, ganhou o prêmio Open Passport da Organização Mundial de Jornalismo Turístico,3 ressaltando seu impacto social. Em fevereiro de 2024, portanto, foram realizados trabalho de campo e entrevistas com as lideranças de cada comunidade. Adotou-se um roteiro de entrevista semiestruturado com finalidade de compreender dois elementos que permeiam esse estudo: os fatores motivadores para a implantação do TBC e as estratégias adotadas para sua promoção.
11Duas comunidades alvo da pesquisa encontram-se em áreas rurais (Chã de Jardim/Areia e Assentamento Tambaba/Conde) e uma em área urbana (Porto do Capim/João Pessoa), conforme apresentado no Mapa 1.
Figura 01: Localização da área do estudo
Fonte: IBGE (2022)
12Na comunidade do Assentamento Tambaba/Conde, responsável pelo TBC Doces Tambaba, foi feita uma roda de conversa envolvendo a responsável pelas primeiras iniciativas, a liderança atual e outro colaborador do projeto, compreendendo 3 participantes (2 mulheres e 1 homem); ocorreu também uma roda de conversa com o coletivo de jovens que lidera o TBC em Porto do Capim/João Pessoa, envolvendo seis participantes (4 mulheres e 1 homem); e finalmente, em Chã de Jardim/Areia foi realizada uma entrevista com a principal liderança do projeto TBC desde o início da atividade (1 mulher).
13Os processos de exploração e expropriação de territórios continuam a ser uma marca do resultado das relações capitalistas e do aprofundamento sistemático dessas relações datadas do último quarto do século XX (Sassen, 2016). A requisição de áreas para as atividades primárias, transferências de passivos ambientais da indústria, projetos de infraestrutura e de urbanização, além das novas formas de relações trabalhistas, são algumas das frentes dessa ordem econômica.
14Entretanto, perante as pressões por abertura de novas frentes de operação, as atividades econômicas pautadas pelas corporações empresariais encontram resistências dos grupos previamente estabelecidos nos territórios. Nos contextos de imposição e dominação, forjam-se conhecimentos, alternativas econômicas, práxis políticas de resistência dos grupos populacionais atingidos, organizando-se pelo desejo de permanecer no local de identidade, ou até mesmo, pela necessidade de continuar existindo, como apontado por Santos (2012), Porto-Gonçalves (2017) e Boaventura Santos (2019, 2022).
15O avanço do modelo econômico neoliberal tem provocado, portanto, um contrassenso na forma que os territórios são percebidos. Se para os protagonistas desse modelo (o grande capital e o Estado), o território é fonte de oportunidades de reprodução e acumulação do capital, portanto um recurso, o mesmo território adquire o status de abrigo para os grupos populacionais e atividades que se reproduzem de forma diferente em termos produtivos, políticos, culturais (Santos et al., 2000).
16Capturada como uma prática social a serviço da acumulação capitalista, o modelo convencional de turismo evolui pari passu com o capitalismo globalizado contemporâneo, que, em geral, não está preocupado com questões sociais, ambientais ou culturais do local onde empreende (Coriolano e Sampaio, 2013; Moraes et al., 2020); assim como os governos, que, ao reduzirem o turismo a um instrumento de crescimento econômico, com frequência promovem as ações que beneficiam tão somente os projetos de interesse do grande capital (não raro, internacional), abdicando de uma visão desenvolvimentista ampla, para abraçar uma visão restrita, posto que apenas números de emprego não traduzem melhorias sociais de uma população, bem como não significam inclusão.
17Em outra perspectiva, o TBC passou a ser reconhecido como uma prática contra-hegemônica (Coriolano e Sampaio, 2013; Moraes et al., 2020; Kiyotani, Magalhães e Ferreira, 2022), com princípios norteadores de maior inclusão e justiça social, maior solidariedade entre os povos e sustentabilidade ambiental e cultural (Bartholo et al., 2016; Lee, Jan, 2019).
18O presente estudo se baseou na pesquisa desenvolvida por Lima, Irving e Oliveira (2022, p.6), onde foram sistematizadas as premissas de TBC convergentes na literatura brasileira, sendo elas: “a) o protagonismo local, b) a autogestão, c) a geração de benefícios econômicos para as populações locais, d) a valorização da cultura local, e) o compromisso de proteção da natureza, f) a oportunidade do encontro entre visitantes e visitados, e g) o compromisso de melhoria da qualidade de vida e bem-estar das populações locais”.
19Ao longo das décadas, desde meados dos anos de 1980, as iniciativas de TBC passam a ser incorporadas às estratégias políticas dos movimentos de resistência e preservação de territórios ancestrais da América Latina, como resposta às pressões dos mercados globais sobre os patrimônios naturais e culturais de comunidades rurais e indígenas (Maldonado, 2009). Ou seja, TBC e resistência (territorial) estão imbricados desde as primeiras experiências sul-americanas.
20No Brasil, as primeiras iniciativas de TBC surgem na década de 1990 e sua organização em redes ocorre no início dos anos 2000, sendo estimuladas por ONGs e sociedade civil, atuantes em comunidades de pescadores, camponeses, quilombolas, ribeirinhos e indígenas (Moraes, Mendonça e Estevão, 2023; Moraes, et al., 2024). A partir de 2003, verifica-se a criação da Rede Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário (Rede Turisol) e da Rede Cearense de Turismo Comunitário (Rede Tucum), e a Rede Batuc, em 2005, com grande repercussão no território nacional, às quais se seguiram outras: Rede Nhandereko (2006), Redetur (2011), Rede Caiçara (2013), Rede de Turismo Rural Consciente (2020) e a Rede de Turismo de Base Comunitária da Paraíba (2021) (MTUR, 2023a).
- 4 Mais informações sobre os procedimentos adotados pelo Edital podem ser adquiridas em: MTUR. Dinâmic (...)
21No que se refere às ações governamentais, a Chamada Pública de Projetos para apoio às iniciativas de turismo de base comunitária através do Edital 01/2008, efetuada pelo Ministério do Turismo (MTUR), constitui uma referência no Brasil. Por meio desse edital, o MTUR selecionou e apoiou 50 ações de TBC distribuídas pelo país (Silva; Ramiro; Teixeira, 2009)4. Entretanto, após essa iniciativa, a descontinuidade nas políticas públicas de turismo e a falta de incentivos financeiros acabaram por desarticular muitas das iniciativas que vinham se fortalecendo (Bartholo et al., 2016).
22Já em 2017, quase uma década após, um edital do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio) selecionou e apoiou nove propostas de TBC que atuavam em Unidades de Conservação (UCs) (ICMBio, 2019). Em 2024, foi lançado novo edital do ICMBio que apoiará seis iniciativas de TBC que atuam dentro de UCs, sendo quatro na Amazônia e duas em outros biomas.
23Ainda sobre políticas de turismo, em documento recente divulgado pelo Mtur (2023b), reconhece-se 40 iniciativas de TBC nacionais, localizando-as dentre as regiões geográficas brasileiras. Chama atenção o fato do Sudeste ser a região onde o TBC se expandiu mais significativamente, contando com 45% do conjunto nacional, uma vez que ali também se concentra o turismo convencional (Fonseca et al., 2022). A região Nordeste engloba 20%, as regiões Sul e Norte com 15% cada uma e o Centro Oeste com 5% do total (Tabela 1).
Tabela 01: Distribuição das iniciativas de Turismo com Base Comunitária no Brasil – 2022
Região
|
UF
|
Número (%)
|
Sudeste
|
São Paulo
|
8 (20)
|
Sudeste
|
Rio de Janeiro
|
5 (12.5)
|
Sudeste
|
Minas Gerais
|
4 (10)
|
Sudeste
|
Espírito Santo
|
1 (2.5)
|
Total
|
|
18 (45)
|
Nordeste
|
Bahia
|
3 (7.5)
|
Nordeste
|
Ceará
|
2 (5)
|
Nordeste
|
Paraíba
|
2 (5)
|
Nordeste
|
Maranhão
|
1 (2.5)
|
Total
|
|
8 (20)
|
Sul
|
Santa Catarina
|
3 (7.5)
|
Sul
|
Rio Grande do Sul
|
2 (5)
|
Sul
|
Paraná
|
1 (2.5)
|
Total
|
|
6 (15)
|
Norte
|
Amazonas
|
5 (12.5)
|
Norte
|
Tocantins
|
1 (2.5)
|
Total
|
|
6 (15)
|
Centro-oeste
|
Goiás
|
1 (2.5)
|
Distrito Federal
|
Distrito Federal
|
1 (2.5)
|
Total
|
|
2 (5)
|
Overall total
|
|
40 (100)
|
Fonte: MTUR (2023b).
24Durante a presente pesquisa, observou-se discrepância dos dados, segundo distintas fontes, de modo que não é possível afirmar com segurança o número de experiências e localidades que promovem o TBC no país. A incerteza quanto a esse número evidencia a falta de prioridade em relação a essa prática turística. Contudo, tal fato não inviabiliza o estudo e se constitui em mais um dado para análise.
- 5 Como posto na metodologia, considerando a discrepância de dados em diversas fontes, para a realizaç (...)
25Apesar dos dados oficiais apontarem apenas 40 iniciativas para todo o Brasil, em um levantamento5 especificamente da região Nordeste, identificou-se 69 práticas de TBC, destacando-se os estados da Bahia e Ceará (Figura 2). Vale pontuar que nesses estados atuam redes de cooperação e fomento às comunidades interessadas em desenvolver propostas de TBC.
Figura 02: Distribuição das ações do turismo de base comunitária na região Nordeste – 2023
Fonte: Mtur, 2023b, dados da pesquisa (2024).
26A partir das informações e dados expostos, pode-se verificar que o TBC vem avançando no Brasil desde os anos 2000, tanto nas iniciativas locais quanto na constituição de redes envolvendo várias comunidades.
27O período entre os anos de 2003-2014 configurou maior abertura às demandas sociais no Brasil, e, consequentemente, de pautas e investimentos em maior equidade social, tendo sido sentido também nas políticas de turismo, incluindo o TBC. Entretanto, esse período foi interrompido com a crise política instalada a partir de 2016. O avanço da pauta neoliberal no país (2016-2022) propiciou um retrocesso nas políticas de apoio às iniciativas que envolviam o TBC. O recrudescimento da política neoliberal ratifica a necessidade de considerar o viés contra-hegemônico de produção econômica, política e cultural do TBC, como estratégia para assegurar a posse da terra e a permanência no território, conforme será discutido nos casos analisados no presente trabalho.
28O turismo, como já indicado, contribui nos processos de expropriação de territórios, por exemplo, com a instalação de grandes complexos hoteleiros e imobiliários e projetos de “requalificação urbana”. No Nordeste brasileiro, região marcada por um contexto histórico de concentração de terras, tais efeitos foram acelerados pela implementação de políticas de incentivo ao turismo, a partir dos anos de 1990, com a intensificação do alinhamento político neoliberal. É, entretanto, nesse cenário de adversidades, marcado por expropriação de terras, especulação imobiliária, superexploração da força de trabalho, que comunidades se organizaram para desenvolver as primeiras iniciativas de TBC na região (Coriolano, 2009), apesar da invisibilidade dessa prática nas políticas públicas de turismo.
- 6 “João Pessoa é o 3º destino mais procurado do Brasil e registra crescimento de 145,10% nas reservas (...)
- 7 “João Pessoa desponta como um dos destinos mais procurados do mundo para 2025”. Disponível em: http (...)
29No que tange ao estado da Paraíba, até pouco tempo atrás esse era um destino turístico de pouca notoriedade, mesmo no convencional “turismo de sol e mar”. O contexto começa a mudar a partir de 20216, quando campanhas de marketing passam a atrair maior fluxo de turistas, consagrando João Pessoa como um dos destinos mais procurados do mundo7. Mas a Paraíba vem adquirindo destaque também com iniciativas de TBC, que vem repercutindo no país e até internacionalmente, são elas: Chã de Jardim, Doces Tambaba e Vivenciando o Porto do Capim.
30A comunidade Chã de Jardim está localizada no município de Areia, nas bordas do Parque Estadual Mata Pau Ferro. Com a criação dessa Unidade de Conservação, na década de 1990, alguns comunitários que ali habitavam foram removidos e passaram a viver no seu entorno (Figura 3), surgindo a necessidade de desenvolver alguma atividade nas imediações da reserva que compensasse aquelas deixadas dentro da mata. Em 2006, provocado pela gestão do Parque, um grupo de jovens comunitários formou a Associação para o Desenvolvimento Sustentável da Comunidade Chã de Jardim (ADESCO), com foco na realização de cursos de capacitação no campo do associativismo e empreendedorismo. Sobre a criação da ADESCO e o início do trabalho conjunto, a líder comunitária reflete:
“A associação foi montada com aquelas pessoas que saíram da Mata e os jovens que moravam no entorno [...] para as famílias removidas foram construídas casas nas margens da rodovia que circunda a Mata, foi construído uma loja de artesanato e uma fábrica de polpa de frutas [...] na teoria, o projeto era maravilhoso, dizia-se que não era mais permitido criar ou plantar, pois passou a ser crime, e as pessoas removidas viveriam com a estrutura construída [...] o problema foi que não houve capacitação, e em dez anos iniciou-se um processo de saída dessas pessoas. Os que permaneceram e aderiram à Associação, hoje vivem do TBC”. (Liderança TCB Chã de Jardim)
31Assim, o desejo de permanência no local de origem, a partir da melhoria das condições de vida dos integrantes da comunidade, passa a ser uma realidade proporcionada pelo desenvolvimento do TBC.
32A partir da vivência com o ecossistema, esses jovens desenvolveram e passaram a ofertar o serviço turístico denominado “Trilha no Parque” e, posteriormente, o “Piquenique na Mata”. Com a consolidação dessas atividades, surgiu uma série de demandas por novos serviços, estimulando a estruturação de novas experiências e empreendimentos turísticos. Pode-se destacar a abertura de um restaurante rural que elevou Chã de Jardim a um patamar de exemplo nacional. Mais recentemente, em 2021, foi inaugurada uma pousada.
Figura 03: Comunidade Chã de Jardim
Fonte: Chã de Jardim (@chadejardim)
33Já a comunidade do Assentamento Rural Tambaba, situado no município do Conde, no litoral paraibano, e ganhadora do prêmio ExpoFavela, tem sua história marcada pela luta pela permanência no território (Figura 4). Sua posse da terra foi ameaçada por ação judicial, associada a atos de violência e expulsão de famílias ali instaladas. Contudo, inspiradas na iniciativa de Chã de Jardim, as idealizadoras do empreendimento “Doces Tambaba” também vislumbraram alternativas para melhoria das condições de vida nesse assentamento, tendo como motivação alterar o quadro histórico de tentativas de expulsão e de ocupação de postos de trabalho marginais que, por diversos fatores, estimularam o êxodo de pessoas.
34Foi assim que, em 2013, lideranças femininas iniciaram as primeiras atividades ligadas ao turismo, com a venda de doces artesanais expostos nas margens da rodovia de acesso às praias locais. Um ano depois foi possível edificar uma loja rústica do Doces Tambaba, conforme relatado pela liderança do projeto:
“Quando chegamos aqui isso era uma mata, as terras pertenciam a um coronel, que nos impôs um grande desafio, muita gente apanhou, outros foram ameaçados de morte, ao todo, passamos por seis despejos, quando também ateavam fogo nas estruturas que construímos. Há 37 anos essas terras foram desapropriadas e transformadas em assentamento. Nesse intervalo de tempo, muitos saíam pra procurar trabalho fora, a gente mesmo trabalhava para os outros. O doce foi a transformação de toda essa comunidade, porque hoje as pessoas dessa comunidade que um dia trabalharam para os outros, trabalham para si próprias, eles são donos de restaurante, de camping, de pousada. O Doces Tambaba fez com que as pessoas permanecessem dentro desse assentamento para não ter que abandonar e viver na área urbana” (Liderança TBC Doces Tambaba).
35Motivadas pela consolidação do primeiro empreendimento, outras mulheres da comunidade começam seus negócios no assentamento e atualmente o local é conhecido como Shopping Rural Tambaba, contando com 11 negócios familiares (Nagabe, 2019).
Figura 04: Comunidade Assentamento Tambaba/Doces Tambaba
Fonte: Extreme Move (2018)8
36Já a iniciativa de TBC intitulada “Vivenciando o Porto do Capim”, situada na área urbana e histórica de João Pessoa, foi idealizada pelo grupo de jovens (mulheres e homens) da comunidade do Porto Capim, a partir da necessidade identificada pela Associação de Mulheres da comunidade (Figura 5).
Figura 05: Comunidade Porto Capim/Vivenciando Porto Capim
Fonte: Coletivo de Jovens do Porto Capim (2024)
37A relação histórico-identitária dessa comunidade com o ambiente ribeirinho remonta ao início do século XX, quando seus primeiros moradores se instalaram às margens do Rio Sanhauá, em função da construção do primeiro porto da capital, desativado em 1940. As primeiras mobilizações começaram em 2015(16), surgidas da necessidade de comprovar a relação tradicional com o território ribeirinho, conforme fala de uma das lideranças comunitárias:
“A principal motivação para o Vivenciando o Porto do Capim se tornar um projeto de turismo foi fortalecer as narrativas da comunidade, ele é palco para as narrativas do Território Ribeirinho do Porto do Capim [...] A proposta de turismo surge primeiramente como fortalecimento das narrativas da comunidade, segundo como capitalização, pra gente rentabilizar o que a gente já fazia, e terceiro, contrapor a narrativa da prefeitura de remoção da comunidade.” (Liderança do Vivenciando Porto do Capim)”
38Esse movimento relatado acima ocorreu em decorrência de um projeto urbanístico liderado pelo governo local com a finalidade de requalificar a área, implicando, dessa forma, na remoção da comunidade.
39Em comum, como já enunciado, essas três comunidades perceberam no turismo de base comunitária a oportunidade de permanecer nos seus territórios, através da geração de trabalho e renda. Acrescente-se que, para as comunidades de Assentamento Tambaba e a Comunidade Porto do Capim a permanência também significa a comprovação do vínculo necessário para garantir conquistas no âmbito de processos jurídicos que ameaçam suas terras.
40Importante perceber nas falas das lideranças como a necessidade de defesa ou de permanência na terra ocupada foi fator motivador para iniciar o TBC, assim como auferir rendimentos que possibilitem o sustento de suas populações e manter preservadas as condições naturais e os aspectos culturais que marcam seus modos de vida. Essas motivações se entrelaçam, formando complexos cenários que remetem a dimensões territoriais de suas existências.
41A partir da pesquisa realizada com as lideranças foi possível delinear um quadro síntese dos principais fatores motivadores para o desenvolvimento do TBC e as estratégias de ação presentes nas três comunidades (Quadro 1).
Tabela 02: Caracterização das ações de turismo de base comunitária – 2024
Características
|
Chã de Jardim
|
Doces Tambaba
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Vivenciando o Porto
|
Ano de criação
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2006
|
2013
|
2015
|
Lideranças
|
Protagonismo feminino
|
Protagonismo feminino
|
Protagonismo feminino
|
Fatores motivadores
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Fonte de renda, permanência no território e melhoria da qualidade de vida
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Permanência no território, fonte de renda e melhoria da qualidade de vida
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Defesa do território, fonte de renda.
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Tipologia/Identificação étnico-social
|
Comunidade Rural/ camponês
|
Comunidade Rural/ camponês
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Comunidade Urbana/ribeirinhos
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Forma de gestão
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Associativismo
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Autogestão familiar
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Coesão comunitária
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Serviços
comercializados vinculados ao TBC
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Trilhas guiadas na mata; oficinas; serviços de alimentação; hospedagem; venda de produtos artesanais
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Venda de produtos artesanais
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Guiamento na comunidade; serviços de alimentação; passeios de canoa
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Efeito multiplicador
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Compra de produtos de outras comunidades; criação de empregos diretos e indiretos; empreendedorismo (associativo)
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Compra de produtos de outras comunidades; criação de empregos diretos; empreendedorismo (familiar)
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Trabalho voluntário; compra de produtos de comunitários
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Estratégias promocionais
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Mídias sociais, reportagens (tv, jornais, revistas), agências de turismo regional e nacional
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Mídias sociais e reportagens (tv, jornais), guias de turismo local
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Mídias sociais
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Fonte: Dados da pesquisa (2024)
42Destaca-se, a princípio, no perfil dessas iniciativas, a liderança feminina, que esteve presente desde a concepção da ação, ao seu planejamento, implementação, e até o presente momento ainda são essas mulheres que protagonizam os referidos TBCs, indo além, são convidadas a palestrar em diversos estados brasileiros sobre empreendedorismo e turismo.
43Como já discutido, as vulnerabilidades territoriais nas três comunidades foi fator motivador para a implementação do TBC em diferentes perspectivas. No caso de Chã de Jardim e de Doces Tambaba, a territorialidade estava fragilizada pela necessidade de migração de seus habitantes para as zonas urbanas em busca de melhores condições de vida (emprego, renda, estudos). Já na Comunidade de Porto do Capim, o problema se aprofunda no risco de perda de sua terra, ameaçada pelas tentativas de remoção impostas pelo governo municipal.
44Nos três casos analisados o contexto econômico sob os quais as ações de TBC têm início é marcado pela baixa disponibilidade de recursos financeiros. Em Chã de Jardim e no Doces Tambaba, as ações de TBC estavam voltadas para a busca de uma fonte alternativa de renda, até então restrita às atividades agrícolas e extrativistas. Nestas, um dos efeitos da difícil condição econômica era a saída de jovens em busca de empregos nas zonas urbanas, com o consequente abandono das atividades tradicionais. Atualmente, a dinamização do capital local, ao priorizar seus moradores nas oportunidades de negócios, de empregos e de renda dos serviços ligados ao TBC, contribui para alterar essa realidade, conforme mencionado nas entrevistas de Doces Tambaba e Chã de Jardim:
“Antes a gente vivia numa situação em que a lavoura não dava pra gente sobreviver, nós passávamos fome [...]. Quando a gente resolveu mudar e investir no turismo rural e agricultura familiar, fazer um trabalho diferente, foi aí que conseguimos mudar a realidade dessa comunidade.” (Liderança Doces Tambaba)
“Hoje existem ganhos reais, pessoas com carteira assinada, que ganham seus salários, todos os seus direitos, sem precisar sair da comunidade e sem ser um grande empresário que assinou sua carteira, é um pequeno, que virou MEI e pronto.” (Liderança Chão de Jardim)
45Na Comunidade Porto do Capim, o trabalho realizado pelo grupo à frente do TBC ainda tem sido diretamente afetado pela luta em prol da permanência na terra. Nesse caso, os benefícios econômicos são comprometidos pela interrupção dos serviços turísticos quando a atenção se volta para combater as tentativas de remoção da comunidade pelo governo local.
46Com relação à dimensão cultural, os serviços oferecidos pelas comunidades mantêm e valorizam formas de representações tradicionais (danças, lendas, alimentação), além das narrativas, saberes e cotidiano das culturas camponesas e ribeirinhas. Como resultado dessa intenção, é registrada uma importante elevação da autoestima da condição identitária das comunidades, combatendo “de dentro para fora” a produção de estigmas que sustentam processos discriminatórios, como se percebe nas falas abaixo:
“O principal [benefício do TBC] é o empoderamento das pessoas. Deixarem de morar em uma comunidade camponesa, cujo destino dos trabalhadores era migrar para os grandes centros à procura de um trabalho, e passarem a morar em uma comunidade que é referência, que ganhou prêmios internacionais, que está o tempo todo na mídia. Essa é a principal conquista, esse orgulho que as pessoas sentem.” (Liderança Chã de Jardim)
“Nós estamos há muito tempo afirmando que somos uma comunidade tradicional ribeirinha e o turismo tem ajudado nisso. O TBC agrega o aspecto político da militância, o econômico e o aspecto cultural. É como se o turismo criasse uma ponte imaginária entre a cidade e nossa comunidade, ele [o TBC] quebra essa ideia de que a linha férrea e as ruas do centro histórico limitam a entrada de visitantes dentro da comunidade, que não se deve atravessar a rua, pois, o visitante pode se deparar com uma comunidade humilde, carente e violenta.” (Liderança do Vivenciando o Porto do Capim)
47Na comunidade de Chã de Jardim, a proposta de TBC buscou reforçar o respeito e a preservação do ecossistema florestal existente no seu entorno, a partir do desenvolvimento de trilhas e oficinas. Em Doces Tambaba, foram registradas novas práticas de interação com os elementos naturais, especialmente ligadas ao reaproveitamento de materiais disponíveis para construções rústicas.
48No contexto urbano, as visitas guiadas na ação intitulada “Vivenciando o Porto do Capim” têm, desde seu o início, o objetivo de estimular o contato com o ecossistema do manguezal, combatendo percepções equivocadas e historicamente construídas sobre esse ambiente. No caso dessa comunidade, cultura e ambiente ribeirinho se somam às ações políticas, constituindo-se em um aspecto central na defesa do seu território.
- 9 Entidade integrada ao sistema empresarial do setor industrial que apoia as micro e pequenas empresa (...)
49No que se refere à oferta dos primeiros serviços vinculados ao turismo, é importante mencionar a contribuição de atores externos. Em Chã de Jardim, o apoio e as orientações fornecidas pela Gestão do Parque Mata do Pau Ferro foram fundamentais para nortear as ações dos jovens, conscientizando-os sobre a relevância de uma associação. Em momento posterior, a assessoria do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas)9 atuou no sentido de promover a capacitação sobre o empreendedorismo e práticas de mercado. No TBC Doces Tambaba, o SEBRAE também contribuiu para impulsionar o turismo, com assessoria técnica e colaboração para construção da marca (Nagabe, 2019). Já no Porto do Capim, a comunidade contou com apoio técnico da Universidade Federal da Paraíba, assessorando em diversas áreas do conhecimento e proporcionando formação política.
50Nas três comunidades, as atividades de turismo iniciaram com a participação e a cooperação de seus integrantes. Verificou-se que a lógica originária de funcionamento estava pautada na coesão comunitária e familiar. Todavia, a comunidade de Chã de Jardim optou por formalizar uma associação visando fortalecer seus empreendimentos.
51Enquanto estratégia promocional, o uso das mídias sociais é recorrente nos três casos analisados. Chã de Jardim e Doces Tambaba contam com divulgação espontânea de seus atrativos, através de reportagens e plataformas digitais; utilizam-se de parcerias efetivadas com agentes turísticos (guias e agências); além da divulgação por meio das palestras que as duas lideranças femininas ministram em todo o Brasil. As lideranças do Vivenciando o Porto Capim, acreditam que, ao restringir sua divulgação às redes sociais, em detrimento à operadores turísticos, conseguem manter os princípios que regem a iniciativa, ligadas ao diálogo, ao convívio e ao respeito ao tempo/espaço da comunidade, que estão ausentes no turismo de massa.
52A intencionalidade identificada nas políticas públicas de turismo no Brasil foi promover o território como um recurso para produção de riquezas, privilegiando o grande investidor e o turismo de massa, aderindo aos princípios do paradigma neoliberal. Mas, apesar da racionalidade do mercado se impor como norma, gerando uma invisibilidade de propostas alternativas de turismo nas políticas governamentais, o TBC se difunde no território nacional.
53Nesse contexto, uma primeira conclusão é de que o próprio TBC já corresponde a um movimento turístico contra-hegemônico e de resistência, frente à falta de políticas e incentivos financeiros que estimulem práticas de turismo mais inclusivas e sustentáveis econômica, sócio, cultural e ambientalmente.
54Para os casos analisados, os distintos contextos de lutas por manutenção dos seus territórios evidenciaram a dialética das perdas e ganhos que marcam as dinâmicas territoriais das iniciativas de Chã de Jardim, Doces Tambaba e Vivenciando o Porto do Capim. Isso porque, enquanto a necessidade de garantir a permanência no território foi a principal motivação do turismo comunitário, as condições de estruturação, os serviços e os ganhos verificados em cada comunidade refletem as possibilidades dadas pelos momentos de tensionamento estabelecidos nos conflitos pela terra.
55Apesar da racionalidade estrutural imposta pelo modelo econômico dominante (competitividade espacial, consumo intensivo do território, exploração de classes), nas localidades enfocadas neste estudo são estimuladas formas de gestão e solidariedade comunitária que promovem a descentralização dos ganhos, com os benefícios revertidos para um maior número de pessoas. As perspectivas postas pelas lideranças apontam também para melhorias das condições de vida e o empoderamento sociocultural a partir do fortalecimento do TBC.
56Por fim, compreendemos que a maior limitação desse estudo foi a falta de dados atualizados, compilados e confiáveis sobre o turismo de base comunitária no Brasil. Pode-se ainda considerar que a complexidade da realidade verificada suscitou outras reflexões e abre lacunas para futuras agendas de pesquisa. Como sugestões para pesquisas futuras tem-se: Como o TBC se relaciona com a lógica do mercado? As ações de resistência e luta pela terra, inseridas no neoliberalismo, precisam ser intermediadas pela constituição de um mercado? Entendemos que essas questões são desdobramentos desta pesquisa. Nos casos analisados, observou-se a necessidade de promover o TBC para viabilizar atividades produtivas, geração de empregos e renda, justificando a permanência no território. Sem a adesão a um mercado, a luta pela terra teria tornado-se mais frágil. De forma mais restrita, outra sugestão de pesquisa é entender como o TBC pode utilizar as ferramentas promocionais de venda similares ao turismo convencional? Verificou-se em alguns casos analisados esse uso, sensivelmente as agências de receptivo turístico não especializadas em TBC, sem que isso interferisse nas premissas e valores dessas ações, e que possivelmente contribuíram para seu reconhecimento.