1A temática dos destinos de Lua de Mel, que é o tema desta edição especial da Via, não deve esconder o fato de serem o evento central de uma indústria cerimonial. A lua-de-mel é (mas nem sempre) a continuação lógica que marca o casamento. Encontramos esta modalidade de recepção em outro evento ritualizado que é a cerimônia fúnebre, enquanto o batismo e a circuncisão, os costumes em torno do nascimento e, por vezes, os ritos de passagem para a idade adulta, aparecem em segundo plano. O evento matrimonial, mesmo que apenas parcialmente turístico, passou por um grande desenvolvimento em termos de pompa e de recurso graças às agências de eventos especializados que oferecem serviços que vão desde o mestre de cerimônias, até o all inclusive. A articulação (ou mesmo a imbricação) entre a vertente festiva e a representação social da lua-de-mel é sólida. O casamento, a rigor, que se torna um evento significativo (decoração, vestuário, serviços, alojamento, alimentação, etc.) com seus aspectos turísticos (hospedagem, alimentação para convidados, especialmente em locais de prestígio ou mesmo privatizados pela ocasião) tem como consequência “lógica” a lua-de-mel muitas vezes financiada pelos convidados. Um financiamento coletivo (poupança, fundo) é feito antes ou durante a cerimônia. É utilizado para financiar as despesas da noite de núpcias, que é uma viagem do “novo casal” (mesmo que estejam juntos há muito tempo) que se tornou oficial. Esta viagem é pensada como um parêntese, um momento de intimidade, entre os novos cônjuges, antes de voltarem à vida quotidiana. Um parêntese que tem algum parentesco com um evento que antecede o casamento, denominada despedida de solteiro (a), que gradualmente se tornaram eventos turísticos festivos (um fim de semana) realizado entre amigos (a)s.
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2É necessário recordar estes elementos de contextualização porque este aumento dos eventos cerimoniais, um precedente para a lua de mel, ocorre numa tendência geral de declínio contínuo no número de casamentos. E isto sem mencionar a redução dos casamentos religiosos (um rito cerimonial em si), especialmente nos países onde a vida pública é secularizada. Há um aparente paradoxo na formalização de um ato que em muitos países já não representa um passo necessário para viver a dois1. Um ato e um juramento que de forma alguma garantem uma vida conjunta duradoura uma vez reconhecido o divórcio. Um ato que, por outro lado, se expandiu para além do casal heterossexual tradicional ao estender-se aos casais homossexuais nos países mais liberais. Um ato que estava ligado à procriação de filhos legítimos (e a lua-de-mel como o momento ideal da concepção) e que já não tem essa função, continua crescendo a percentagem de filhos fora do casamento (por vezes antes do casamento) em vários países sem que isto seja agora considerado negativamente (são 60 % em França, por exemplo, em 2020 ; 52 % no Reino Unido, mas 32 % nos Estados Unidos, veja-se quase 0 % no Japão e na China em 2020). Com a popularidade da lua-de-mel, como extensão normativa do casamento, a sociedade moderna funciona assim como se a dessacralização do casamento fosse compensada por uma acentuação dos rituais, marcadores sociais do conformismo.
3Depois destas breves considerações, recordemos que este número se propõe a explorar o versão mais turística do matrimônio que é a lua-de-mel. Privilegiando certas abordagens, muitas vezes ilustradas pelos artigos propostos.
4A primeira abordagem foca nos Destinos de Lua de Mel. Buscou-se verificar o que se enquadra nesta categoria um tanto vaga, onde emergem destinos reconhecidos internacionalmente (ou nacionalmente). Os destinos “românticos”, segundo a linguagem da promoção turística, correspondem aos locais onde acontecem as viagens de lua de mel. O termo "lua de mel" (no sentido etimológico é o mês lunar seguinte ao casamento, a expressão é usada a partir do século XVI, segundo o lexicógrafo Richard Huloet (1552) e só está associada a uma viagem apenas a partir do final do século XIX) aplica-se hoje a dois momentos. Se em geral ela prolonga o casamento, também pode precedê-lo (o exemplo vietnamita é interessante deste ponto de vista), logo há uma lua de mel que conduz ao casamento, e há aquela que conduz a dissolução ipso facto (Os japoneses falam de “divórcio ao estilo Narita” para traduzir o fato de que os casais se divorciam no retorno da lua de mel ao desembarcarem em Narita, o maior aeroporto de Tóquio !). Certos destinos adquiriram (por vezes durante muito tempo) uma reputação internacional nesta área. As ilhas, em primeiro lugar, como símbolo de um isolamento propício à intimidade do novo casal. Podemos citar Santorini (na Grécia), Bora Bora (na Polinésia), Capri (na Itália). Mas um destino mais nacional como a Ilha de Jeju (na Coreia do Sul) desempenha esse papel. As cidades também desempenham esse papel milenar por sua atmosfera propícia aos amantes. Veneza primeiro, mas Paris também, assim como Florença, Viena, Lisboa... Cidades que oferecem um ambiente dito romântico e festivo ("Paris é uma festa", dizia Hemingway), um hotel de nível internacional, um dos recantos íntimos. Finalmente, cidades litorâneas como Nice, Acapulco, Miami... constituem hoje destinos reconhecidos para lua de mel.
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5A abordagem do turismo matrimonial apresenta a priori um pré-âmbulo mais do que uma análise da lua de mel. Uma gama de prestadores de serviços (locatários, decoração, vestuários, trabalhadores do enretenimento, alimentação, etc.) em locais de prestígio ou inusitados (castelos, riads2, resorts, chalês, pousadas, ranchos, iglus, etc., reais ou artificiais) em torno dos casamentos, que operam no modelo turístico não poderiam ser deixados de lado. Esta abordagem nos permitiu compreender o que acontece em paraísos nupciais de Nevada, por exemplo como Reno, onde as pessoas se divorciam antes de se casarem novamente durante o dia. Em certos destinos para casamento, a grande popularidade dos turistas asiáticos (especialmente japoneses) como o Taiti e os Castelos do Loire podem ter esbarrado em aspectos legais, que exigem residência. O casamento na lei francesa exige residência comprovada de um dos cônjuges ou de um dos pais. Assim o “produto” turístico está sujeito a manipulações (exemplo da prevaricação no caso do vice-presidente da Câmara de Tours3) ou um simulacro (cerimônia de casamento privadas na Câmara Municipal). Uma farsa, que exigia um verdadeiro casamento, que satisfizesse a visão romântica e fosse percebido como mais econômico do que o evento familiar bancado pelos noivos, como é o caso no Japão. No Japão, onde a escolha de casar no estrangeiro revela-se uma fuga ao peso da tradição (e ao seu custo para os noivos). Em última análise, é o surgimento de uma indústria do casamento que estamos testemunhando. Ela se organiza em torno de prestadores de serviços que trabalham em rede e oferecem produtos padronizados ou personalizados cada vez mais amplos que podem se estender até à escolha de parceiros quando incorporam agências matrimoniais.
- 4 Imagens populares simplórias produzidas na cidade de Épinal (Vosges) a partir da Revolução Francesa (...)
6A cada artigo, pouco a pouco, esta edição da revista Via tocou, de forma indireta, numa forma de turismo sexual. Este último espalhou-se por todo o mundo, especialmente nos países pobres, com “concentrações” em destinos bem conhecidos do sudeste asiático. Tomar um voo entre Bangkok e Phuket revela a extensão disso quando a cabine está repleta de casais formados por um europeu idoso acompanhado por um jovem tailandês, ou mais raramente por uma garota. A escala deste fenômeno é tal que foi implementada uma legislação na Europa e nos Estanos Unidos para punir criminalmente os clientes desta mercantilização. Mas Manila, Saigon, Bali... Camboja, Laos... continuam a ser destinos importantes com um jogo de cumplicidade entre eles, o que significa que quando um destino se torna demasiado visível é substituído por outro. Pode parecer que estamos nos afastando da questão central da lua-de-mel, entrando no ambiente da erotização das sociedades ocidentais que conduz, de acordo com as leis do mercado, à exploração pós-colonial das populações pobres. O fato de procurar sua companheira (mais do que companheiro) longe do seu ambiente habitual, seguindo canais que por vezes podem ser semelhantes ao tráfico de pessoas, para formar um casal legítimo, é uma forma de turismo sombrio. Um artefato da imagem de Epinal4 da lua de mel, mas que não é tão distante e independente da versão “autorizada”. Os destinos ditos de “lua de mel”, que querem se afastar moralmente dos anteriores, são também destinos (mesmo invisíveis) de prostituição (o Taiti é um exemplo, como Phuket na Tailândia ou Dalat no Vietname) .
7A questão da viagem de lua-de-mel, uma questão aparentemente superficial e pitoresca, permite abordar questões complexas e interconectadas, das quais este número apresentou um panorama obviamente não exaustivo. Buscamos abordar e aprofundar temas importantes. Citemos alguns : o turismo de lua de mel como substituto do Jardim do Éden (paraíso terrestre “perdido”) ou o turismo como construção voluntaria positiva da memória. A escala econômica do fenómeno... O cruzamento de áreas emergentes como de eventos e de estadia temática, a experiência da estadia de casais apaixonados num destino idílico e secreto... é um produto de marketing que demonstra as características de uma sociedade de consumo, que levou à proliferação de destinos ad hoc, desde ilhas paradisíacas a cruzeiros, incluindo estadias inusitadas (em castelos, árvores, iglus, etc.), viagens customizadas e destinos articificais.