Intuição como princípio, intuição como fim. Apontamentos sobre a continuidade do projeto filosófico fichtiano
Resumen
Uma interpretação normalmente aceita sobre a filosofia tardia de Fichte afirma que após a assim denominada Querela sobre o Ateísmo (Atheismus-Streit), de 1799-1800, ocorreu uma importante virada no pensamento do filósofo, transformando aquilo que antes era considerado uma epistemologia, centrada nos conceitos de autoconsciência e intuição, em uma nova ontologia, que trata do conceito do Absoluto e de sua manifestação enquanto conhecimento absoluto. Sem dúvida, até o início da edição crítica das obras de Fichte essa era a interpretação canônica sobre toda obra tardia, mas parece que tal tradição ainda exerce influência em muitas das recentes interpretações, mesmo levando em conta o material tardio que veio a lume desde então. Nesse sentido, minha proposta aqui é sugerir uma nova leitura da filosofia tardia de Fichte, e para tanto, primeiramente pretendo indicar como o conceito de intuição permanece central no desenvolvimento da WL de 1804/5, em um sentido próximo ao uso fichtiano do mesmo no período de Jena. Um texto importante neste caso, e pouco estudado, é aquele das lições de inverno da WL de 18041. Em uma segunda parte, minha intenção é conectar essa análise à retomada fichtiana do conceito de intuição e autoconsciência na fase posterior de seu pensamento, entre 1807 e 1813. Essa comparação deverá servir para indicar uma continuidade no projeto filosófico de Fichte, centrada no problema da fundamentação última do conhecimento e na sugestão de que uma solução para esse problema pode ser encontrada em nossa capacidade intuitiva de conhecimento de si.
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1Omnis determinatio negatio est. Esse celebrado dito de Espinosa pode ser tomado como expressão de um problema filosófico profundo. Se toda determinação do pensamento implica uma negação, então a unidade subjacente à totalidade de nosso esquema conceitual parece ser impensável, ou inexprimível, na medida em que ela não pode ter, por definição, qualquer limite externo, nenhum elemento oposto para além de sua extensão, nenhuma negação de si. Em outras palavras, qualquer pensamento conceitual é por sua própria natureza um dualismo, porque a toda determinação se opõe aquilo que ela não é. Traduzindo esse problema em termos do “paradigma da consciência”, para utilizar a conhecida expressão de Habermas, poderíamos dizer que para cada objeto determinado da consciência há uma percepção ou atenção intencional que considera esse mesmo objeto em relação a si, e é só a partir desse dualismo entre objeto e consciência que surge uma determinação em ambos os lados.
- 1 KANT, KrV B 29.
- 2 Fichte é bastante explícito sobre a busca dessa raiz inescrutável: “Daß ich nun die W.-L. an diesem (...)
2 Gostaria de sugerir que uma das principais preocupações epistemológicas de Fichte, ao longo de toda sua obra, lida diretamente com tal impasse. Seja no período de Jena ou em qualquer outra fase da obra, a Doutrina-da-Ciência investiga não apenas a natureza do conhecimento em geral, mas sobretudo a fundamentação absoluta do próprio conhecimento. Eis aqui sem dúvida uma herança explícita do legado kantiano. No entanto, no que diz respeito ao problema em questão, Fichte pretende ultrapassar em muito o escopo da primeira Crítica. A pergunta em jogo poderia ser abreviada da seguinte maneira: como poderíamos encontrar o fundamento absoluto do conhecimento dentro da estrutura transcendental de nossa consciência, se não há qualquer via, segundo Kant, pela qual possamos conhecer a “raiz comum, mas para nós desconhecida”1,2 que interliga nossas faculdades cognitivas? O resultado negativo extraído da Dedução das Categorias, e reafirmado no Paralogismo da Razão - a saber, que a Unidade da Apercepção Transcendental deve ser considerada apenas como uma condição lógica de síntese e não nos dá qualquer conhecimento real sobre nossa própria consciência -, apresenta-se para Fichte como uma solução insuficiente.
3 E aqui retornamos àquilo que previamente descrevi como um impasse epistemológico. Se qualquer objeto da representação na consciência encontra-se sobre um fundo contrastante e objetificado, como pode a consciência observar tal relação a partir de um ponto de vista não-objetificável? Ou melhor, para me expressar de um modo mais conciso: como pode o conhecimento conhecer seu próprio fundamento sem incorrer em petição de princípio? A tentativa de Fichte de resolver esse problema, de acordo com minha leitura, é uma de suas mais interessantes e controversas contribuições para a filosofia. Além disso, podemos ver na tentativa de resolução desse impasse um dos eixos temáticos que perpassa a obra fichtiana como um todo.
- 3 Um bom panorama sobre essa discussão pode ser encontrado em ROSALES, J. R; CARVALHO, M.J.A.. (Org.) (...)
4 No entanto, uma interpretação usualmente aceita sobre a filosofia tardia de Fichte afirma que, após a denominada Querela sobre o Ateísmo (Atheismus-Streit)3, ocorre uma grande virada no pensamento do filósofo, virada esta que transforma aquilo antes tomado como uma epistemologia, uma teoria centrada nos conceitos de autoconsciência e intuição, em uma nova forma de ontologia, que nesta fase tardia trataria diretamente do conceito de Absoluto ou Ser e de sua manifestação enquanto saber absoluto. Há certamente uma base textual a sugerir tal abordagem, especialmente quando consideramos as primeiras tentativas fichtianas de reescrever a Doutrina-da-Ciência depois daquele episódio na virada do século, por exemplo no texto da versão da WL de 1801, e especialmente no tão citado segundo curso de 1804, que desempenha nessa leitura um papel crucial. A bem dizer, até o início da edição crítica das obras de Fichte essa era a interpretação canônica dos ainda parcialmente conhecidos textos tardios, mas parece que essa tradição interpretativa ainda exerce forte influência na recepção do material que veio a lume desde então.
- 4 Talvez seja interessante fazer algumas observações ou digressões de cunho historiográfico-bibliográ (...)
- 5 Dediquei um capítulo da minha tese de doutorado a uma primeira tentativa de elaborar tal aproximaçã (...)
5 Nesse sentido, minha proposta de interpretação da obra tardia de Fichte pretende seguir outro caminho, referindo-se especificamente a uma possível relação interna entre as explícitas preocupações epistêmicas da juventude e seus textos da maturidade, para além de todas transformações terminológicas radicais que caracterizam essa transição4. Para tanto, como parte de um projeto mais amplo de análise de alguns dos principais textos da fase tardia (ex. WL 1807, 1810, 1813, bem como as lições sobre Lógica Transcendental de 1812 e as Lições sobre os Fatos da Consciência de 1811 e 1813), pretendo indicar aqui, nas duas partes iniciais do artigo, como o conceito de intuição permanece central no desenvolvimento da Doutrina-da-Ciência de 1804/5, e de que modo o uso desse conceito conserva certa similaridade com o uso adotado na fase jenense da obra. Tal comparação, já parcialmente realizada em outro trabalho5, diz respeito à relação entre o conceito de “intuição intelectual” e aquilo que mais tarde, em 1804, Fichte denominará “Intuition” (Intuição) e “Einsehen“ (Intuicionar).
6 Na terceira parte do artigo, ainda que de maneira breve, minha intenção é conectar a análise anterior à retomada fichtiana do conceito de intuição e autoconsciência na fase posterior de seu pensamento, entre 1807 e 1813. Essa comparação deverá servir para indicar uma continuidade no projeto filosófico de Fichte, centrada no problema da fundamentação última do conhecimento e na sugestão de que uma solução para esse problema pode ser encontrada em nossa capacidade intuitiva de conhecimento de si. Uma dificuldade a ser enfrentada nesse esclarecimento consiste em considerar qual o estatuto epistêmico do conceito de Absoluto, e de que modo esse conceito, através daquilo que Fichte denominou "Imagem", estabelece uma relação com o próprio conceito de sujeito epistêmico. Após esse breve, porém sistemático panorama, espero mostrar como a filosofia fichtiana jamais abandonou seu leitmotif epistemológico, mesmo diante das mais radicais transformações conceituais.
I
- 6 Eis uma passagem que expressa de forma clara, dentro do contexto tardio da filosofia fichtiana, ess (...)
7 O projeto filosófico de Fichte é, do início ao fim, uma investigação sobre a estrutura interna da capacidade cognitiva humana6. Qualquer outro estado de coisas, seja a natureza última do Ser absoluto, seja simplesmente a descrição da cotidiana natureza circundante, deve ser explicado como resultado daquela investigação. Esse idealismo rigoroso tem sua justificativa em um simples bem como espantoso fato sobre nosso conhecimento: estamos condicionados a perceber somente aquilo que se mostra aos nossos modos de percepção. Ou, para colocar em outros termos, não temos qualquer forma de acesso cognitivo direto àquilo que existe em si mesmo, nenhum alcance para fora da garrafa ou recipiente que prende a mosca (fly bottle). Eis por que o insight de Kant, depois do prenúncio cartesiano, pode ser considerado copernicano em sua importância revolucionária.
8 Entretanto, o percurso fichteano pretende ir além disso. A WL almeja elaborar uma descrição genética completa de tal estrutura cognitiva, e, portanto, pretende mostrar não somente aquilo que é obviamente pressuposto como condição de possibilidade do saber, senão ainda aquilo que pode ser indiretamente indicado através dessas mesmas condições. Em outras palavras, o idealismo transcendental deve ser capaz de explicar a partir da interioridade de nossa experiência do puro saber, ie., por um modo imanente, até mesmo aquilo que ultrapassa seu próprio limite. Conservando a metáfora de Wittgenstein, a mosca deveria ser capaz ao menos de reconhecer o recipiente no qual está presa.
- 7 Todas as traduções são minhas, exceto quando indicado o contrário.
9 Tal limitação de nossa condição racional tem, ainda, um outro aspecto. Se há um limite externo de nosso conhecimento discursivo, ou seja, um Absoluto incognoscível que se oculta no disfarce de sua própria manifestação, há também, por outro lado, um limite interno do saber racional, ie., aquilo que pode ser tomado como princípio ou base fundamental da cognição, e que se mostra em um primeiro momento tão incognoscível quanto aquele Absoluto. Esse aspecto da teoria de Fichte costuma ser não suficientemente considerado por muitos leitores e interpretes da Grundlage, pois o princípio não se colocaria como problemático e incognoscível se identificássemos tal princípio com o eu concreto e finito, ou com uma proposição elementar do tipo eu = eu. Em duas breves observações logo no início da referida obra, Fichte indica aquilo que se tornará tese central em todo seu pensamento subsequente: refiro-me aqui, primeiramente, a requisição de uma “faculdade (ou capacidade) da liberdade da intuição interna” (GA I 2, 253), tal como aparece no prefácio do livro, assim como a instrução dada pelo autor já no início do primeiro parágrafo da obra: “a proposição fundamental, absolutamente primeira e incondicionada de todo saber humano deve ser procurada (buscada) por nós. Prová-la ou determina-la não é possível, se ela deve ser a proposição absolutamente primeira. (GA I 2, 255 – minha ênfase).7
- 8 Refiro-me aqui ao manuscrito da Wissenschaftslehre Nova Methodo, assim como às duas introduções à W (...)
10 Essa simples asserção traz consigo um significado profundo, algo que só receberá uma forma filosófica mais consistente após a reintrodução do conceito de intuição intelectual na segunda e aprimorada versão da WL.8 Se a proposição que fundamenta todo conhecimento deve ser buscada, procurada, mas não pode ser provada, ela também não pode ser expressa de forma precisa enquanto uma proposição. Tal proposição – um termo infeliz presente na Grundlage sem dúvida por causa da então forte influência de Reinhold – denota na verdade um ato do espírito, algo que deve ser experimentado e realizado pelo sujeito, aquele Tathandlung (estado-de-ação) que mais tarde receberá sua formulação originária, “intuição intelectual”.
11 À primeira vista, a sugestão de Fichte para o ponto de partida de tal procura parece bastante óbvia: devemos abstrair tudo aquilo não pode ser considerado como uma condição necessária para constituir a base do saber tout court. Esse simples processo de abstração é um ponto de partida comum a muitas das versões da WL. No inicio de suas lições do curso de inverno de 1804, o filósofo expressa isso da seguinte e concisa maneira: “devemos sim, livres de todos objetos e disjunções, chegar à simples clareza interna do Ver absoluto ele próprio (WL 18041 - GA II 7, 37).
12 Porém, o que aparenta ser uma prática filosófica comum de simples abstração pode, considerando o patamar elevado ao qual Fichte pretende alçar suas lições de 1804, tornar-se um procedimento mental bastante intrincado, especialmente se observarmos que nenhuma análise conceitual poderá nos conduzir diretamente ao princípio desejado. Ou, para ser mais preciso, toda análise conceitual é tomada como um meio tão inevitável quanto precário para se atingir um fim que sempre a ultrapassa. Isso pode inclusive ser compreendido enquanto natureza ou estatuto da própria WL como um todo. Essa é a razão pela qual Fichte, muito antes de Wittgenstein, pode, ao final das lições de 1804, afirmar o seguinte: “eu disse, com certo cuidado, no saber absoluto, de modo algum na WL in specie, pois também ela é apenas a via, e tem somente o valor da via, de forma alguma um valor em si. Aquele que subiu não se preocupa mais com a escada” (GA II 8, 378).
13 Há sem dúvida um longo caminho argumentativo antes que qualquer verdade intuitiva seja alcançada. Nesse sentido, o primeiro passo do argumento reside na observação de que o conhecimento é um fato, ou melhor, o único fato puro. Isso pode ser compreendido a partir de dois estágios distintos: primeiramente, como determinação empírica de nossa consciência, que conduz à duplicidade originária entre sujeito e objeto da experiência. Como diz Fichte na primeira lição do curso de inverno de 1804, “a divisão originária que ela [a WL] aponta é justamente aquela entre mundo e consciência (objeto e sujeito)” (GA II 7, 70).
14 O segundo estágio do argumento sugere que esse tipo de dualidade rudimentar, imposto pelo empirismo naïve de nossa condição epistêmica natural, deve ser unificado dentro do próprio conhecimento, o qual assim englobaria ambos os lados da relação, manifestando a si próprio como pano de fundo comum a essa ou qualquer determinação mútua. Eis a expressão de Fichte: “o saber apresenta simplesmente a si mesmo na consciência, enquanto algo idêntico a si e uno diante de toda multiplicidade dos objetos” (GA II 7, 69). Com este segundo passo a WL chega um pouco mais próximo daquilo que seu autor considera ser o objetivo principal de toda filosofia legítima, a saber, “reconduzir (reduzir) todo múltiplo à absoluta unidade” (GA II 7, 68).
15 É nesse momento que surge o ponto problemático do argumento, estritamente relacionado ao impasse mencionado no início do trabalho: como podemos compreender a relação que tal conhecimento puro, tomado como unidade subjacente entre sujeito e objeto do conhecimento comum, estabelece com cada um dos lados relacionados? Há qualquer similaridade entre tal relação e a relação determinada pelos dois polos de nossa experiência consciente? Em outras palavras, como podemos compreender a relação entre conhecimento puro, consciência e objeto da consciência?
16 Duas são as possíveis respostas para esse problema. A primeira e tradicional posição afirma que ambas as relações em questão apresentam certa similaridade ou isomorfismo. Isso significa que o sujeito está para o objeto, na consciência natural, assim como o puro saber está para a relação sujeito-objeto, na unidade absoluta subjacente. Afinal, parece que não há outra posição conceitualmente compreensível para definir qualquer relação cognitiva do que esta dualidade. Todo conhecimento é conhecimento de algo, e todo objeto do conhecimento, ao menos a partir da perspectiva do idealismo transcendental, é objeto para um conhecimento consciente.
- 9 Fichte tinha plena consciência dessa objeção, como atesta a seguinte passagem emblemática de seu cu (...)
17 Contudo, se isso é verdadeiro, então nossa resposta tradicional será presa fácil para as objeções céticas do célebre trilema de Agrippa. Ora, a similaridade ou isomorfia entre ambas as relações mostra que aquela dualidade que o puro saber deveria unificar é ela própria reiterada na relação do puro saber com a dicotomia unificada. Desse modo, precisaríamos de uma nova instância para unificar essa nova relação epistêmica, e esse processo acarretaria em sua totalidade ou um regresso ao infinito, ou uma tentativa de fechar essa cadeia através de uma estrutura circular, ou uma solução por parada dogmática ou arbitrária da cadeia de razões. A partir disso, qualquer filósofo analítico mais radical encontraria, nessa situação, motivos suficientes para rejeitar ou abandonar projetos fundacionistas que se aproximem desse modelo fichtiano.9
- 10 “In order to recognize that the contradictions between »Wissen« and »Sein« can actually can be solv (...)
18 A segunda resposta ao problema em pauta caracteriza a inovadora proposta de Fichte. A compreensão do conceito de Saber (ie., conhecimento puro) no período tardio da WL aponta para um tipo de conhecimento não conceitual que é ao mesmo tempo imediato, autoreferente e autoevidente. Mais do que isso, esse conhecimento ou saber, por sua própria natureza peculiar, deve emergir como resultado direto de nossa atividade consciente10, e deve ser captado, por assim dizer, pela visão transparente para si mesma da assim denominada intuição intelectual. Nesse sentido, a WL é precisamente o procedimento metódico, a partir de uma via negativa, para a descoberta daquilo que Fichte descreveu, no período de Jena, como uma atividade originária do eu. Eis também por que o filósofo, mais tarde, utilizará os conceitos de Sehen (Ver) e Bild (Imagem) para indicar esse processo cognitivo originário.
19 Considerando tudo isso, como deveríamos compreender ou explicar um conceito aparentemente indescritível? Poderia esse recurso a uma intuição intelectual ser qualificado como um intolerável ponto de vista místico, tal como sugeriu Hegel, cuja principal consequência é a mera mescla obscura de qualquer distinção conceitual argumentativa? Pressupor a intuição intelectual como fundamento de nosso processo cognitivo determina uma tarefa impossível ao sujeito, na medida em que requer o reconhecimento de uma atividade que ultrapassa todo pensamento? Na seção seguinte do presente artigo, através de uma breve análise de certos aspectos centrais do conceito de intuição intelectual, gostaria de indicar que a proposta de Fichte pode ser compreendida não apenas como algo filosoficamente aceitável, mas inclusive como uma interessante posição alternativa sobre o problema da fundamentação última do conhecimento.
II
20 No terceiro parágrafo da WL de 1801, depois de explicitar em detalhe o que está por trás do processo mental de construção de um triângulo, Fichte define o conceito de saber da seguinte maneira:
-
Todo saber é, de acordo com o exposto anteriormente, intuição (§2). Portanto o saber do saber é, na medida em que ele próprio é um saber, intuição, e na medida em que é um saber do saber, é intuição de toda intuição; absoluta unificação de toda intuição possível em uma.
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Destarte a WL, que é o saber do saber, não é nenhuma pluralidade de conhecimentos, nenhum sistema ou aglomerado de proposições, mas é no seu todo apenas um único e indivisível olhar.
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- 11 SW II, 9 - minha ênfase.
A intuição é ela própria saber absoluto, firmeza, imperturbabilidade e imutabilidade da representação; a Doutrina-da-Ciência é, contudo, somente a intuição-da-unidade dessa intuição. Assim, a própria WL é firmeza, imperturbabilidade e imutabilidade do juízo.11
21 De acordo com essa descrição, se o conhecimento no seu sentido filosófico deve ter uma forma sistemática, tal sistema deve estar em última instância fundamentado em intuições, e não em conceitos ou proposições. Além disso, Fichte defende a tese de que todas essas intuições particulares devem possuir uma base unificada comum, e esta por sua vez seria a intuição de todas intuições, dada em um ato indivisível, em um único olhar (Blick), para empregar a expressão metafórica do autor. Ainda que em ambos os casos temos instâncias do conhecimento imediato de uma multiplicidade unificada, a intenção de Fichte aqui é a de explicar como a certeza perceptual proveniente da intuição sensível poderia ser transposta, mutatis mutandis, para um contexto mais profundo, ou, para colocar isso na sua correta ordem lógica, como esse tipo de certeza empírica sobre o conteúdo de nossa percepção consciente está fundamentada, e portanto deriva de um tipo de certeza mais originária, a saber, a certeza de uma intuição intelectual. Mas qual é a exata natureza dessa certeza originária?
22 Em primeiro lugar, existe a certeza fenomenológica do conhecimento enquanto único conteúdo manifesto possível de nossa experiência. Apesar de todas suas disjunções internas, as quais compõem os ingredientes daquela manifestação, o conhecimento puro ou absoluto é expressão da totalidade de nosso esquema conceitual. Mais do que isso, conhecimento nesse sentido absoluto é a manifestação per se, a automanifestação de sua própria totalidade. Nas lições de inverno de 1804, esse fenômeno do saber (Wissen) receberá como designação a críptica conjunção Daß (que) substantivada, na tentativa de expressar o fato absoluto e autopoiético do saber.
23 Isso nos leva à segunda etapa do argumento fichtiano, que talvez represente a maior dificuldade a ser enfrentada pela WL. Se a manifestação do saber deve ser completa, ela deve manifestar de algum modo em si mesma aquilo que jamais pode aparecer, o absoluto fundamento oculto de todo fenômeno. Fichte está reproduzindo aqui, em um nível superior, a mesma estrutura lógica daquele fato primário da consciência: a dualidade sujeito/objeto. Assim como qualquer objeto conhecido, na perspectiva do idealismo transcendental, aponta para sua condição subjetiva de possibilidade enquanto pressuposição não objetificável, também o conhecimento automanifesto pressupõe um Ser-em-si completamente fechado enquanto sua base não manifesta.
24 A observação dessa similitude formal entre tais relações revela uma estrutura necessária de nosso pensamento, que representa para Fichte, se minha leitura estiver correta, não apenas o estatuto hipotético de toda investigação analítica sobre a fundamentação última do conhecimento, mas também a estrutura originária da autoapresentação do saber (SichDarstellen des Wissens). A estrutura que revela a necessidade (Nothwendigkeit) ela própria, nesse segundo e importante passo argumentativo das lições sobre a WL no inverno de 1804, é aquilo que Fichte indica novamente com uma substantivação da consequência (Folge), também considerada a partir dos termos Kausalität e Als. Isso significa que nosso uso lógico do operador da implicação denota não simplesmente qualquer relação hipotética do pensamento, mas no contexto desse experimento de pensamento para o(a) Wissenschaftslehrer(in) denota principalmente o processo de duplicação ou replicação interna do saber em sua automanifestação como objeto para si mesmo. Esta é também a razão pela qual Fichte compreenderá essa automanifestação primeiramente como uma duplicação do eu (4º preleção; GA II 7, 86), e consequentemente como uma transformação da relação hipotética anterior, entre um Absoluto enclausurado e sua manifestação no saber, em uma autorelação da consciência consigo própria (9º preleção; GA II 7, 112). De forma um tanto surpreendente, tal cadeia argumentativa de 1804 apresenta forte proximidade com a estratégia fichtiana usada no início de sua Grundlage, quando o autor almeja derivar da proposição de identidade (a = a), através de sua transformação ou tradução em uma proposição condicional (a > a), finalmente uma autoposição do eu. Colocando de uma maneira concisa, nós nos encontramos, em 1794, enquanto o eu que põe a relação condicional entre termos idênticos, e nós intuímos ou vemos internamente, em 1804, nossa própria unificação da estrutura de consequência (Folge).
25 Podemos aqui talvez compreender outro aspecto importante da teoria fichtiana da intuição. Esse processo de observar relações a partir de uma perspectiva mais ampla, que se traduz na unificação de uma relação que anteriormente foi postulada com ao menos um elemento puramente objetivo, representa o papel metodológico geral do intuicionar (Einsehen), algo que estabelece um critério de certeza interno à própria experiência cognitiva como tal. Nossa consciência está, por assim dizer, sempre dando um passo atrás com relação a seu próprio conteúdo, e através desse distanciamento interno consegue ver ou intuir sua posição na estruturação do saber.
26 No entanto, esse mesmo processo descrito logo acima, com todos seus graus peculiares de abstração, ainda indica um tipo de relação intencional da consciência que Fichte pretende superar. Mais de uma vez encontramos nas lições de inverno de 1804 asserções como a seguinte: “consciência da WL como qualitativamente distinta de outras consciências possíveis” (GA II 7, 78). Se este é o caso, de que forma deveríamos compreender essa diferença qualitativa da consciência? Ou, para colocar nos termos do Fichte tardio, como é possível nos tornarmos essa própria consciência absolutamente subjetiva, uma consciência sem objeto algum, ou ainda, um puro ver (reines Sehen)?
- 12 “Erweiß,” assim escreve Fichte em 1804, “d.h. nicht nur faktisch evident, daß beide unzertrennlich (...)
27 Parece existir uma relação muito próxima entre esse visado estatuto de uma consciência pura, compreendida como um fenômeno vivo e dinâmico, ou como um puro ato, e o processo criativo requerido de nossa imaginação na construção, por exemplo, de qualquer figura geométrica. Mais do que isso, Fichte pretende fundamentar a certeza geométrica numa espécie de produção consciente de suas próprias regras, algo talvez similar àquilo que na tradição matemática moderna foi denominado por “definição genética”. Em oposição à relação intuitiva que nossa consciência empírica estabelece com um objeto simplesmente dado, a teoria fichtiana do conhecimento procura por uma situação cognitiva na qual o conhecimento que temos do objeto é simultaneamente conhecimento de sua própria gênese12 na e através da nossa atividade consciente.
- 13 Como afirma Fichte em 18041: Vollig klar wird dieser Punkt werden, wenn wir uns zur Einsicht des no (...)
28 Quando traçamos duas retas finitas adjacentes e unimos as duas extremidades não ligadas com uma terceira linha reta, seguindo o experimento de construção de um triângulo proposto por Fichte no início da WL de 1801, construímos sem dúvida uma instância particular, com dimensões particulares e definidas, da ideia de uma figura triangular. Mas ao mesmo tempo podemos perceber imediatamente e ter a certeza que tal regra de construção produzirá sempre alguma espécie de triângulo, para todos os casos possíveis, em todas suas infinitas variações. A certeza imediata apresentada aqui não provém de qualquer análise conceitual ou comparação entre os termos em jogo, mas deriva diretamente, ou melhor dito, não é derivada mas é ela mesma nossa intuição da própria construção, durante o ato de construção. Afinal, de acordo com Fichte, qualquer prova sobre princípios fundamentais do conhecimento (aqui intencionalmente indicados no plural) deve ser interrompida por seu mais íntimo e indivisível primeiro princípio; a intuição intelectual.13
III
29Um ano antes de sua morte prematura Fichte descreve no seu diário filosófico de 1813, com algumas poucas palavras, mas de maneira precisa, a essência de sua investigação filosófica:
- 14 Ultima Inquirenda. FICHTE 2001, 66/35r-36r.
Tenho apenas uma unidade, não através de construção, mas simplesmente dada; uma unidade não do pensamento, e do juízo, mas da intuição, da própria apercepção imediata; isto faltava; só a partir de sua inclusão a síntese pode tornar-se verdadeiramente completa. Tacitamente ela se manifesta sem dúvida por toda parte.14
- 15 Cf. WL 1804, GA II 8, 7.
- 16 Refiro-me ao intervalo de oito anos posterior à Querela sobre o Ateísmo e prévio à retomada da ativ (...)
30Se nas lições da Doutrina-da-Ciência de 1804, textos centrais no desenvolvimento filosófico de Fichte, o autor define a essência da filosofia como uma recondução do múltiplo à absoluta unidade15, podemos ler no trecho tardio de 1813 justamente o que deve constituir e como deve ser constituída uma tal síntese. A apercepção, ou se quisermos, o eu autoconsciente, se traduz novamente em fundamento último do saber filosófico. E tal fundamentação, longe do formalismo lógico do eu transcendental kantiano, se dá a partir de uma intuição imediata do eu, mais precisamente, a partir da intuição intelectual. Assim, a teoria fichtiana do eu enquanto fundamento do saber, desenvolvida e celebrizada no período de Jena através da precária edição do texto da Grundlage, de forma alguma abandonada em prol de uma pura metafísica do Absoluto, mas sim aprofundada nos inúmeros cursos privados do assim denominado período intermediário16, desempenha na fase berlinense da Wissenschaftslehre um papel crucial para a correta compreensão do projeto filosófico fichtiano. Como já afirmava Fichte em um breve e esclarecedor texto de 1794, o princípio ou fundamento do sistema do saber
- 17 Begriff; GA I 2, 120. (Tradução de Torres Filho).
não é, pois, suscetível de absolutamente nenhuma prova, isto é, não pode ser remetido a nenhuma proposição superior da qual, em sua relação com esse princípio, decorresse a sua certeza. Contudo, deve fornecer a fundação de toda certeza; deve, pois, apesar disso, ser certo, e aliás ser certo em si mesmo, em função de si mesmo, e por si mesmo.17
31 Todo desenvolvimento tardio da WL se manteve absolutamente fiel a essa ideia de um fundamento exo-sistêmico, de uma certeza prévia a qualquer forma de justificação lógico-discursiva. Fichte assume assim um ponto arquimediano sui generis, cuja natureza universal e apodítica, ainda que supraracional, deve poder ser esclarecida por intermédio da argumentação filosófica. Em certa medida, a WL não é senão uma constante e incansável aproximação, por vias indiretas, a essa verdade interior do sujeito, inalcançável pelas determinações da linguagem. A seguinte passagem da WL de 18042 não poderia ser mais precisa:
- 18 No original, entäusserte.
- 19 WL 18042, GA II 8, 350.
[Dizer que] a certeza está fundamentada em si mesma significa ao mesmo tempo: ela está fechada em si mesma [de modo] absoluto e imanente, e jamais pode sair de si: ela é em si mesma [um] eu; (...) Fica portanto claro que a certeza exteriorizada18 e objetiva antes posta por nós não é a absoluta, no que se refere a forma, ainda que ela talvez possa sê-lo em conteúdo e essência. Está claro assim que aqui abstraímos da procura pelo absoluto, e devemos procurar [a certeza] somente no que se revela como imanência, como eu ou nós.19
32 Entretanto, simplesmente postular um conceito de certeza imanente ao sujeito cognoscitivo não parece avançar muito em relação ao que já está contido na assim chamada virada copernicana de Kant. Ora, sem dúvida Fichte retoma a teoria kantiana da unidade da apercepção, mas com uma sutil qualificação que muda radicalmente o ponto de vista da mesma. É justamente esse detalhe que permitirá à Doutrina-da-Ciência executar aquilo que Kant supunha ter realizado na sua primeira Crítica, a saber, uma verdadeira dedução transcendental. O ponto em questão foi indicado literalmente na seguinte passagem das Lições sobre Lógica Transcendental de 1812:
- 20 Logik II, FSW IX, 178.
Kant disse: a unidade sintética da apercepção, o ‘eu penso’, deveria poder acompanhar todas as minhas representações. Também a WL demonstra o eu como fundamento de toda representação. No entanto, Kant caracteriza essa unidade como sintética, i.e. a unidade se realiza pela ligação de um múltiplo, de um fluxo (...). Como, porém, eu há pouco a descrevi? Nitidamente não como sintética, mas como uma unidade analítica: a) ela é, não vem a ser; b) ela não será vista a partir do múltiplo, mas sim o múltiplo será visto a partir dela. (...) Todo múltiplo deverá se mostrar como uma análise do único fenômeno.20
- 21 A WL pretende elucidar a forma da manifestação ou do fenômeno, e não deduzir ou provar a origem da (...)
- 22 Tentei expressar com esse neologismo o termo Abbild, visando indicar tanto o sentido de reprodução (...)
- 23 As lições sobre os Fatos da Consciência percorrem exemplarmente esse duplo trajeto.
33 Contudo, isto não significa que o procedimento adotado na argumentação fichtiana seja pura e exclusivamente uma dedução analítica do múltiplo a partir de um princípio unitário; muito menos que Fichte deveria deduzir a priori a própria realidade21 a partir do eu. Eis a fonte de incompreensão perpetuada por uma leitura equivocada da primeira WL de 1794, única versão publicada em vida pelo filósofo. Se a unidade do eu ou do saber, enquanto imagem ou fenômeno do próprio Absoluto, determina com suas distintas refigurações22 as leis estruturais de nossa experiência do mundo, só chegamos a uma tal unidade ou princípio através do caminho inverso. Em outras palavras, o percurso descendente da WL só tem sentido depois do longo processo de ascensão, transcorrido pelo eu, desde o conhecimento da realidade sensível até o fundamento último de todo saber, o próprio absoluto ou Deus, simplesmente inconcebível e só determinável via negationes por e a partir de sua imagem23.
- 24 Limito-me a expor aqui, além do sentido epistêmico dessa expressão, e foco do presente trabalho, ta (...)
34 Na última etapa desse processo surge aquilo que Fichte designa por intuição intelectual. Ainda que a referência a esse termo seja extremamente problemática, pois na obra tardia do autor ele será utilizado de modo polissêmico, inconsistente e muitas vezes obscuro, poderia destacar ao menos três acepções bem distintas do mesmo. O conceito de intuição intelectual contém um significado epistemológico, um sentido ético24 e outro religioso. Na primeira acepção, a qual interessa aqui, intuição intelectual indica o modo cognitivo da síntese suprema entre intuição e conceito, ou se quisermos utilizar a terminologia da WL de 1804, entre ser e pensar. Nesse sentido, intuição intelectual significa uma consciência direta das duas formas fundamentais de determinação do saber, e ao mesmo tempo a consciência da inevitável unidade que subjaz a tais formas. Tal unidade não pode dar-se na captação determinada de um objeto concreto, ie., pela intuição sensível, porque a síntese de um objeto, como já alertou Kant, depende sempre de uma construção conceitual. Ao mesmo tempo, a unidade do saber não se dá no próprio conceito, pois toda determinação categorial se encontra aquém da exigência de uma síntese completa em sua respectiva ideia reguladora, em um ideal da razão inalcançável pela finitude do entendimento discursivo. Eis a explicação de Fichte sobre este ponto, no seu curso do inverno de 1812 sobre Lógica Transcendental:
- 25 Logik II, FSW IX, 136-7.
(...) a absoluta forma do pensar é a diferença entre ser e imagem. A consciência da mesma é assim uma intuição intelectual de compreensão absoluta, evidência, clareza, e fundamento de toda outra compreensão; mas também só da compreensão. Quero dizer, esta intuição é toto genere distinta da consciência de uma propriedade qualitativa de A, isto que usualmente se denomina intuição, e em contraposição à qual denominei intelectual a primeira; (...). Pois através dessa intuição intelectual não será dada nenhuma propriedade, senão algo totalmente outro, o sentido, o significado pelo qual se deve considerar a propriedade; seja ela tomada como ser ou como imagem. E isso é de fato a absoluta compreensão do fenômeno25
- 26 Tatsachen des Bewußtseins 1811/12; GA IV 4, 52.
35Assim, a dicotomia produzida pela consciência intencional descritiva, que se dirige ou se focaliza exclusivamente em função do objeto, e nesse foco exclusivo necessariamente omite para si sua própria presença, esse saber delimitado por uma determinação positiva do objeto e por uma consequente negação de si, só pode ser superado através de uma consciência mais fundamental, genética, ciente da lei de construção do objeto, ou seja, de sua própria atividade construtora. Como diz Fichte em seu curso sobre os Fatos da Consciência de 1811, “nossa intuição intelectual não é intuição de um objeto, mas de uma lei para um objeto. (...) Nós destacamos o saber e o intuímos. A intuição fundamental é a auto-intuição do saber”.26
- 27 WL 1812, FSW X 322.
36Como, porém, poderíamos compreender melhor essa auto-intuição do saber? O que de fato distingue essa forma de saber das demais? Uma breve incursão na teoria fichtiana da figuração pode trazer algum esclarecimento sobre isso. Também denominada por Fichte como Bildlehre (doutrina da imagem), a teoria do saber enquanto imagem do Absoluto constitui o cerne de sua obra tardia. Em certa medida, a Bildlehre pode ser interpretada como uma fenomenologia do conhecimento, pois Fichte pretende explicar o saber como uma espécie de jogo reflexivo de imagens que reproduzem ou espelham, em diferentes níveis, a manifestação do Absoluto a partir do eu. Como afirma o autor em 1812, “a WL é a imagem a priori do saber, que produz a si mesma pura e simplesmente, na sua absoluta unidade e legalidade (Gesetzmäßigkeit).”27
- 28 Cf. §7. HEIDEGGER 2002, 58.
- 29 Alles unser Wissen geht schlechthin aus von einem absoluten Faktum, dem eben, daß die Erscheinung v (...)
- 30 Ou Thathandlung, termo de arte fichtiano utilizado na Grundlage de 1794, ao qual Fichte se refere n (...)
37Em certa medida antecipando a fina análise do conceito de Phainomenon feita por Heidegger na introdução de Ser e Tempo28, Fichte descreve o saber através do conceito de imagem justamente para indicar o mostrar-se essencial contido no próprio saber, seu aparecer imediato e necessário. Em outras palavras, o saber (não reduzido ao sentido usual do termo, enquanto discurso ou argumentação, mas sobretudo considerado enquanto puro modo de captação ou relação consciente), é um UrFaktum29, um “fato” originário da consciência. Entretanto, e aqui está o ponto que concatena as diferentes versões da WL, este saber ou conhecimento que aparece, que se mostra necessariamente, deve ser compreendido como um ato reflexivo originário30, como uma realidade fenomênica que só existe porque se autoconstrói, e mais ainda, como um fenômeno que só aparece na medida em que intui a si mesmo, vê a si próprio como puro fenômeno cognitivo.
- 31 WL 1812, GA II 13, 57: “Was ein Bild sei, erklärt nur das Bild selbst: es führt das Bild seines for (...)
38A clausura epistemológica exigida por um idealismo transcendental estrito toma aqui sua dimensão mais radical. Se o legado da primeira Crítica kantiana, com uma pequena ressalva à contraditória coisa-em-si, extirpou da fundamentação do conhecimento qualquer base transcendente, a virada copernicana de Fichte revelou dentro da própria estrutura transcendental modos de apreensão que ainda preservam um dualismo epistêmico, os quais reproduzem no âmbito das relações categoriais puras a mesma postura do realismo ingênuo. Somente uma imagem que se mostra enquanto imagem31, um saber autopoiético que se sabe ou se intui enquanto saber, pode talvez superar essa intrínseca insuficiência da lógica do discurso racional.
- 32 WL 1812, FSW X 318.
39A partir da teoria da figuração proposta por Fichte, podemos determinar, além dessa insuficiência inerente à forma objetivante ou ao ponto de vista meramente fático da lógica discursiva, outra insuficiência da razão, no que concerne a seu limite externo. Em certo sentido, podemos afirmar que o saber enquanto imagem é absoluto porque capta a si mesmo na sua totalidade interna. Mas captar essa totalidade é justamente traçar suas próprias fronteiras. Logo, revelar-se enquanto imagem significa também representar um afigurado, simbolizar aquilo do qual se é imagem. Aqui surge a grande dificuldade teórica de reconciliar dois aspectos aparentemente por completo antagônicos na Doutrina-da-Ciência: o estrito idealismo transcendental imanente, postulado nas teorias correspondentes do eu puro e do saber absoluto, e, por outro lado, a recorrente referência a uma instância divina transcendente, a um Deus ou Ser ou Absoluto inconcebível, que ao mesmo tempo deve servir como base de todo conceber. Por isso, na WL de 1812, Fichte questiona: “como se pode chegar a uma tal imagem; ie., de que maneira pode o saber, enquanto uno e fechado em si mesmo, (...), saltar para fora de si, alienar-se dele próprio? Muitos negam justamente essa possibilidade; dela depende a existência da WL.”32
- 33 WL 1804, GA II 8, 151.
40De fato, a última etapa no desenvolvimento da WL almeja explicar a relação que deve existir entre o saber absoluto e seu fundamento incognoscível, i.e. o próprio ser absoluto. Se toda esfera do compreensível, daquilo que constitui nossa experiência consciente, se esgota na determinação do puro saber, deve existir uma forma análoga de completude que não esteja, contudo, delimitada pela livre construção do saber. Em outras palavras, Fichte afirma uma distinção modal última entre a possibilidade de um saber que se constrói livre e continuamente e a necessidade absoluta de um ser imutável, o qual só pode ser descrito como um absoluto “von sich, in sich, durch sich”, ou ainda, na tentativa fichteana de uma indicação mais adequada, “um esse in mero actu, de modo que ser e vida, e vida e ser se interpenetram completamente, se fundem entre si e são o mesmo”.33 Como bem sintetiza Stolzenberg,
- 34 STOLZENBERG 2000, 138.
na sua relação com aquele Ser pressuposto, o saber absoluto atinge o limite de seu auto-esclarecimento. Pois considerando que neste Ser o momento de livre criação, que constitui o saber absoluto, não lhe pertence, a referência a esse Ser pode ser denominada como referência a um não-Ser do saber absoluto.34
41Nesse sentido, a negação do saber absoluto é uma afirmação religiosa. Fichte, sem dúvida profundamente influenciado por Jacobi, prossegue ao longo de todo desenvolvimento tardio da WL sempre convicto dessa fé primordial, inabalável perante a realidade ilusória construída pela mente finita. Tal fé segue de perto as palavras exortativas de sua meditação de 1800, quando Fichte escreve:
- 35 Bestimmung des Menschen, FSW II, 248.
eu anseio por algo que se encontre fora da mera representação, que aí está, e esteve, e sempre estará, mesmo que a representação não existisse; e para o qual a representação apenas olhasse, sem criá-lo ou modificá-lo um mínimo sequer. Considero uma pura representação como uma imagem traiçoeira; minhas representações devem significar alguma coisa, e se não existe nada fora do saber que a todo meu saber corresponda, então minha vida como um todo me decepciona.35
42Em busca de uma coerência interna a seu projeto sistemático, Fichte precisa conciliar o conceito transcendental de conhecimento com suas intenções religiosas. No presente trabalho, tentei brevemente sugerir uma possível interpretação para o conceito de intuição intelectual que permite realizar uma tal síntese assimétrica. Intuir a si mesmo, essa a forma imediata e essencial do eu enquanto saber, aparece como caminho único de revelação dos limites e daquilo que impõe limites à razão. Destarte, o argumento apagógico de Fichte contra a hipostasia de qualquer lógica, essa espécie de reductio ad absurdum da ilusória supremacia da razão conceitual, conduzirá a Doutrina-da-Ciência a uma teologia negativa ascética, a qual, como podemos ler na seguinte passagem do 3o ciclo de preleções da WL de 1804, revelará o aspecto mais surpreendente e austero da intuição intelectual:
- 36 WL 18043, GA II 7, 367-8.
O aniquilar-se e sacrificar-se desse próprio eu é, portanto, o fenômeno mais absoluto: ou a manifestação, e nesta manifestação de modo algum aparece o eu como um real, senão o Absoluto se manifesta, como introvertendo a si mesmo, desde o seu ser-aí: e o aparecer do eu, como o absoluto e puro aparecer, sem uma verdade real em si: irrecusável, porque é a condição para a introversão do Absoluto. Isto, esta intuição de seu próprio nada, e o introverter do Absoluto, como Absoluto em si mesmo, é de fato a verdadeira intuição intelectual e fora dela não há outra.36
Referências bibliográficas
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_________. (2001) Ultima Inquirenda. J.G. Fichtes letzte Bearbeitungen der Wissenschaftslehre Ende 1813/Anfang 1814. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2001. (Ed. R. Lauth).
BREAZEALE, D. (2007) Der Blitz der Einsicht« and »der Akt der Evidenz«: A Theme from Fichte’s Berlin Introductions to Philosophy. Fichte-Studien 31, 1-15.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2002.
KANT, I. (1997) Critica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
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ROSALES, J. R; CARVALHO, M.J.A.. (Org.). (2009) La Polémica sobre el Ateísmo. Fichte y su Época. Madri: Editorial Dykinson.
STOLZENBERG, J. (2000) Zum Theorem der Selbstvernichtung des absoluten Wissens in Fichtes Wissenschaftslehre von 1801. Fichte-Studien 17, 127-140.
Notas
1 KANT, KrV B 29.
2 Fichte é bastante explícito sobre a busca dessa raiz inescrutável: “Daß ich nun die W.-L. an diesem historischen Punkte, von welchem denn auch allerdings meine von Kant ganz unabhängige Spekulation ehemals ausgegangen, charakterisire: - eben in der Erforschung der für Kant unerforschlichen Wurzel, in welcher die sinnliche und die übersinnliche Welt zusammenhängt, dann in der wirklichen und begreiflichen Ableitung beider Welten aus Einem Princip, besteht ihr Wesen.“ (WL 1804, GA II/8, 20 – minha ênfase).
3 Um bom panorama sobre essa discussão pode ser encontrado em ROSALES, J. R; CARVALHO, M.J.A.. (Org.). (2009) La Polémica sobre el Ateísmo. Fichte y su Época. Madri: Editorial Dykinson.
4 Talvez seja interessante fazer algumas observações ou digressões de cunho historiográfico-bibliográfico sobre como o conceito de intuição intelectual foi usado (assim como algumas vezes evitado) por Fichte, e principalmente sobre como tal conceito foi mal interpretado por alguns de seus leitores. Existem muitas maneiras de derrogar já de início a proposta de leitura do projeto de Fichte aqui apresentada. Uma das mais simples seria percorrer os índices da Edição Crítica da obra do autor, para então constatar que o uso intensivo da expressão “intuição intelectual” - se consideramos o curto período entre a Wissenschaftslehre Nova Methodo e sua versão subsequente na WL de 1801/2 - empalidece, quando não desaparece por completo na fase tardia. Isso é tanto um fato inquestionável quanto, a meu ver, também um erro imperdoável. No caso específico deste filósofo que afirma explicitamente que seu sistema deve ser lido a partir de seu espírito mais íntimo, e justamente por isso modifica continua e radicalmente sua própria terminologia a cada nova versão da WL, tal refutação factual, ipsis litteris no melhor sentido da expressão, soa no mínimo extravagante, senão como completamente inadequada. Um erro similar seria avaliar a obra fichtiana como um todo a partir de seus dois textos mais celebrados: a única versão publicada em vida da Doutrina da Ciência, a Grundlage de 1794, e a segunda série de preleções do curso da WL de 1804. Sem dúvida em ambas obras canônicas Fichte jamais menciona a expressão “intuição intelectual”. Contudo, uma consulta mais pormenorizada sobre as fases que precedem imediatamente o desenvolvimento de ambos os referidos textos revela não só uma longa investigação sobre a intuição intelectual nas Meditações Pessoais sobre Filosofia Elementar (Eigne Meditationen über Elementarphilosophie), mas também um uso central da expressão no primeiro ciclo de preleções no inverno de 1804. Deixando de lado tais pseudo-objeções estritamente bibliográficas, encontramos na história da filosofia um célebre motivo para a derrocada do conceito de intuição intelectual: tal motivo chama-se Hegel. Em sua primeira tentativa de superação dos sistemas filosóficos vigentes, e aqui me refiro ao trabalho realizado no Differenzschrift, Hegel apresenta uma interpretação tão unilateral quanto distorcida deste conceito central fichtiano. Hoje estamos em melhor posição para aquilatar essa crítica, e fica claro como a contribuição hegeliana foi produzida sob a forte influência da apropriação que Schelling faz do termo. Também não é difícil de entender como Schelling e Fichte, tão cedo quanto a primeira publicação aparentemente fichtiana de Schelling (Vom Ich als Prinzip der Philosophie), tenham desde então seguido percursos filosóficos bem distintos, e suspenderam não muito depois disso qualquer intercâmbio intelectual direto. Mas foi precisamente a tentativa de Schelling de transformar a concepção fichtiana sobre intuição intelectual em uma espécie de conhecimento místico do próprio Absoluto aquilo que levou seu colaborador suábio, no § 27 do prefácio da Fenomenologia do Espírito, a condenar qualquer tipo de conhecimento puro e imediato enquanto mero “tiro de pistola”. Nesse sentido, surgiram razões bem concretas para Fichte evitar o uso da expressão em sua época.
5 Dediquei um capítulo da minha tese de doutorado a uma primeira tentativa de elaborar tal aproximação, restringindo minha análise, contudo, a alguns trechos da WL de 18042.
6 Eis uma passagem que expressa de forma clara, dentro do contexto tardio da filosofia fichtiana, essa mesma ideia: “na medida em que a WL intuiciona (einsieht) que ela pode ter apenas o saber como seu objeto, que, portanto, ela é doutrina do saber (Wissenslehre), e elimina completamente o Ser, e claramente reconhece que uma doutrina do Ser (Seinslehre) não é possível: assim ela é ao mesmo tempo idealismo transcendental, ie., absoluta eliminação do Ser mediante a reflexão sobre si própria. WL e idealismo transcendental significam uma e a mesma coisa. Aquele que afirma: “não há uma doutrina do Ser, a única doutrina e ciência possível é a ciência do saber”, esse é um idealista transcendental, ao reconhecer que o saber é o que de mais elevado pode se tornar conhecido.” (WL 1813; FSW X, p. 4)
7 Todas as traduções são minhas, exceto quando indicado o contrário.
8 Refiro-me aqui ao manuscrito da Wissenschaftslehre Nova Methodo, assim como às duas introduções à WL do mesmo período.
9 Fichte tinha plena consciência dessa objeção, como atesta a seguinte passagem emblemática de seu curso tardio em 1813: “Es fragt sich: könnte es vielleicht über dieses Bewußtsein des Wissens hinaus noch geben ein Drittes, ein Bewußtsein des Bewußtseins des Wissens? Nein; denn wäre dies, so hätten wir den aufgestellten Begriff der W.-L. nicht scharf gefaßt, und wüßten nicht, was wir redeten. Schlechterdings alles Wissen soll in ihr werden Objekt und Bewußtes. Sollte nun die W.-L. selbst wieder Objekt und Bewußtes werden für ein höheres Bewußtsein; so wäre dieses dritte Wissen =W³ die W.-L. W.-L. ist also nur dasjenige Wissen, welches schlechthin nicht wieder Objekt werden kann eines neuen Wissens, sondern durchaus nur Bewußtsein ist. Alles andere Wissen begreifend und begründend, müßte sie darin zugleich sich begreifen und begründen. Wenn wir dies mit dem bekannten Sprachgebrauch von subjektiv und objektiv bezeichnen wollen, so müssen wir sagen: die W.-L. bleibt in alle Ewigkeit nur subjektiv, und wird nie objektiv.” (WL 1813; FSW X, 5).
10 “In order to recognize that the contradictions between »Wissen« and »Sein« can actually can be solved, one actually has to solve them for oneself. In order to recognize that there is indeed a higher ground of unity between consciousness and its object, one has to see this ground for oneself.“ (BREAZEALE 2007, 4).
11 SW II, 9 - minha ênfase.
12 “Erweiß,” assim escreve Fichte em 1804, “d.h. nicht nur faktisch evident, daß beide unzertrennlich sind, dergleichen auf allen Stufen schon sattsam erzeugt worden, sondern genetisch, also daß man die Entstehung, als absolutnothwendig, aus einem höhern Standpunkte einsehe“ (GA II 7, 139).
13 Como afirma Fichte em 18041: Vollig klar wird dieser Punkt werden, wenn wir uns zur Einsicht des nothwendigen Zusammenhanges dieses absoluten Intelligierens u. absoluten Anschauens in uns selber, u. dadurch zur intellektuellen Anschauung, als dem eigentlichen inner Standpunkte der WL erheben. (GA II 7, 131).
14 Ultima Inquirenda. FICHTE 2001, 66/35r-36r.
15 Cf. WL 1804, GA II 8, 7.
16 Refiro-me ao intervalo de oito anos posterior à Querela sobre o Ateísmo e prévio à retomada da atividade letiva de Fichte na então recém inaugurada Universidade de Berlim.
17 Begriff; GA I 2, 120. (Tradução de Torres Filho).
18 No original, entäusserte.
19 WL 18042, GA II 8, 350.
20 Logik II, FSW IX, 178.
21 A WL pretende elucidar a forma da manifestação ou do fenômeno, e não deduzir ou provar a origem da própria realidade. Esta será apenas indicada indiretamente com o conceito de vida (Leben). Cf. por exemplo WL 1812, FSW X, 340.
22 Tentei expressar com esse neologismo o termo Abbild, visando indicar tanto o sentido de reprodução da imagem como o de configuração, do verbo Bilden, duplicidade essa sempre presente no uso de Fichte do étimo Bild.
23 As lições sobre os Fatos da Consciência percorrem exemplarmente esse duplo trajeto.
24 Limito-me a expor aqui, além do sentido epistêmico dessa expressão, e foco do presente trabalho, também algumas indicações sobre o sentido religioso do termo. Deixarei de lado as possíveis leituras éticas sobre a intuição intelectual, tal como, por exemplo, a discussão em PERRINJAQUET 1999.
25 Logik II, FSW IX, 136-7.
26 Tatsachen des Bewußtseins 1811/12; GA IV 4, 52.
27 WL 1812, FSW X 322.
28 Cf. §7. HEIDEGGER 2002, 58.
29 Alles unser Wissen geht schlechthin aus von einem absoluten Faktum, dem eben, daß die Erscheinung von sich weiß, sich erscheint. Alle Deduktion, Einsicht, Verständigung etc., die ja nur im Wissen möglich, bedarf darum dessen, als einer Voraussetzung, als Grundfaktum. (WL 1812, FSW X, 344).
30 Ou Thathandlung, termo de arte fichtiano utilizado na Grundlage de 1794, ao qual Fichte se refere novamente na WL de 1804. Cf. WL 1804, GA II 8, 202
31 WL 1812, GA II 13, 57: “Was ein Bild sei, erklärt nur das Bild selbst: es führt das Bild seines formalen Seins, seinen Charakter in seinem Sein unmittelbar bei sich. Kann nur angeschaut werden, nicht gedacht.”
32 WL 1812, FSW X 318.
33 WL 1804, GA II 8, 151.
34 STOLZENBERG 2000, 138.
35 Bestimmung des Menschen, FSW II, 248.
36 WL 18043, GA II 7, 367-8.
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Referencia electrónica
Thiago S. Santoro, «Intuição como princípio, intuição como fim. Apontamentos sobre a continuidade do projeto filosófico fichtiano», Revista de Estud(i)os sobre Fichte [En línea], 15 | 2017, Publicado el 01 diciembre 2017, consultado el 15 febrero 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/ref/774; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/ref.774
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