Navegación – Mapa del sitio

InicioNúmeros26Artículos/ArtigosReflexividade como princípio – ou...

Artículos/Artigos

Reflexividade como princípio – ou por que o eu não pode ser abolido

Thomas Sören Hoffmann

Resumen

Based on an analysis of the thought of Kant, Fichte and Hegel, the article aims to show the centrality of the concept of reflexivity as a principle of knowledge and, therefore, as a fundamental tool for thinking, against the naturalistic vision, about both the self (and subjectivity) and the sciences themselves in contemporary times. Reflexivity is revealed here as a concept specific to the classical German philosophy.

Inicio de página

Texto completo

1Há um famoso dito de Johann Gottlieb Fichte que diz:

2“A maioria dos homens seria mais facilmente levada a tomar-se por um pedaço de lava na lua do que por um eu

3Sabemos que este dito bizarramente jocoso de Fichte já era ridicularizado em seu “círculo mais próximo”, o que, contudo, não impediu o filósofo de incluí-lo na segunda edição da sua Fundação de toda a doutrina da ciência [Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre], na qual já se encontrava em 1794/5 (GA I/2, 326). Fichte observa, até explicitamente, que este dito não perderia a sua validade tão rápido – com o que já estamos em meio ao tema da nossa palestra. Pois, de fato, mesmo hoje o diagnóstico de Fichte não parece ter perdido o seu significado: mesmo quando os seres humano hoje em dia não se imaginam necessariamente como lava da lua, há muitos outros caminhos de se desincumbirem de sua subjetividade e, assim, de se transformarem de sujeito em um objeto, de “alguém” em um “algo”. De entrada, forneço três exemplos capitais para isso:

41) Desde o século XIX estamos familiarizados com a inquietação coletiva de que, por detrás ou por baixo da nossa “encenação” pública enquanto seres livres racionais, poderia se esconder na verdade algo outro do que uma subjetividade esclarecida, de que aqui, ao contrário, poderia se espreitar um “algo” sombrio e caótico, algo que a verdadeira tarefa da “cultura” [Kultur] é ocultar por trás de várias máscaras – inquietações dessa espécie já tinham sido levantadas por um autor presente às preleções de Fichte, claramente sem grande sucesso de aprendizado – refiro-me a Arthur Schopenhauer –, e mesmo o schopenhaueriano erudito, Friedrich Nietzsche, apontou nesta direção quando pôde reduzir toda a vida à expressão de uma “vontade de poder” avaliadora e apreender a vida em si como o “abismo sem limites” no qual se afunda toda a ordem racional das coisas (por exemplo, no poema altamente simbolista “Der geheimnisvolle Nachen” [“O barco misterioso”]. Certamente, foi a psicanálise a mais influente no que diz respeito a esta abdicação interior da subjetividade pessoal que se organiza a si mesma e à substituição do Eu por um Isso [Es]; seu enunciado fundamental e sua atitude perante a vida [Lebensgefühl] nos permitem lembrar enfaticamente do “Sonho da razão que produz monstros” (El sueño de la razón produce monstruos) de Francisco Goya. A psicanálise, que rapidamente abriu um horizonte muito mais vasto do que o meramente terapêutico, tornou-se posteriormente também o grão-vizir secreto de muitas correntes intelectuais e também filosofias da moda do século XX, de que recordo como exemplos apenas Lacan e o pós-estruturalismo. Aqui vale em toda parte, sempre com variações no detalhe: os seres humanos são “mais facilmente levados a tomar-se por um Isso em vez de um Eu”, por uma bola de brinquedo de uma vontade obscura do que por uma personalidade autônoma, por uma função “emergente” de circunstâncias do que por um ser espiritual que se determina a si mesmo. Por que eles fazem isso e se com efetivo rigor, ainda deve ser discutido.

52) Do mesmo modo, há – eis o nosso segundo exemplo – naturalismos que, provindos menos das visões de mundo do que das ciências, abalam a autocompreensão do homem como sujeito essencialmente livre e autodeterminado. No centro se encontra aqui frequentemente a pergunta acerca da liberdade da vontade [Willensfreiheit], a qual deve ser escamoteada com argumentos e experiências aparentemente irrefutáveis – presentes até mesmo em folhetins – e ser substituída por um determinismo atualizado sempre conforme a ciência guia dominante: essa ciência guia pode ser ora a genética, ora a fisiologia do cérebro, ora também uma biologia holística dos sistemas, enquanto o resultado, porém, é sempre: o que os seres humanos fazem não é expressão da liberdade e configuração responsável da vida, mas da realidade natural, é, em última análise, “algo”, não finalidade, sentido ou expressão justamente de uma escolha tomada por si. Neste ponto, apenas observo de passagem que essa disputa sobre se o ser humano é afinal livre, ou se está sempre submetido a uma determinação externa, é quase tão antiga como a própria filosofia, o que também ao menos significa que há mais de 2500 anos temos a escolha de nos tomar por seres que podem escolher, ou também por seres através dos quais apenas se executa algo que, na verdade, está fundado fora deles próprios: uma conexão natural inquebrantável, o poder dos astros, um factum universal, uma conexão completa de causa e efeito de todos os fenómenos a ser explicada mecanicamente, ou qualquer outra coisa. Em favor do fato de poder haver algo de especial na manifesta escolha entre nos tomarmos como escolhendo livremente ou determinados externamente, relato aqui o seguinte pequeno acontecimento que teria ocorrido pouco depois do ano 2000, portanto, exatamente em uma época em que as últimas versões de um determinismo fundado neurológica e cérebro-físiologicamente chegavam no mercado – o livro de Gerhard Roth Fühlen, Denken, Handeln. Wie das Gehirn unser Verhalten steuert [Sentir, Pensar, Agir. Como o cérebro controla nosso comportamento], publicado pela primeira vez em 2001, e os ensaios de Wolf Singer sobre cérebro Der Beobachter im Gehirn [O Observador no Cérebro], publicado um ano mais tarde. Naquela altura, meu orientador de doutorado tinha como vizinho um diplomata, com quem se entretinha repetidamente, por cima da cerca do jardim, sobre questões filosóficas fundamentais, incluindo o determinismo na sua então forma mais recente. O diplomata, que decerto se inclinava sobremaneira ao determinismo, via-se confirmado pela então nova literatura e tentava sempre com maior insistência converter o meu orientador de doutorado ao seu ponto de vista. Quando, um dia, a conversa sobre este assunto se tornou cada vez mais acesa e o diplomata quase desesperou com a inacreditável obstinação do filósofo, só lhe restou exclamar: “Mas você não pode simplesmente negar os resultados da ciência!” – Ao que a resposta calma e sorridente do filósofo, ou seja, meu orientador de doutorado, foi: “Se você tem razão, por que está tão nervoso?” Para além de seu chiste, que ilumina imediatamente a situação, essa resposta é de fato uma resposta filosófica, na medida em que recorda ao interlocutor que, quando falamos de liberdade e de nosso ser-sujeito, não descrevemos objetidades externas, mas sempre tematizamos também nossa autorrelação e nossa autocompreensão – uma autorrelação, da qual ainda veremos que e em que medida se encontra no fundamento de toda relação objetiva [Objektverhältnis].

63) Finalmente, – e este é nosso terceiro exemplo da atualidade da “lava na lua” – há também uma forma de auto-objetificação do ser humano, por assim dizer, voltada para frente, uma objetificação que, em parte, certamente encontrará o seu coroamento somente no futuro, mas cuja realização é anunciada como progredindo a passos largos. Trata-se de visões de mundo como o “transhumanismo” e mesmo o “pós-humanismo”, que assumem que, com meios técnicos, é possível elevar o ser humano a um novo nível de evolução; no caminho do Human Enhancement[“aprimoramento humano”], o homem deve se desenvolver física e intelectualmente como que a novos graus de perfeição e, com isso, se apropriar daquelas capacidades potencializadas que alguns já veem em ação na “inteligência artificial”, em veículos que funcionam “autonomamente” e em robôs sempre cada vez mais independentes. Formas extremas destas ideologias falam mesmo da entrada do homem em um “estágio pós-biológico”, ou seja, da possibilidade, em princípio, de deixar para trás toda a sua existência natural. Se perguntarmos a autores como Raymond Kurzweil, que defendem esta posição, o que é na verdade o ser humano na medida em que, em consequência de aperfeiçoamento forçado, ele já não existe física ou corporalmente, a resposta soa assim: o ser humano é um registro de dados que pode ser facilmente armazenado num disco rígido e que pode continuar a existir muito além do tempo de vida natural do homo sapiens sapiens. Não temos de entrar aqui em uma autêntica discussão sobre as distopias transhumanistas, se insistimos [festhalten]: em nosso tempo a frase de Fichte pode, manifestamente, ser reescrita na versão: “Muitos homens são claramente mais facilmente levados a se tomar por um registro de dados no disco rígido do que por um eu”. Em todo o caso, essa tendência é favorecida por uma redefinição [Neubestimmung] dos conceitos de saber, conhecimento e também de educação [Bildung], que hoje em dia estão multiplamente definidos de acordo com diretrizes puramente técnico-informáticas e – o que é relevante para o nosso tema – não reconhecem nenhum lugar para um saber autenticamente reflexivo. Voltaremos a este ponto ainda mais uma vez perto do fim: antes disso, veremos mais de perto, em três etapas, o que há a dizer a partir da perspetiva da filosofia, em particular da filosofia clássica alemã de Kant a Hegel, sobre o tema anunciado no título desta palestra da incontornabilidade [Unhintergehbarkeit] da subjetividade. As três etapas que percorreremos estão associadas aos nomes de Kant, Fichte e Hegel: com o nome de Kant, porque o homem de Königsberg foi o primeiro, ou como nenhum outro, a apreender a ideia do incontornável primado epistemológico da subjetividade; com o nome de Fichte, porque ele, como nenhum outro, desdobrou as implicações prático-morais da nossa liberdade por natureza [Freiheitsnatur]; finalmente com o nome de Hegel, que sabia muito precisamente a incontornabilidade do “eu penso” kantiano e, a partir desse saber, tentou demonstrar a reflexividade de todas as formas de pensamento, isto é, instituiu o ponto de partida de toda a filosofia em uma crítica radical das formas de pensamento. O resultado das nossas reflexões será que “reflexividade”, em perspectiva sistemática, não perdeu de modo algum a serventia e que o “eu” não pode ser consequentemente reificado, nem naturalizado ou digitalizado sem que, com isso, fosse abandonada ao mesmo tempo a tarefa do autoconhecimento humano, portanto, o conteúdo central da filosofia, mas também abandonada a tarefa de toda educação [Bildung] e cultura [Kultur].

I. A revolução de Kant – a descoberta da forma reflexiva do saber como forma basal

7Comecemos, portanto, com Kant, o “revolucionário” no reino do pensamento, aquele que, naturalmente, nos confronta com a dificuldade de que sobre ele se pode dizer muita coisa, muita coisa, aliás, pertencendo ao nosso tema. Em vista de nosso fim, deixem-me reduzir esse “muito” a um único pensamento, que, decerto, se tem efetivamente de ser sopesado e compreendido, se queremos nos aproximar adequadamente de Kant. Esse pensamento, exposto em forma de tese, soa assim: Toda ciência, todo conhecimento objetivo pressupõe a unidade formal da autoconsciência – a realização atual dessa unidade da autoconsciência é a condição da possibilidade da unidade formal de nossa experiência de objetos – o que também podemos resumir da seguinte forma: Reflexividade precede (lógica-epistemologicamente) a objetividade. Autorrelação precede a relação com o objeto. O Eu precede a coisa.

8Não nos surpreende que essa tese fundamental de Kant – apresentada por mim aqui em forma condensada – já parecesse paradoxal para muitos leitores no ano da publicação da Crítica da Razão Pura – no entanto, o paradoxo logo desapareceu para as cabeças mais lúcidas, tão logo, pois, compreenderam que Kant não visava com “subjetividade” arbitrariedade, com “reflexividade” ponderação narcisística e, em geral, com o “eu” indivíduos empíricos tal como eles andam e param, mas visava a forma fundamental constitutiva-reflexiva da consciência, sem a qual não pode haver em nenhum indivíduo empírico em geral um saber de algo, quanto mais percepções [Einsichten] comunicáveis entre indivíduos. Eu gostaria de tentar aproximar de vocês a ideia fundamental de Kant a partir de um único parágrafo da Crítica da Razão Pura, a saber, o famoso § 16 de sua segunda edição. Nesse parágrafo, Kant fala de uma “unidade originalmente sintética da apercepção”, sendo que “apercepção” significa a autorrelação formal do pensamento ou da subjetividade, e a prova de uma “unidade originalmente sintética” da mesma é tão importante porque toda unidade na experiência pertence à forma da experiência e, portanto, ao entendimento que faz a experiência, não é ela própria, contudo, um “objeto da experiência”. Diferentemente da consciência cotidiana, Kant sabe que não apenas as leis naturais não são objetos naturais (não as encontramos na percepção), mas também que os objetos naturais, abstraídos da experiência conforme a leis [gesetzmäßige Erfahbarkeit], não têm nenhum caráter autêntico de objeto, o qual, ao contrário, eles possuem apenas como funções do fazer da experiência. Nesse sentido, os animais têm, decerto, percepções [Perzeptionen, Wahrnehmungen], e podem também se habituar a padrões de percepção; no entanto, eles não têm um conceito de leis naturais e objetos naturais que só podem ser fundados teórica e reflexivamente, ambos os quais só podem ser estabelecidos por referência a uma unidade formal de experiência que é capaz de ser consciente como tal. Em outras palavras: se a unidade, à qual o conhecimento deve se voltar, não se origina justamente da percepção sensível, a qual só pode fornecer multiplicidade, então, na ação de entendimento em geral [im Vollzug von Verstehen überhaupt] tem de se realizar um potencial de unidade pertencente à forma da consciência, potencial que se mantém através de todos os atos concretos de entendimento, abarcando-os sob si mesmo. Assim, tem de haver também um “ponto focal” [Brennpunkt] de todos atos de entendimento ao qual eles convergem e que, inversamente, eles projetam sobre o múltiplo da experiência. Kant expressa essa exigência no § 16 da Crítica da razão pura B, de modo concentrado na fórmula:

  • 1 Kant, I. Crítica da razão pura, B131.

O eu penso tem de poder acompanhar todas as minhas representações; pois, do contrário, seria em mim representado algo que não pode ser pensado de modo algum, o que significa simplesmente que: ou a representação seria impossível, ou ao menos não seria nada para mim.1

9Todas as representações, que devem ter significação real para mim, têm de poder receber o índice de que eu as penso, pois representações das quais isso não poderia valer, seriam enquanto representações “pensadas por ninguém” imediatamente excluídas de qualquer mediação com significação possível. Em toda proposição que articulo com pretensão a verdade, eu digo junto implicitamente que eu mesmo respondo pela verdade dessa proposição, de modo que afirmo decididamente mais do que meramente que aquilo que digo é a verdade. “Eu mesmo” aqui não significa, é claro: eu como este Peter Schmitz, cuja grande autoridade pressuponho como conhecida, mas eu como ser pensante em geral, que, como tal, afirmo isso ou aquilo, também pode confiar suas ideias como verdadeiras a outros seres pensantes, outros “eu penso”. Nesse sentido, Kant distingue a “apercepção empírica”, ou seja, a autoconsciência do Sr. Schmitz, da “apercepção original” ou da “unidade transcendental da autoconsciência” (Kant, 1787, B 132), com a qual se visa a forma lógica de toda consciência possível e, por conseguinte, de todo pensamento. Dessa forma, ele recorre à forma fundamental da subjetividade em geral, de ser a autorrelação lógica em todas suas representações, sejam elas quais forem, a fim de ancorar nela toda a unidade qualitativa da experiência, bem como as formas de pensamento que a realizam concretamente. Em todo pensamento concreto, não tentamos nada além de conservar a unidade transcendental da autoconsciência. Kant observa explicitamente que esse estado de coisa é tudo menos claro para a consciência empírica, pois a consciência empírica se perde imediatamente em suas representações e, por isso, também é “em si mesma dispersa e não tem relação com a identidade do sujeito” (Kant, 1787, B 133). A unidade originariamente sintética do pensamento chega à consciência somente em atos sintéticos conscientes em referência ao múltiplo, nos quais o pensamento pode pelo menos experimentar a si mesmo como a fonte da continuidade de suas representações. Também é possível resumir isso da seguinte forma: que há a atualização da autoconsciência somente em conjunto com a atualização da consciência concreta do objeto. Nesse contexto, Kant não fala, por ventura, de uma autocriação pura do eu; ele se limita a uma teoria do sujeito como o foco formal do saber e, por isso, a formula da seguinte maneira: “Sou consciente do eu idêntico, relativamente ao múltiplo das representações dadas a mim em uma intuição, porque eu as denomino minhas representações, e elas assim constituem uma” (Kant, 1787, B 135]. A chave para a gramática das ciências, para a lógica da objetividade se encontra, portanto, em uma gramática da autorrelação, em uma lógica da subjetividade. Seguindo uma terminologia mais recente, também é possível expressar isso de seguinte forma: a posse do mundo na forma de uma lógica da primeira pessoa é condição de possibilidade de uma descrição do mundo na lógica da terceira pessoa. Proposições científicas, que segundo a forma são como a última, ou seja, descrições ou explicações do mundo no sentido do aspecto da terceira pessoa, são originalmente fundadas no fato de que o mundo se revela ao pensamento, isto é, a uma efetuação subjetiva da forma, portanto, a mim. Sem essa primeira iluminação [Erschlossenheit] de mundo para mim, não há nenhuma verdade objetiva; sem a possibilidade de recondução, ao menos de princípio, daquilo que afirmamos a algo que nós podemos entender, não há enunciados “válidos” – qualquer outra coisa, de acordo com Kant, seria uma recaída na metafísica dogmática. É verdade que em todo enunciado objetivo está contido mais do que a subjetividade que a formula, e a tarefa das ciências, de fato, não é o auto-espelhamento do sujeito. Mas, ainda assim, todo enunciado objetivo tem de ter passado pelo médium da reflexividade, pela subjetividade, para poder significar algo ou apontar para algo. Mais uma vez Kant:

  • 2 Kant, I. Crítica da razão pura, B134s.

“A ligação (...) não reside nos objetos e não pode ser deles extraída, quiçá através da percepção, para somente então ser acolhida no entendimento; ela é tão somente, pelo contrário, um trabalho do entendimento, que não é ele próprio senão a faculdade de ligar a priori e colocar o diverso de dadas representações sob a unidade da apercepção, cujo princípio é o mais elevado em todo o conhecimento humano”2.

10Nós compreendemos por meio do entendimento, mas o objeto não é pensável como objeto sem nós, sem nosso ato de conhecimento. Nessa medida, também pode-se dizer que somos, pelo menos em termos teóricos, atos de conhecimento existentes. Saber disso nos protege de um falso objetivismo ou (no sentido de Kant) de uma falsa metafísica, ambos os quais acreditam que o conhecimento está, em princípio, disponível “em si mesmo” e sem um sujeito que o efetue. A partir da crítica kantiana do conhecimento, constatamos neste ponto como resultado: todo conhecimento de objeto já pressupõe a autorreferência reflexiva do sujeito do conhecimento [Erkennender] e não é possível sem essa pressuposição. O sujeito pode, decerto, esquecer-se de si mesmo no objeto, o que ele faz repetidamente, desde a consciência cotidiana até a pesquisa científica; no entanto, isso não suprime a função que a acompanha da autorrelação reflexiva de ser garantidora da identidade no processo de conhecimento. Inversamente, entretanto, não há nenhum caminho do objeto para o sujeito. A reflexividade não pode ser exposta e realizada em relações objetivas; a relação é assimétrica. Mas justamente por isso, reflexividade é princípio do conhecimento.

II. Fichte – ou por que nós nos decidimos pela lava

11Podemos chamar Fichte de o pensador que desenvolveu o “princípio da reflexividade” de Kant de forma tão consequente como nenhum outro e, com isso, tentou ao mesmo tempo expor toda a filosofia como doutrina de uma subjetividade que se desenvolve racionalmente. Também haveria muito a ser dito sobre Fichte, mas também com ele vamos nos limitar a mais ou menos um único pensamento que nos leva mais fundo na problemática em questão. Em primeiro lugar, notemos que Fichte, enquanto fiel discípulo de Kant neste ponto, não abre mão da subsunção de toda consciência de objeto sob a autoconsciência: para ele também, o conhecimento teórico só é de fato possível com base no autoconhecimento (formal ou, sob determinado aspecto, relacionado ao conteúdo); para ele também, como para Kant, há um “primado do prático”, o que também significa que todo saber teórico tem sempre implicações práticas e pode ser avaliado praticamente. Nesse contexto, Fichte também apresenta um argumento muito inteligente a favor da liberdade de vontade: um argumento que se encontra em sua Doutrina dos Costumes de 1798 e que afirma que um ser capaz em geral de pensar, que, portanto, é capaz do conceito universal [Allgemeinbegriff], nunca pode, justamente por isso, estar comprometido com uma única opção de ação. Quer dizer, o conceito universal nos confronta com o dado particular, bem como com seu possível oposto; é determinado pelo dado, bem como por sua negação. O conceito universal do ser humano, por exemplo, abrange tanto os seres humanos atualmente dados quanto os outros seres humanos, portanto, os passados e os futuros. O conceito universal sempre abarca aquilo que é, bem como aquilo que não é, e justamente através disso libera uma consciência de possibilidade, que, em um sentido prático, ou seja, no fio da questão pela realização desse conceito, é uma consciência de possibilidade [Könnensbewusstsein] imediatamente experimentável. O princípio da vontade livre é, por conseguinte, um “você pode, porque você pensa”, e pensa, aliás, em conceitos universais. Precisamente por essa razão, a face desta terra também mudou massivamente desde que o homem a pisou pela primeira vez, e no lugar do que, à primeira vista, pode parecer um dado “sem alternativa” entraram muitas perspectivas absolutamente alternativas, na verdade, novas realidades dadas, cuja razão última de existência não se encontra em nada mais do que na consciência de possibilidade [Könnenbewusstsein] do ser humano, em sua relação com um horizonte de possibilidade no qual a simples repetição daquilo que a cada vez é o real já está transcendida e já estão abertas perspectivas completamente diferentes daquelas do sempre igual. Nessa medida, a consciência teórica da universalidade não é, de forma alguma, um princípio praticamente inócuo. No universal, ou melhor, na reflexão sobre ele, já reside assim a crítica do mundo particular, uma crítica que a todo momento pode se tornar efetiva em ações possíveis e virar do avesso a particularidade dada.

  • 3 Cf. GA I/5, 185.

12Neste ponto, no entanto, não queremos seguir esta linha na direção da liberdade de vontade, mas sim, com a ajuda de Fichte, tentar entender um pouco mais de perto de onde vem a tendência à autonaturalização e à autorreificação do ser humano, de onde, portanto, tira sua atratividade a “lava na lua”. A “lava” não representa apenas o que é coisa em geral [das Dingliche überhaupt]. Ela é uma imagem para a atividade e a energia coaguladas, é lembrança de um fogo e de uma vida que já existiram, mas que agora estão petrificadas e sujeitas apenas a leis externas. Nesse sentido, a imagem da lava também pode ser lida como imagem da inércia que, de acordo com Fichte, não só desempenha um papel na física newtoniana, mas também pertence, em particular, à ética. Para Fichte, a “inércia”3 representa a raiz de todos os vícios, que podem ser resumidos nos três Fs – Feigheit (covardia), Faulheit (preguiça), Falschheit (falsidade). Ela representa, na figura de todos esses vícios, a tendência humana de escolher a heteronomia para evitar o esforço que, de outra forma, seria necessário, e para renunciar a uma configuração da vida verdadeiramente autônoma. Quem, por exemplo, é covarde, evita o esforço da bravura, isto é, a energia que seria necessária para realmente fazer valer a mim mesmo e meus interesses contra as resistências externas; quem é falso, quer se poupar das reações que a veracidade traria consigo – fica claro aqui que, em ambos os casos, não se trata de um eu autodeterminado, mas de um indivíduo humano que permite que circunstâncias e influências externas ditem a forma de sua existência. Na inércia, a viva inquietação [Unruhe] que eu sou fundamentalmente como ser da liberdade, está extinta em uma existência morta. Eu me entreguei à minha natureza de coisa e me tornei coisa entre as coisas.

13Nesse sentido, pode-se dizer com Fichte que a aceitação e a atratividade de um conceito naturalista do ser humano se baseiam essencialmente no fato de que esse conceito apreende o ser humano e seus atos existenciais de forma completamente análoga aos contextos naturais de reação, mas, com isso também, fundamentalmente “alivia” o ser humano de uma responsabilidade que propriamente lhe cabe como um ser capaz de responder. Exatamente por essa razão, reformadores do direito penal de inspiração naturalista têm argumentado repetidamente a favor de basear o direito penal não na assunção de responsabilidade pelo infrator, mas na proteção da sociedade (portanto, de forma rigorosamente utilitarista-preventiva) – como o já mencionado Wolf Singer. Já Hegel observara sobre essa problemática que isso significa considerar o infrator da lei como um “animal nocivo” e não como um ser capaz de liberdade, o que, naturalmente, também é uma afirmação sobre a autocompreensão do jurista penal correspondente, bem como sobre sua imagem da sociedade humana. Nesse sentido, Fichte diz que a filosofia que se escolhe – se é idealista ou realista, moralista ou pensador-coisa [Dingdenken] – sempre mostra que tipo de pessoa se é. Como idealista, o próprio Fichte não pode e não quer prescrever a ninguém que tipo de filosofia se deve escolher – para o idealista, trata-se, pois, de que ninguém seja coagido, mas que justamente em razão de uma livre escolha apanhe aquela filosofia na qual deseja se encontrar. No entanto, – mesmo que não possa ou não queira obrigar –, Fichte pode argumentar em favor de que a autocompreensão de liberdade do ser humano é a autocompreensão teórica e praticamente mais integrativa e adequada, mais ainda, é a autocompreensão propiamente humana de nós como seres conhecedores e agentes. Isso pode ser comprovado com pelo menos três referências:

141) Por um lado, não há consciência prática, mesmo empiricamente, que não estivesse disposta de modo imediatamente reflexivo e que não contivesse também uma consciência da liberdade. Ninguém pode agir no sentido próprio sem atribuir a si mesmo a escolha de objetivo, ninguém pode agir sem ter a consciência de que nesse agir, de alguma forma, sempre se trata do próprio agente, e, finalmente, ninguém pode agir no sentido próprio sem também se ver capaz de nomear razões para esse agir. Nesse sentido, já o velho Sócrates apontava que todo naturalismo falha ao pensar que pode substituir minha motivação consciente a uma ação pela descrição externa de uma relação de causa e efeito. Não é a mesma coisa, contudo, se eu digo que vim a São Carlos para dar esta palestra porque levei em consideração o convite amigável ao seu círculo como motivador em muitos aspectos e então dei também minha palavra de que realmente viria – ou se eu digo que apareci aqui em razão de interconexões neuronais que ocorreram em um objeto que, a rigor, não posso chamar de “meu” cérebro, mas apenas de “um” cérebro. Nesse exemplo, reconhecemos de pronto o enorme reducionismo inerente à versão naturalista da questão e que está imediatamente correlacionado com a perda da dimensão reflexiva. Mais uma vez: mesmo a consciência cotidiana evita esse reducionismo, é, nessa medida, mais “realista” do que a descrição naturalista e, acima de tudo, também é capaz de se comunicar com os outros sobre ações, em vez de simplesmente constatá-las como eventos.

152) Para Fichte, assim como para Kant, um outro ponto é importante: nossa autoconsciência moral está submetida a um dever incondicional – em Kant: o imperativo categórico ou a lei moral; em Fichte a obrigação imediata de reconhecer, tanto pela lei moral quanto pela interpelação [Aufforderung], o outro ser humano [Mitmenschen] em sua liberdade. Em uma imagem naturista do mundo, não há nenhum dos dois: nem em geral algo incondicional, já que toda a resolução teoricamente apresentável da ação humana em relações de causa e efeito só conhece necessidades hipotéticas, nem também uma obrigação de reconhecer a liberdade alheia em virtude de sua autoridade interna, já que não há “liberdade” e de sua suposta experiência, igualmente, não pode resultar nada “incondicional”. Ao incondicional somente a subjetividade pode reagir, somente a autoconsciência reflexiva que se vê desafiada por ele como um todo. Nesse sentido, Kant pode dizer que a lei moral e nossa consciência da liberdade estão correlacionadas, pois somente a última fala em favor da primeira, assim como, simultânea e inversamente, a própria liberdade é o incondicionado, o qual nunca pode estar disponível. A esse respeito, também, torna-se claro qual é o significado de subjetividade no sentido de Kant e do Idealismo Alemão: é a subjetividade na qual somente encontramos o absoluto – não, é claro, um absoluto representado como coisa, uma mera imaginação do grande todo, mas sim uma auto-afirmatividade absoluta, da qual nenhuma outra certeza teórica ou prática pode se aproximar e que, por isso também, estabelece a medida para aquilo que constitui o valor de outras certezas teóricas e práticas. Não é coincidência que Kant pôde se tornar o verdadeiro pai da ideia moderna de dignidade humana, ideia que em Fichte também desempenha um papel significativo. Apenas a partir da “reflexividade como princípio” essa ideia pode ser fundada e tornada plausível. Todo pensamento naturalista tem de renunciar a essa ideia – o que hoje em dia ele faz cada vez mais frequentemente, “aliviando-se” assim, aparentemente.

163) Por fim, um ponto metodológico: somente sob o signo da “reflexividade como princípio” o saber humano pode ser uno e também ter um fechamento interno [inneren Abschluß], pode ser produzida a maior coerência sistemática possível, mesmo que esferas completamente diferentes sejam percorridas e trabalhadas. Basicamente, repete-se aqui um insight já adquirido na antiguidade, a saber: que um autêntico “saber conclusivo” [Abschlußwissen], que também sabe de seu caráter conclusivo, só pode ser um saber autorreferencial, um saber que retorna a si mesmo, em cujo círculo, então, pode entrar tudo o que é sabido em particular. Nesse sentido, Platão afirmou que só uma epistêmê tês epistêmês [ciência da ciência] poderia formar o autêntico fechamento de toda ciência, um saber que, em última análise, leva à visão que penetra a ideia do Bem e à sinopse, possibilitada por essa última, de todos os conceitos em sua ordem final [Zweckordnung]. Aristóteles ensinou, igualmente, que a forma suprema, mesmo divina, do saber é a noesis noeseos, o auto-conhecer da razão ou do espírito. Ambas as instâncias, o bem e a razão que se conhece a si mesma, ainda não representam aquela reflexividade imediata que foi alcançada para filosofia moderna com a subjetividade, mas que, no entanto, agora entra precisamente nessa função de marcar o fechamento do saber: ainda mais precisamente, de marcar o único fechamento possível do saber que pode ser pensado sob a condição simultaneamente inciante de um saber sempre finito mesmo segundo o conteúdo. Quem, neste ponto, sabe que o círculo da subjetividade é o início e o fim de nosso saber, também sabe que não estamos indefesos, à mercê de um predomínio nu do que é sabido ou do já sabido. Antes, nosso saber se organizará novamente em cada situação a partir do princípio da reflexividade, ao passo que o saber apenas passivo externo ou “já dado” [vorhandenes] como tal não tem nenhuma significação conforme o princípio kantiano da subjetividade. “Saber” não é nada de faticamente existente [nichts faktisch Vorliegendes]; “saber” é sempre apenas algo que se realiza na autoefetuação da subjetividade. Em favor de Kant e do idealismo alemão, podemos falar aqui de um conceito “atualista” de saber – e com isso, chegamos ao mesmo tempo a um ponto que permite facilmente a transição para Hegel!

III. Hegel – o conceito enquanto conceituar

17 Em Hegel, o princípio da reflexividade tomou um rumo notável e altamente significativo do ponto de vista sistemático – o qual eu gostaria de discutir muito brevemente –, na medida em que Hegel executou de maneira consequente em sua Lógica a visão de que no “inventário” de determinações de pensamento no qual nos movemos, há uma diferença fundamental entre determinações ou conceitos nos quais, por um lado, o pensamento não aponta para si mesmo, e, por outro, formas categoriais nas quais o pensamento explicitamente pensa seu próprio pensamento. No pensamento do número, por exemplo, ou no da causalidade, nós nos “perdemos” no objeto; no pensamento da inferência ou do conhecer, ao contrário, pomos nosso próprio pensamento como o conteúdo do que é pensado. Na principal obra de Hegel, sua Ciência da Lógica, a terceira parte é chamada de “Lógica Subjetiva” exatamente por essa razão; o que em primeiro lugar significa algo como: a lógica do pensamento que pensa a si mesmo, que tematiza a si mesmo. Nesse contexto, Hegel mostrou que já faz parte também da forma da lógica tradicional ser uma lógica subjetiva. A aparente “objetividade” do que é lógico [das Logische] no sentido tradicional tem a ver apenas com o fato de que o que é lógico justamente se deixar fundar reflexivamente, isto é, ele traz em si mesmo seu fundamento e não fora de si mesmo. É o princípio da reflexividade de Kant que nos permite que nos seja iluminada efetivamente aquela certeza de si do racional, que está em questão com o que é lógico. O pensamento não-reflexivo só pode tomar conhecimento do que é lógico como algo fático; ele somente encontra conceitos, formas de juízos, inferências, demonstrações etc. Ao contrário, o pensamento reflexivo é capaz de deduzir o que é lógico em suas diferentes figuras, ao reconhecer nele as formas de autocertificação do conceito que conceitua, do ato de conhecimento.

18 A lógica subjetiva de Hegel, também chamada de “lógica do conceito”, oferece nesse sentido, em primeiro lugar, o que comumente se busca sob o título de uma “lógica”: uma doutrina das formas e funções subjetivas de conceituar, do juízo e do raciocínio, uma doutrina inteiramente geral das formas de pensamento nas quais o mundo se torna acessível a nós e nas quais nos entendemos sobre ele. Decerto, as determinações ou categorias discutidas anteriormente também eram “formas de pensamento”; todavia, nelas – no ser, na quantidade, no fundamento, na causalidade, etc. – sempre se tratava ainda de formas de pensamento nas quais o pensamento, como dissemos, tinha se esquecido completamente em seu objeto. Isso é diferente na “lógica subjetiva”: no julgar e raciocinar, no conhecer e provar, eu sempre penso conjuntamente que eu sou aquele que pensa [der Denkende] ou que sou pensante na coisa, que esta, portanto, se revela a mim no pensamento. Não é sem razão que, no início da lógica do conceito, Hegel tenha se referido à doutrina kantiana da apercepção transcendental, pois, de fato, sua exigência de que o “eu penso” tem de poder acompanhar meus pensamentos é doravante explicitamente cumprida na lógica do conceito ou lógica subjetiva. Hegel diz com isso: saber lógico, no mais estrito sentido, é sempre saber reflexivo – a lógica não se realiza “ao meu lado”, mas apenas no conceituar subjetivo. Saber lógico, pelo menos no sentido da lógica subjetiva, se caracteriza, assim, pela particular característica estrutural de que aqui o objeto do saber (por exemplo, a forma especial de silogismo que chamamos de “modus Barbara”) coincide com a forma do saber. O saber se efetua nos objetos que a lógica subjetiva trata e, por isso, está puro junto a si mesmo. Ou, em outras palavras: a lógica culmina em um saber da evidência da coisa [Offenbarkeit der Sache] como o momento lógico mesmo. O pensamento aqui se tornou “pensamento do pensamento”, como Aristóteles exigira para o fechamento da filosofia teórica, ou se tornou reflexivo e autodeterminante. Como fica claro aqui, Hegel entende a filosofia da subjetividade fundada por Kant em seu núcleo como filosofia de um conceituar que se determina a si mesmo; o princípio da unidade sintética de Kant é agora o pensamento da razão autônoma que se refere apenas a si mesma. O “conceituar” de um objeto significa doravante traduzi-lo em sua forma racional ou, o que é o mesmo, traduzi-lo na forma do eu ou suprassumi-lo [ihn aufzuheben]; significa elevar seu conhecer (sua logicidade), ainda oculto em sua objetidade, a um conhecer autoconsciente que chega à evidência [Offenbarkeit]. Em conformidade com isso, a “teoria do conhecimento” de Hegel diz que: “O conceituar de um objeto consiste, de fato, em nada mais do que o eu torná-lo seu, penetrá-lo e trazê-lo à sua forma própria, isto é, à universalidade, que é imediatamente determinidade ou determinidade que é imediatamente universalidade. O objeto na intuição ou mesmo na representação ainda é um algo externo, estranho [ein Äußerliches, Fremdes]. Por meio do conceituar o ser-em-si-e-para-si que o objeto tem no intuir e no representar, é transformado em um ser-posto; eu o penetro pensando” (GW XII, 18).

  • 4 Liebrucks, 1975, pp. 170-223)

19Ora, eu não quero neste ponto incomodá-los com uma exegese exaustiva de Hegel, mas sim voltar, mais uma vez, ao ponto decisivo para nós: o ponto da incontornabilidade da reflexividade, que também deve ser enfatizado exatamente quando, por exemplo, surge a aparência de que o ser humano – o conceituar existente, de acordo com Hegel – poderia se aperfeiçoar no sentido do “Human enhancement” [aprimoramento humano] através da aplicação de meios puramente técnicos e, por assim dizer, superar a si mesmo. Já mencionei no início que o problema com o qual estamos lidando aqui vem ao nosso encontro na forma de representações sobre o saber, o conhecimento e também sobre a educação [Bildung], as quais estão, primordialmente, determinadas pela tecnologia da informação – assim como hoje aquilo que se entende pelo conceito da chamada “educação digital” não significa que os meios digitais possam ser usados na aquisição de saber e no ganho de conhecimento, mas visa essencialmente adaptar nosso conceito e nossa práxis do saber e do conhecer ao conceito e à técnica do processamento maquinal de dados. Dessa forma, não apenas a assim chamada “interação” entre homem e máquina tem de se tornar possível também em termos cognitivos e permanentes; também o processo educacional do ser humano, que a filosofia desde Platão sabe que apresenta um problema profundamente ético, deve poder ser reduzido a um problema técnico e, ao final, resolvido por cientistas da computação [Informatikern]. A primeiríssima e mais importante objeção que tem de ser feita aqui é que há aqui evidentemente um equívoco, uma confusão no conceito do saber e do conhecimento, cuja admoestação é justamente um dos mais importantes problemas de uma filosofia que ainda vê sua tarefa no esclarecimento de nosso pensamento sobre si mesmo. Em primeiro lugar, saber e informação já estão confundidos aqui, para o que há na era tecnológica, certamente, uma razão evidente: a de que a “informação”, diferentemente do saber, pode ser quantificada, ou seja, medida, digitalizada e automaticamente gerenciada, o que, em sentido autêntico, não é o caso para o “saber”. Em sua essência, o saber é sempre qualitativo, isto é, determinado pelo conteúdo e diferenciado de acordo com níveis categoriais não quantificáveis, e, como sabemos ao menos desde Kant, ele só é propriamente cognoscível como saber reflexivo. Saber, em sentido próprio, não consiste no processamento de “informações”; ele é, antes, uma expressão de autodeterminação na relação com o mundo e consigo, ou seja, o oposto de qualquer tipo de “automatismo”. Nesse ponto, remeto com prazer a um dos mais importantes, se não for o mais conhecido dos intérpretes de Hegel no século XX, Bruno Liebrucks, que intitulou sua autobiografia filosófica “Das nichtautomatisierte Denken” [“O pensamento não automatizado”]4 e, com ela, disse algo muito fundamental sobre a filosofia e sua tarefa. Algo outro, não obstante, é importante na confrontação entre saber reflexivo e as instalações do processamento de informações tecnicamente mediadas: Hegel recorda que, com a lógica, entramos em um espaço de iluminação [Erschlossenheit], de evidência [Offenbarkeit] dos objetos e, ao mesmo tempo, de nossa relação com os objetos, espaço que, ao menos imediatamente, não vem ao nosso encontro da mesma forma na natureza ou também nas formações [Gebilde] e instituições historicamente criadas. Enquanto saber reflexivo logicamente fundado em si mesmo, o conceituar humano se move nessa esfera de iluminação [Erschlossenheit], nessa “luz lógica” – que as coisas como coisas não exibem e que também não pode ser reificada. Nenhuma máquina produz “iluminação” [Erschlossenheit], e nenhum ser humano futuro “aperfeiçoado” também pode levar ao mundo, no caminho de seu aprimoramento técnico, “iluminação” [Erschlossenheit], clareza, a luz da lógica, a não ser por meio daquele saber reflexivo que, de acordo com Kant, Fichte e Hegel, sempre antecede todo saber de objeto. O quale “iluminação” não é nenhum objeto de processamento quantificador – assim como, de resto, o autoconhecimento, que está sempre imediatamente ligado à forma do saber reflexivo, não pode ser administrado, digitalizado ou de alguma forma desligado do ser humano real. Se a filosofia, seguindo Kant, Fichte, Hegel, mas também outros, adere à “reflexividade como princípio”, ela é, como podemos dizer em conclusão, a ciência do ser humano real. Como toda realidade, esse ser humano real não pode ser abolido, o que não é verdade para seus artefatos. Nessa medida, estaremos lidando com ele ainda por muito tempo – o que, ao meu ver, é uma boa notícia.

Bibliografia

20Fichte, Johann Gottlieb. 1965. Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre (1794/95). in: Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. hg. von Reinhard Lauth u.a. Stuttgart-Bad Cannstatt. 1962-2012. Bd. I/2.

21Fichte, Johann Gottlieb. 1977. Sittenlehre. in: Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissen-schaften. hg. von Reinhard Lauth u.a. Stuttgart-Bad Cannstatt. 1962-2012. Bd. I/5.

22Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. 1981. Wissenschaft der Logik. Zweiter Band. Die subjek-tive Logik (1816). Herausgegeben von Hogemann, Friedrich und Jaeschke, Walter. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Gesammelte Werke (GW) 12.

23Kant, Immanuel. 1787. Kritik der reinen Vernunft. Zweite Auflage.

24Liebrucks, Bruno. 1975. „Das nichtautomatisierte Denken“. in: Philosophie in Selbstdarstel-lungen, Bd. II. hrsg. v. L. J. Pongratz. Verlag Felix Meiner. Hamburg 1975. S. 170-223.

25Roths, Gerhard. 2001. Fühlen, Denken, Handeln. Wie das Gehirn unser Verhalten steuert. Suhrkamp Verlag. Frankfurt a. M.

26Singer, Wolf. 2002. Der Beobachter im Gehirn: Essays zur Hirnforschung. Suhrkamp Verlag. Frankfurt a. M.

Inicio de página

Notas

1 Kant, I. Crítica da razão pura, B131.

2 Kant, I. Crítica da razão pura, B134s.

3 Cf. GA I/5, 185.

4 Liebrucks, 1975, pp. 170-223)

Inicio de página

Para citar este artículo

Referencia electrónica

Thomas Sören Hoffmann, «Reflexividade como princípio – ou por que o eu não pode ser abolido»Revista de Estud(i)os sobre Fichte [En línea], 26 | 2024, Publicado el 30 julio 2024, consultado el 10 noviembre 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/ref/2175; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/126cy

Inicio de página

Autor

Thomas Sören Hoffmann

FernUniversität in Hagen

Inicio de página

Derechos de autor

Salvo indicación contraria, el texto y otros elementos (ilustraciones, archivos adicionales importados) son "Todos los derechos reservados".

Inicio de página
Buscar en OpenEdition Search

Se le redirigirá a OpenEdition Search