- 1 Ofereci um tratamento destas críticas em Ferraguto, 2020a; para uma análise mais ampla do contexto (...)
- 2 Que notadamente apareceu na Intelligenzblatt da “Allgemeine Literatur-Zeitung” de Jena, o 28 de ago (...)
- 3 Cf. a respeito Bardili, 1800, p. 25-26; p. 342.
- 4 Sobre as relações de Fries com a filosofia transcendental cf. Roberto, 2007. Uma descrição geral do (...)
- 5 Para uma problematização desta distinção cf. Tognini, 1987.
1 “Todos os leitores que conhecem minimamente a história da filosofia mais recente admitirão que a inteira virada transcendental se limitou a um círculo que circunscreve a linha progressiva do idealismo à subjetividade como o único ponto médio de toda a verdade, e também admitirá que esse círculo se fecha com a sublimação fichtiana-schellinguiana do idealismo transcendental” (Reinhold, 1801-1803, I, p. I). Neste trecho, que abre os Beyträge reinholdianos de 1801, parece simples individuar a retórica ligada à insuficiência de uma filosofia puramente baseada na subjetividade, que identifica universalidade do pensamento com a individualidade do sujeito, que é definida pela redução da operacionalidade do pensar à logica formal e que não pode se tornar, senão metafilosofia1. De resto, já antes da famosa Erklärung kantiana de 17992, J.F. Fries antecipava aquilo que Reinhold escreve em 1801, acusando Fichte de ter sublimado as exigências de uma metafisica em um gás filosófico “que não pode ser chamado nem de argumento, nem de sentimento, mas de princípio” (Fries, 1798, p. 191). Na produção deste gás Fichte teria se limitado a revitalizar as leis da lógica formal, produzindo justamente uma metafilosofia bem diferente de uma metafísica capaz de dar conta das mais altas aspirações do espírito humano. Reinhold, na esteira de Bardili, quer recusar a possibilidade de que uma visão racional da realidade possa ser gerada a partir da síntese entre dois elementos heterogêneos: pensamento e matéria3. Fries alega que a descrição da correlação entre mente e mundo só prepara para a compreensão imediata dos conhecimentos metafísicos, que são completamente a priori e não podem ser derivados da experiência4. Tanto Reinhold como Fries, neste sentido, parecem entender a estrutura da razão humana como uma condição específica, poderíamos dizer um “estado”. Para Fichte a racionalidade configura-se, pelo contrário, como uma possibilidade oferecida ao ser humano como ser pragmático5. Na construção da Wissenschaftslehre (de agora em diante WL), de fato, a subjetividade não aparece apenas como o polo de uma relação de referência reconduzível à lógica formal. Ela se apresenta, mais do que isso, como o lugar em que se esclarecem conexões, interações dinâmicas e funcionais, que definem a experiência, não como reprodução de um dado, mas como uma prospecção de novos modos de estar no mundo.
- 6 Dewey, 1949, p. 48. Trata-se de uma abordagem que aparece também na definição pareysoniana de forma (...)
- 7 Cf. Staatslehre, Fichte, 1845, IV, p. 390. Trata-se de um dos termos básicos para entender o concei (...)
- 8 Muito interessante, neste sentido, é a definição dada por Dewey, conforme toda experiência tem um a (...)
- 9 Cf. a celebre afirmação da Segunda introdução na doutrina da ciência, Fichte, 1962, I, 4, p. 212.
- 10 De agora em diante os dois cursos de lógica transcendental irão ser indicados como TL I e TL II. Os (...)
- 11 A presença de Fries como objetivo polêmico das investigações fichteanas da lógica transcendental é (...)
2 Nesta forma o transcendentalismo poderia ser aproximado a uma teoria da investigação, conforme a qual as leis lógicas não são dadas, mas se constroem no próprio trabalho de investigação das conexões entre mente e mundo e concernem o controle do próprio proceder dela6. Assim, a posição transcendental de Fichte superaria a concepção kantiana do saber como síntese entre recurso empírico e elaboração não-empírica, para constituir uma concepção dinâmica da experiência caraterizada pela interação e entendida como a resultante de atividades cujo impacto seja tatbegründend7, ou seja se efetive na constituição de modelos para estruturar a realidade dada a partir de uma compenetração racional desta última8. A visão transcendental de Fichte leva à constituição de uma ideia de experiência em que esta última é exibida nas suas potencialidades racionais a partir de um olhar capaz de alcançá-las. Esta lógica transcendental reestruturada não deixa de ser, portanto, metafilosofia, na medida em que tem que apresentar e definir as condições e os requisitos para formar este olhar. Mas pretende ser metafisica também, pois leva a experiência para além da empiria, exibindo as dinâmicas em função das quais ela faz sentido9. Trata-se de um aspecto que caracteriza o inteiro percurso transcendental de Fichte e que culmina na exposição da Lógica transcendental de 181210, onde a reestruturação da lógica transcendental de cunho kantiano e a construção de uma metafisica se juntam justamente em uma chave crítica para com o realismo racional de Reinhold e o psicologismo de Fries11. Neste artigo, focado na análise das primeiras quatro lições da segunda Transzendentale Logik de 1812, irei desenvolver esta tese a partir de dois pontos de vista. O primeiro é histórico e textual e tem a ver com a definição da lógica transcendental como introdução na doutrina da ciência (§ 2) e com a maneira em que Fichte discute abordagens diferentes à própria lógica, entre as quais as de Fries, Reinhold e Bardili e do próprio Kant (§ 3). O segundo é mais teórico, envolve uma reflexão acerca do sentido da chamada de recursividade da doutrina da ciência e chama atenção para um problema que, à luz das muitas contribuições a respeito poderia parecer ingênuo: em que sentido a recursividade da doutrina da ciência permite uma reestruturação da experiência e racionalidade? Esta perspectiva permite esclarecer dois elementos implícitos no percurso transcendental de Fichte: a diferença entre lógica formal e lógica transcendental e a dimensão propedêutica desta diferença, o que mostraria a proximidade dela aos pressupostos da teoria da investigação de cunho deweyano (§ 4).
- 12 Neste artigo, não se adentra aos pormenores da questão teórica da introdução na doutrina da ciência (...)
- 13 Desenvolvi uma análise mais ampla e uma reconstrução histórica do conceito de Fertigkeit na doutrin (...)
- 14 Sobre a lógica transcendental como introdução e para uma síntese do debate que teve a esse respeito (...)
3 Notadamente os dois cursos de lógica transcendental, que Fichte ministra em Berlim em 1812, são concebidos como uma introdução à WL12. Em geral, sabe-se como Fichte implementa várias estratégias para introduzir à doutrina da ciência e que o objetivo dele é o de desenvolver uma sensibilidade, uma prontidão (Fertigkeit), poderíamos dizer um hábito ou uma habilidade, que possibilite o acesso ao ponto de vista e as estruturas conceituais da doutrina da ciência13. No caso da lógica transcendental, entretanto, não temos apenas um início externo à filosofia, mas também o desenvolvimento de uma parte da própria doutrina da ciência. Fichte inicia a filosofia tematizando uma ferramenta fundamental, a saber, o pensamento, por meio de um repensamento da disciplina que o articula14.
- 15 Sobre os vários sentidos da lógica no século XVIII cf. Pozzo, 1988.
4 TL II, assim como TL I, tem de fato, em primeiro lugar, o objetivo de elevar aqueles que participam de sua exposição à compreensão da doutrina da ciência, apresentando a especificidade do ponto de vista desta última em oposição à lógica comum, da qual a lógica transcendental consegue deduzir os pressupostos. Nesta perspectiva, TL II é ‘preparação’ ou ‘introdução’ à doutrina da ciência e representa um corretivo da logica comum15. Ela permite revelar aqueles erros para os quais “a não-filosofia é organizada a regra de arte” (TL II, p. 76). Segundo Fichte, expor a filosofia não significa filosofar, mas compreender e falar de filosofia (TL, II, p. 104). No entanto, a lógica transcendental desenvolve esse discurso sem poder assumir, em sua rede argumentativa, o princípio que a constitui como discurso filosófico sobre filosofia, exercido de fato. Na verdade, ela oferece uma visão da filosofia limitada a um único elemento, o pensamento. E, por outro lado, concede como pressuposto o que a doutrina da ciência em particular trata de tematizar, isto é, o figurar (Bilden, TL II, p. 84-85). TL II permanece, neste ponto de vista, ‘crítica’ e não filosofia, preparação para a doutrina da ciência, mas não a doutrina da ciência em sentido estrito. A compreensão de TL II como crítica e, portanto, como metafilosofia, não representa, entretanto, um limite. Em vez disso, ela leva à tona a sua especificidade e abre espaço para uma reflexão sobre a introdução da doutrina da ciência como um problema que reflete sua dinâmica especulativa e não como uma questão preliminar limitada a um contexto exclusivamente estético-retórico ou pedagógico. A parcialidade de TL II, de fato, se reflete em uma sequência de análises genéticas de exemplos particulares que parecem prima facie escolhidos arbitrariamente, mas que, à medida que a investigação avança, acabam sendo “a coisa mesma”, é o que o próprio exemplo pretende mostrar.
- 16 Na fase berlinense da doutrina da ciência o método da Realeinleitung é empregado também nas Einleit (...)
5 A característica fundamental desse método, que Fichte usa já na segunda exposição da Wissenschaftslehre de 1804 e que define como RealEinleitung (Fichte, 1986, p. 83-84), é tomar como seu nível epistemológico o plano da evidencia fática. A coincidência do exemplo utilizado com o que deve ser exemplificado por ele é, segundo Fichte, imperceptível e imediata e, portanto, ainda não inscrita na rede discursiva típica da doutrina da ciência in specie16. A introdução real também tem a tarefa de constituir aquele ‘nós’ que, no decorrer das descrições de TL II, se prepara para acolher a verdade da WL e, ao fazê-lo, tenta reconduzir o ‘fato’ do pensamento ao seu princípio genético. O ‘nós’, que na terceira lição de TL II se constitui como uma participação comum no exercício prático do exemplo, representa assim a junção da relação entre a consciência comum e o ponto de vista filosófico e permite passar de um para o outro. A construção dos exemplos que definem a Vorbereitung à doutrina da ciência é possível, segundo Fichte, graças a um ato da imaginação produtiva cuja função é libertar a intuição dos conteúdos do ponto de vista transcendental de seu caráter individual e imediato para se tornar uma aquisição estável: “não raios, mas a luz do dia da vida” (TL II, p. 109). O pensamento filosófico passa então a configurar-se - pelo menos na sua forma exterior - como a repetição controlada (TL, II, p. 171) de uma mesma sequência representativa, cujo propósito é conduzir a uma Einsicht autônoma e evidente, mas também compartilhável (TL II, p. 105 e 169).
- 17 Cf. por esta definição Rametta, 2003.
6 No entanto, o fato da imaginação estar ligada a uma série representativa específica significa que sua construção não aparece como um mero “inventar” (erdenken) sem regras, mas como uma “arte dialética do desenvolvimento” (TL, II, p. 173), que se desdobra segundo uma determinada lei, cujo reconhecimento explícito é, recursivamente, a sua própria finalidade. A expressão que Fichte usa para conotar essa dinâmica de produção e reconhecimento da lei é, como veremos melhor mais adiante, um Erfinden, um ‘descobrir’ ativo a partir de elementos conhecidos. Como uma atividade de descoberta, o reconhecimento criativo da lei implícita na arte dialética do desenvolvimento permite que o indivíduo filosofante se reconheça tanto como livre, quanto como envolvido em uma relação mais ampla que se reflete em seu fazer específico, mas não é esgotada por ela (TL, II, p. 222-223). A aquisição desta consciência é o ápice do caminho introdutório e reflete de modo explícito um projeto filosófico que pode ser interpretado no quadro de um pensamento da relação e da multiplicidade, que prevê o reconhecimento de um “princípio comum que forma a humanidade” como sua condição de possibilidade17. Assim, em termos gerais, pode-se dizer que a lógica transcendental é uma crítica da filosofia, na medida em que tematiza a compreensão das regras da arte de pensar corretamente sobre as conexões da lógica tradicional; é doutrina, na medida em que apresenta e deduz as leis do pensamento lógico a partir do pressuposto fundamental da doutrina da ciência, isto é, da natureza figurativa do conhecimento, e é, enfim, um órgão porque é funcional para a aquisição daquele habitus intelectual necessário para entender e desenvolver a doutrina da ciência. No entanto, em TL II os aspectos instrumentais, doutrinários e críticos não são mantidos separados, mas se sobrepõem organicamente. A aquisição do habitus necessário à doutrina da ciência, conseguido a partir da análise de exemplos particulares, coincide com a apresentação das leis do pensamento, que emergem da análise dos próprios exemplos particulares, e por meio da exposição e da justificação da ‘lógica’ que os regra e que está na base da doutrina da ciência.
- 18 Cf. § 7 do escrito Über den Begriff der Wissenschaftslehre oder der sogennanten Philosophie de 1794 (...)
7 Esse desenvolvimento circular revela a estrutura recursiva e auto-reflexiva da filosofia transcendental fichtiana e exibe seu caráter científico peculiar, definido, desde as primeiras abordagens de Fichte, a questão da relação entre pensamento filosófico e lógica formal.18 Esta cientificidade não tem a ver com a definição das determinações da lógica formal, mas sim com a definição das ações necessárias para dar vida ao conhecimento, como Fichte já explica na terceira lição de TL II, diferenciando uma filosofia empírica, que alcança o ser, de uma filosofia transcendental, que capta a gênese e o devir que define àquele próprio ser (TL II, p. 107-108).
- 19 Sobre este ponto cf. Zöller, 2013.
- 20 Um tratamento de uma possível interpretação crítica da lógica hegeliana a partir do ponto de vista (...)
8 Pelas muitas referências já presentes nas primeiras aulas de TL II, fica claro como o projeto que se concretiza nas aulas fichtianas pode ser contextualizado e compreendido a partir de referências de longo alcance que refletem o debate sobre a lógica do século XVIII, que se encontram na gênese da crítica kantiana e que são organicamente repensadas por Fichte à luz do programa filosófico que está na base da visão da WL. Este último visa esclarecer e deduzir a relação entre a investigação das condições de possibilidade do conhecimento filosófico e sua necessária articulação em formulações sempre novas das conexões com base nas quais se estrutura a compreensão da realidade19. Pode-se dizer que Fichte incorpora uma tendência geral, segundo a qual a lógica não é uma ciência que lida apenas com as regras abstratas do pensamento, mas, conforme o próprio Hegel escreve na Ciência da lógica, se realiza em um conhecimento que se dedica ao racional, isto é, à síntese entre a certeza (forma) e a verdade (conteúdo), ou, em outras palavras, é metafísica: ciência cujo objetivo é mostrar como as ideias relativas ao dever, ao infinito, à liberdade não são ideias infinitas no sentido de uma universalidade sem conteúdo, mas no da universalidade plena, entendida como determinidade do conceito (Hegel, 2004, 754), que se obtém pela elevação acima do finito, do condicionado, do sensível (Hegel, 2004, 755)20.
- 21 Conforme escreve Bardili, 1800, p. 1-2. Sobre o pensamento de Bardili e o impacto do pensamento del (...)
9 A própria definição de lógica dada por Fichte no início de TL I, não é nada relacionado com uma disciplina que enumera as regras abstratas de pensamento, mas, sim, com a compreensão do pensamento, do juntar e do julgar como resultado de uma força espiritual que na lógica se forma, se revela, mas não se esgota nela. Nos atos lógicos, escreve Fichte, o pensamento “que aparece como pensamento por meio do eu é apenas o reflexo do verdadeiro pensamento original, que o filósofo, enxergando, vê; pensamento original por meio do qual todas as coisas são e eu próprio sou, longe daquele ser por este” (TL, I, p. 47). São variações em torno de uma necessidade fundamental: definir as estruturas gerais da realidade a partir de um princípio geral que forma essa relação de acordo com as potencialidades do sujeito concreto, mas também não coincide com este último. A lógica é, neste sentido amplo, a definição da ordem da realidade, ou, para usar uma expressão de Bardili, a chave para acessar a essência da natureza (Schlüssel zum Wesen der Natur), para fazer do mundo um sistema e não um caos21.
- 22 Na reconstrução da abordagem fichteana ao psicologismo são relevantes, junto com o celebre Magazin (...)
10 No entanto, a tentativa de libertar o desenvolvimento do pensamento da atuação de um sujeito concreto também atende à necessidade de diferenciar a doutrina da ciência de uma forma de psicologia. A distinção entre filosofia, psicologia e lógica refere-se, de fato, aos protagonistas do debate sobre o psicologismo com o qual Fichte já se confrontava na época de seu ensino em Jena. Em especial, em seus cursos de lógica, Fichte tende a distinguir sua perspectiva daquela de Fries e da sua recondução da pesquisa transcendental à análise da vida interior do sujeito, conforme o filosofar se resolve “em uma questão de experiência interna”, em uma “auto-observação da alma conformando-se à experiência”, em “pesquisa antropológica”, “e consiste em um conhecimento psico-empírico”, ou em uma “ciência da natureza e das propriedades de nosso conhecimento a priori” (Fries, 1798, 199)22.
- 23 Cf. a respeito o quanto Fichte fala na lição de introdução na filosofia de 1810 transcrita por Twes (...)
11 Longe de se propor como partidário de um psicologismo que ele mesmo considerava ingênuo, Fries reconduz os procedimentos do conhecimento empírico a leis rigorosamente lógicas que conferem unidade aos estados empíricos do eu e também representam o caminho para uma generalização progressiva dos dados da experiência em função da formulação de máximas heurísticas para a pesquisa psicológica (Fries 1807, I, p. 321-322). Referindo-se à Begriffschrift de 1794, ele tenta mostrar como a afirmação que identifica a Wissenshaftslehre com a ciência das ações necessárias do espírito humano não está em contradição com o projeto de uma psicologia empírica, que Fichte sempre teria pretendido rejeitar (Fries, 1803, p. 21 -23). O procedimento hipotético da doutrina da ciência não pode ignorar a abstração e a reflexão, que são ações que representam o principal campo de investigação da psicologia. A impossibilidade de prescindir dela reúne o psicologismo da doutrina da ciência com a lógica formal que permanece um pressuposto implícito para a formulação discursiva de seu percurso. Diante da Wissenschaftslehre, nos encontramos, portanto, “desorientados. A princípio parecia-nos a ciência da ciência [...] depois ela é definida como antropologia filosófica” (Fries, 1803, p. 23). Este é o caráter de “significado historicamente mais elevado” da doutrina da ciência que, mesmo contra as intenções explícitas de seu autor, teria dado à antropologia a dignidade da única “filosofia primeira” possível. No psicologismo de Fries, bem como na antropologia filosófica que ele contrasta com a doutrina da ciência, a subjetividade representa um termo irregressível que une investigação transcendental, lógica e psicologia. Toda análise dos procedimentos do conhecimento é apresentada, em outras palavras, como uma investigação que se move a partir dos estados internos do sujeito para ser conduzida em total conformidade com as leis da lógica formal. O pressuposto da interpretação da WL como antropologia filosófica seria que o eu da doutrina da ciência em seu sentido último seria nada mais que o eu de um sujeito concreto e, em qualquer caso, não um princípio eficaz em um contexto auto-reflexivo (Fries, 1798, p. 191). A criatividade da compreensão científica também seria atribuída à polarização arbitrária da atenção, à associação de ideias (Fries 1807, I, p. 255) e, finalmente, sublimada na perspicácia do indivíduo filosofante para compreender melhor do que os outros as caraterísticas da sua própria vida interior (Fries 1798, 1 p. 78). Do ponto de vista fichtiano, entretanto, tal concepção é muito e muito pouco ao mesmo tempo. Muito, pois reduzir os fenômenos investigados pela doutrina da ciência a estados do sentido interno, empírico e, portanto, contingente, significa admitir a possibilidade de representações irrepetíveis do sentido interno, que Fichte rejeita como patológicas23. Muito pouco, porque a redução do eu a um pressuposto irregressível da compreensão científica e filosófica compromete a possibilidade de poder dar-lhe uma compreensão transcendental. Assim, enquanto “para o lógico [o eu] é um conceito abstrato”, o Wissenschaftslehrer pergunta “quem é esse eu fazendo isso? De onde vem sua força?” (TL I, p. 42).
- 24 Dentre os muitos tratamentos da teoria fichteana da imagem vou me limitar a indicar o mais acabado (...)
12 Mais do que um ponto de chegada ou um pressuposto inefável da compreensão psicológico-empírica, o eu de que fala a WL é o motor do “saber do saber”: a estrutura que intermedeia o processo de autocompreensão do conhecimento científico que o define (TL II, p. 223). O eu é fenômeno, poder figurativo, imagem. É sempre a reprodução de algo que não se esgota na reprodução figurativa. A imagem, como reprodução, contém o que reproduz, mas apenas de forma virtual: ela não se reduz à consciência representativa de algo exterior, mas está ciente de seu potencial, de seu caráter dinâmico24. A compreensão filosófica assume o eu como ponto de partida não porque representa um pressuposto irregressível, mas porque expressa o caráter fundamentalmente figural do saber: uma reprodução que se relaciona reflexivamente com sua própria origem e que se torna visível na própria imagem. Por isso Fichte pode argumentar, na conclusão da segunda lição de TL II, que não é o eu que pensa, mas o saber é que “pensa na apercepção” (TL II, p. 99).
- 25 Fichte parece aqui estar reinterpretando o trecho do § 16 da Critica da razão pura B, 134-135. Sobr (...)
13 O principal alvo crítico de Fichte em TL II é, nesse sentido, Kant. O erro fundamental da crítica kantiana é, segundo Fichte, o de limitar-se a uma mera descrição factual das condições de possibilidade das determinações do conhecimento, enquanto no contexto de TL II seria possível, por outro lado, apresentar o fundamento genético delas (TL II, p. 109-110) baseando-se em uma única tese fundamental - aquela segundo a qual o “Eu penso’’ não é o princípio do pensamento, mas um produto dele (TL II, p. 188-189, p. 212) - chegando, neste caminho, a uma descrição orgânica das determinações da lógica (conceito, juízo, silogismo). Na perspectiva de TL II, de fato, o eu é entendido como o meio que permite a especificação do próprio pensamento em determinações particulares. O eu configura-se assim como a estrutura reflexiva básica que regra a dinâmica do saber; em particular, é entendido como implicação da lei que define a origem do saber ou, mais precisamente, como imagem do ser que nele se revela. Essa compreensão do saber, não como um produto do eu, mas como uma totalidade dinâmica de relações (TL II, p. 110), implica um primado da apercepção como unidade analítica diante da percepção como unidade sintética25. Kant havia dado prioridade a esta última, ou seja, à percepção como aquela função original capaz de unificar o múltiplo dado na intuição sensível. Em Fichte, a apercepção deve ser entendida como o correlato do trazer-se à manifestação do conhecimento como vida do absoluto (TL, I, p. 188-189). A apercepção não produz um dado múltiplo, mas requer - é sua estrutura figurativa que o exige - que um múltiplo seja dado para a compreensão (TL II, p. 165). A percepção é, portanto, tanto um si (ou seja, um auto-relacionamento analítico, imediato, pré-reflexivo) como um si que se conhece reflexiva e sinteticamente como um si em relação a si mesmo. Este segundo aspecto, o momento da síntese, “é uma mera cópia da unidade analítica” (TL, II, p. 166).
14 Ora, a prioridade da unidade analítica não envolve uma desvalorização da sintética, mas simplesmente uma reconfiguração do que deve ser entendido por “síntese”. O ato sintético de apercepção não deve mais se limitar à capacidade do eu reconectar um dado múltiplo. A síntese terá que reconstruir - nachbilden - aquele si unitário que surge intuitivamente como uma unidade analítica. O momento reconstrutivo, entretanto, não segue cronologicamente a auto-relação analítica, mas é apenas uma maneira diferente de ver o si unitário. A unidade sintética é aquela perspectiva na qual um dado múltiplo pode ser entendido como unificado - ou nachgebildet - em função do eu. A construção da unidade sintética da apercepção deve, portanto, visar mostrar e exibir em uma imagem, o si da unidade analítica como aquilo que se desenvolve no devir (TL II, p. 176). A questão é complicada apenas em aparência, porque a intuição de si mesmo, ou do fenômeno, como o que se desenvolve no devir leva ao discurso sobre a estrutura do ver, que Fichte já havia abordado em TL I em dois sentidos. Em parte, porque a recondução do aparecer do fenômeno à unidade do ver representa a base para a construção transcendental da empiria e, portanto, do fato de um múltiplo para o eu. Em parte porque esclarece, de acordo com TL I, que a construção da empiria exige que no ver concreto seja sempre o fenômeno que vê a si mesmo. Cada intuição empírica está relacionada ao surgimento de um plano supra-empírico que, para o Fichte de TL II, “funda o campo prático” (TL II, p. 177). Essa fundamentação se dá em consonância com a metodologia utilizada no decorrer das lições, ou seja, com a arte dialética do desenvolvimento, na qual, como em parte já foi visto, o filósofo leva o ouvinte a apreender o aspecto genético de um fenômeno a partir de um exemplo aparentemente desconectado do problema principal a ser tratado, cuja função é, entre outras coisas, colocar o fenômeno observado em contradição consigo mesmo. Se afirmamos que a unidade analítica da apercepção tem prioridade sobre a unidade sintética, não vemos como deveria ser possível entender a apercepção como unidade analítico-sintética ao mesmo tempo, ou seja, como um lugar em que análise e síntese têm igual importância. (TL, II, p. 172). A função do método dialético, entretanto, não é a de “fundar” a percepção, mas apenas a de induzir o ouvinte das lições a “encontrar” autonomamente a maneira certa de considerar a mesma lei que se apresenta nos diferentes lados dos quais o fenômeno pode ser apresentado. O a arte dialética é, portanto, um método “compatível com a lei” e precisamente uma “construção” que tem a função de “um guia para inventar o conceito por meio da imaginação para que surja a evidência” (TL II, p. 177). O “encontrar”, ou o “inventar”, indicam um procedimento que conota simultaneamente o resultado de uma construção realizada de modo artificial e a descoberta de algo que permanece externo a ela. Com efeito, o que o Erfinden deve tornar reconhecível não é, senão a lei que determina a legalidade do método com que se realiza a construção, que é, ao mesmo tempo, aquela que regra o estar junto de dois aspectos aparentemente contraditórios do fenômeno (unidade analítica e unidade sintética de apercepção). Ou seja, a mesma lei rege o aparecimento absoluto do fenômeno na forma de uma unidade analítico-sintética da apercepção e o estabelecimento de uma visão que compreende e traduz essa dinâmica em conceitos. Assim, Fichte pode fazer aos seus ouvintes uma pergunta que, dada a complexidade dos temas discutidos até agora, deve surgir espontânea:
Agora, quando terminarmos, o que será? Veremos como vimos antes: só que este nosso ver terá outra qualidade constitutiva, compreenderá a si mesmo em seu fundamento ou em base e a partir de sua lei, assim como agora conhecemos o pensamento: não mais o saber simples, mas o saber que traz consigo seu expoente: um conhecimento que não apenas sabe, assim que refletido, o que, mas também por que é e é assim. Clareza (TL, II, p. 207).
- 26 Sobre o papel da atenção neste contexto, cf. Maesschalk, 2007.
15 O simultâneo inventar e descobrir que caracterizam a lógica transcendental não a distanciam, por si só, da lógica comum. Ambos procedem com base no desenvolvimento da liberdade da atenção26. Mas, ao contrário da lógica comum, a lógica transcendental radicaliza essa liberdade. Na verdade, ela “sabe que o pensamento da lógica comum é uma reprodução do pensamento original [...] Isso pressupõe um conhecimento relativo à maneira de seu modo de proceder e se contenta em ser uma imagem” do conhecimento originário, a partir da qual o pensamento se concretiza como síntese de um múltiplo. O ponto em que essa diferença se consuma é, para Fichte, relativamente simples: segundo a lógica comum, são dadas as formas, e não apenas a matéria, por meio das quais o pensamento se concretiza e organiza os dados. O pensamento nada mais seria, portanto, que a conjunção extrínseca das determinações relacionadas com a aplicação dessas formas. O eu lógico se veria diante de “duas imagens completamente novas” (TL II, p. 92), a de uma sequência de fenômenos e a do eu que o unifica em uma multiplicidade e em uma “simples visão geral”. Desse modo, a lógica comum forma um pensamento adequado e “a priori, antes de qualquer conceito geral” que, por um lado, lhe garante uma compreensão orgânica e sistemática da realidade e, por outro lado, permite-lhe enriquecer essa totalidade indefinidamente. O próprio Kant seria parcialmente responsável por essa atitude, pois ele admite que “há pelo menos algo, na estruturação conhecida do saber, que não pode ser dado a ele pelas coisas [...] mas que é fundado no próprio conhecimento” e que ele chama a priori (TL II, p. 111). Nesta perspectiva, as leis do pensamento certamente surgirão como formas de generalização dos dados empíricos. Mas esta não é uma condição suficiente para que sejam considerados necessários. O psicologismo da lógica comum e a sistematização correlata do múltiplo com base em uma visão global estão estruturalmente condenados ao ceticismo. A visão ampla e sistemática do múltiplo permite expor a própria experiência interna e, possivelmente, descrever sua dinâmica. Mas a consciência de que o que é dito ou descrito é o reflexo de um procedimento e de uma verdade que a priori definem o trabalho intelectual de cada um nunca pode derivar daqui. E essa necessidade, entretanto, também pode ser decididamente descartada.
- 27 Trata-se do ensaio Von einem neuerdings erhobenen vornehmen Ton in der Philosophie, em Kant, 1902-, (...)
- 28 O alvo crítico de Fichte neste ponto é, na verdade, Jacobi. Sobre este aspecto cf. Ivaldo, 1998 e H (...)
16 Tanto na primeira como na segunda lógica transcendental, Fichte associa essa possibilidade ao “senhor” de que fala Kant no ensaio de 179627 e usa sua semântica para enfatizar a função fundamental que o trabalho de reflexão tem em alcançar a Besonnenheit necessária para a execução e compreensão da WL. O senhor a que Kant se refere torna-se o ícone das consequências epistemológicas e existenciais implícitas na lógica comum. Ele “circumnavegou várias vezes, com um olhar penetrante do qual nada escapa”, explorou “o oceano das opiniões humanas”, graças à sua perspicácia dialética, “é capaz de voltar a criar milhares de mundos semelhantes, caso se percam”. Assim, ele eleva sua experiência passada a um princípio universal e afirma que nenhuma opinião é superior às outras “(TL II, p. 156). A habilidade imediata de penetrar nas opiniões dos homens, a invenção de novos mundos possíveis e a construção da experiência pessoal passada como um critério único de verdade, coincidem com uma desvalorização da razão e o com o consequente empreendimento metafísico inerente a ela (TL II, p. 248)28. O resultado da pesquisa realizada na Transzendentale Logik apresenta uma orientação diferente. Não o exercício de um talento imediato, mas a demonstração de que o pensamento surge como uma determinação necessária do saber. Junto com o saber, deve dar-se também o pensar, da mesma forma que a intuição e o múltiplo da intuição:
Objeto: o pensamento. Aqui reside a diversidade. -. De acordo com a lógica comum, é mais uma determinação casual da primeira representação, do conhecimento atualmente pressuposto; por exemplo, da representação do mundo. De acordo com a filosofia, é uma determinação original, sem a qual a representação não existe. Também é uma operação do pensamento, de um pensamento [...] Bem, é isso que chamamos de conhecimento que faz a si mesmo. Agora, isso é em parte um pensamento. Portanto, o pensamento faz a si mesmo: o saber pensa (uma proposição muito importante, TL II, p. 103).
17 Assim, se a lógica comum requer o “filtro” da reprodução em que o que é percebido empiricamente é devolvido a uma atividade sintética que faz com que os dados da percepção se conformem à reelaboração lógico-conceitual, a doutrina da ciência pretende ir além da reprodução para perceber reflexivamente o que se traduz em atividade reprodutiva. No contexto da lógica transcendental, essa superação se dá por meio de uma reflexão sobre o ver, entendido como “uma força espiritual que por si mesma se configura como tal olhar sintético” (TL, I, p. 46). É uma força, ou uma vida, que se exibe na atividade determinada do juntar. Não há visão porque há um objeto a ser visto. Mas os objetos são vistos porque é o ver a si mesmo que exige que algo seja visto em virtude de uma força que precede a visão real e se traduz nela. O fazer a si mesma da força do ver em uma visão real qualifica a conformação da própria força, isto é, a capacidade da força do ver constituir a si mesma em uma imagem (Bild). A imagem, por sua vez, tem dois lados. O primeiro diz respeito ao que é representado na própria imagem. O segundo, por outro lado, diz respeito ao operador ou à forma pela qual o ver é conscientemente colocado em uma determinada forma, independentemente da visão real. No primeiro caso, o ver converge imediatamente para o que se vê e, portanto, para uma determinada intuição. No segundo caso, entretanto, o ver assume a forma da regra segundo a qual o ver determinado pode ser entendido como uma formação particular da força figurativa do ver. Esta regra, ou lei, expressa essencialmente o conceito (TL, I, p. 75; TL, II, p. 92). A unidade de intuição e conceito, que, no decorrer das lições de lógica, Fichte expressa simbolicamente na forma b x a, constitui a origem do conhecimento real. O conhecer um objeto apresenta-se como uma imagem específica que unifica o ver que se perde no próprio objeto (intuição) e a lei que permite e regra esse perder-se (conceito). Os dois momentos, porém, são dois lados diferentes de uma única força não empírica que se transfigura em conhecimento real: a vida do ver. Ao atingir esse nível de compreensão da atividade cognitiva, a lógica transcendental pode desconstruir um pressuposto fundamental da lógica comum, segundo a qual o pensamento lógico encontra sua principal ferramenta na abstração livre. A atividade que a partir do dado empírico remonta às suas estruturas gerais representa o exercício do pensamento livre a partir de representações dadas. No entanto, esse pensamento livre troca o que faz parte da estrutura geral do pensamento - isto é, o fato de que ver é sempre ver de acordo com uma lei que o ver dá a si mesmo ao traduzir-se em um conceito - com a realidade efetiva, que o lógico considera como um objeto externo ao seu pensamento livre (TL I, p. 60). E, nesse sentido, a lógica comum assume como ponto de partida o que na realidade é um resultado e, em particular, o produto genético da visão do formar-se do saber. A doutrina da ciência, porém, não quebra com a consciência ordinária, mas aparece como um instrumento potencial de organização dele, no que diz respeito à sua própria matéria e aos seus problemas (Dewey, 1949, 1p. 23). O olhar reflexivo da lógica transcendental, de fato, redefine o sentido do que se entende por experiência. Ele não se fixa na elaboração de um dado intuitivo, mas se foca na constituição de um modelo, ou de um horizonte, em que os dados são constituídos, embora não produzidos, pela articulação do pensamento. O ponto de maior distância de Kant nas primeiras lições de TL II consiste justamente em uma compreensão diferente da relação entre mente e mundo e, em especial, na superação dos que Dewey chamam de “vínculos universais para restaurar a objetividade”, típicos do pensamento kantiano, os quais, porém, pressupõem o particularismo da experiência e recursos não empíricos separados para realizar a integração entre dado e conceito (Dewey, 2009, p. 6).
- 29 Cf. a respeito Johnston, 2006. Sobre a importância de Hegel e da filosofia clássica alemã na formaç (...)
18 De fato, a reconstituição fichteana da experiência à luz da vida do ver leva à uma conclusão que, mesmo de pontos de partida diferentes, fica muito próxima dos pressupostos que levam Dewey à construção de uma teoria da investigação. Mesmo continuando fiel ao espírito do idealismo, em construir a sua concepção da lógica como teoria da investigação, Dewey recusa o suposto dualismo implícito na concepção kantiana da experiência em função de uma concepção dinâmica inspirada por Hegel. Daí consegue certamente a suspeita para com toda separação entre teórico e pratico, mas, acima de tudo, a elaboração de uma ideia de saber e de experiência baseadas na interação entre si e ambiente que recusa o psicologismo em função de uma visão coerentista da consciência29. Com esta expressão podemos entender a explicação do surgir do dado e da possibilidade de reproduzi-lo a partir da estrutura interna da consciência. Mas podemos entender também o fato de que toda efetivação filosófica não surge a partir de regras abstratas, mas sim, reconduz toda efetivação específica do saber ao
resultado de alguma investigação específica, segundo a qual a concepção do saber enquanto tal não pode ser senão uma generalização de propriedades que se revelam pertinentes às conclusões que são a coroação da investigação. Saber [...] é um termo para designar o produto de uma investigação apropriada (Dewey, 1949, p. 40).
19 Na lógica transcendental fichtena esses dois aspectos do coerentismo deweyano se sobrepõem. A definição imanente (ou coerentista) da emergência do dado a partir da estrutura do saber vai junto com a definição das regras que tornam possível esta explicação. A definição da experiência, portanto, não termina na definição da empiria, mas na da essência da empiria, ou seja, na apresentação justificada da dinâmica em função da qual a empiria adquire um sentido racional e operacional por meio do desenvolvimento e da autorreflexão da imagem (Bertinetto, 2011, p. 209 ss.). Nesta perspectiva, as formas do pensamento simplesmente não são compreendidas e aplicadas aos dados intuitivos, mas construídas efetivamente e derivadas como aplicações do conhecimento a si mesmo. Em Fichte também “todas as formas lógicas (com suas propriedades e características) nascem do trabalho de investigação e dizem respeito ao controle da própria investigação tendo em vista a confiabilidade das afirmações produzidas” (Dewey, 1949, p. 34). As formas lógicas originam-se, portanto, nas operações de investigação, enquanto esta última (ou seja, o desenvolvimento do saber) é a causa das formas que a própria investigação justifica. As formas do pensamento, que a nível da lógica transcendental representam o sujeito da investigação, tornam-se por sua vez ferramentas para o sucesso da própria investigação, que não é um fim em si, mas se apresenta como base para o estabelecimento de certas situações existenciais (Dewey, 1949, p. 47). Neste contexto, em que a atividade de reflexão é especificamente operativa, as novas situações existenciais estabelecidas pela lógica transcendental, ou seja, os exemplos assumidos apenas aparentemente de forma arbitrária, mas na realidade atribuíveis à estrutura interna e não psicologicamente determinada do pensamento, representam problemas para realizar uma investigação concreta e completa das formas do pensamento e, como efeito, para preparar o desenvolvimento da filosofia primeira. Cada problema colocado no contexto introdutório representa, em outras palavras, um estado de coisas abordado pela investigação que, uma vez resolvido, a modifica, a justifica e a completa.
20 De resto, como o próprio Dewey admite,
A atenção para o modo de fazer é indispensável para o controle do que se faz. O artesão, por exemplo, apreende que se ele opera de uma certa forma o resultado prefixado vai se produzir com facilidade, dadas certas condições materiais. Ao mesmo modo, nós descobrimos que, em conduzir os nossos raciocínios de uma certa maneira, iremos chegar ceteris paribus a conclusões seguras. A ideia de um método de investigação surge como expressão explicita de um hábito já implícito em todo um conjunto de suposições (Dewey, 1949, p. 45).
21 A lógica como uma introdução, portanto, não é apenas extrínseca à doutrina da ciência, nem a doutrina da ciência pode ser entendida apenas como uma metafilosofia. Mais do que isso, a função instrumental da lógica no que diz respeito à filosofia representa um momento fundamental para que a investigação desenvolvida pela doutrina da ciência se realize numa efetiva reestruturação do pensamento que não permanece fixo e fechado em si mesmo, mas é estruturalmente aberto e eticamente qualificado.