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Recensões

Krieger, Linda Hamilton (org.), Backlash against the ADA: Reinterpreting Disability Rights

Bruno Sena Martins
p. 216-218
Referência(s):

Krieger, Linda Hamilton (org.), Backlash against the ADA: Reinterpreting Disability Rights. Michigan: The University of Michigan Press, 2003, 408 pp.

Texto integral

1Produto de um simpósio que reuniu juristas e activistas dos movimentos de pessoas com deficiência na Universidade da Califórnia, a colecção organizada por Linda Krieger surge como um importante momento reflexivo na avaliação do impacto do Americans with Disabilities Act (ADA). Este texto legal, aprovado em 1990 nos EUA, constitui uma legislação anti-discriminatória que, consoante lemos no seu preâmbulo, se propunha a efectivar os direitos das pessoas com deficiência na sociedade enquanto garante da igualdade de oportunidades, da total participação, da independência, e da auto-suficiência económica.

2Assim, sendo verdade que esta publicação é, antes de mais, um préstimo ao crescente número de interessados nas questões relacionadas com a deficiência, o seu mérito está longe de aí se deter. Ao longo de onze contribuições e quase 400 páginas, deparamo-nos, é certo, com uma forte componente descritiva onde são cuidadosamente focados inúmeros julgamentos e decisões processuais. Todavia, esta paciente visitação de casos particulares está longe de nos entrincheirar em minudências processuais apenas questionadoras do sucesso das pessoas com deficiência no recurso a um quadro legislativo particular. Ao invés, a evidência de um progressivo e reiterado esvaziamento das protecções preconizadas pelo ADA liga-se com questões de fundo acerca da transformação social. Tal sucede nesta obra, quer pelas questões que traz implícitas, quer pelas reflexões que propõe sobretudo nos textos de Harlan Hahn, Mattew Diller, Lenard Davis e Linda Hamilton Krieger.

3Antes de atentarmos nos contornos da contra-vaga ao ADA, expressão de difícil tradução que nomeia o livro, cabe perceber, desde logo, porque é que a adopção deste quadro legislativo colocou as pessoas com deficiência na “vanguarda de uma guerra sociolegal e cultural” (Diller, p. 81). Vários factores são explanados. O primeiro prende-se com a “situação de partida” das pessoas com deficiência. Na sociedade americana, como um pouco por todo o mundo ocidental, é flagrante a sua exclusão das mais importantes arenas da vida social (o preâmbulo do ADA refere a existência de 43 milhões de pessoas com alguma deficiência nos EU). Descortinam-se, como guardiães dessa exclusão: os valores e as atitudes subalternizantes, as barreiras arquitectónicas e comunicacionais, os obstáculos no acesso aos transportes, a ausência, insuficiência ou inadequação do apoio no sistema regular de educação, os critérios excludentes para a educação superior e para o emprego. No entanto, um tal quadro encontra-se hegemonicamente sancionado por concepções fatalistas e estigmatizantes, onde a marginalidade social das pessoas com deficiência é acolhida como o produto natural de condições físicas e mentais que impõem limitações.

4Em segundo lugar, e por contraponto às tais concepções pouco atreitas a ver as pessoas com deficiência enquanto socialmente oprimidas, haverá a relevar o arrojo do ADA para a capacitação de um grupo tão sistematicamente negligenciado. Quando surgiu em 1990, o ADA constituía o único estatuto federal de direitos civis com implicações no emprego onde se desenhava uma teoria estrutural de equidade (Krieger, p. 4). De facto, o ADA foi acolhido como um quadro legal deveras avançado, tendo sido designado por muitos como uma segunda geração de direitos civis. Mereceu especial ênfase o modo como “o princípio de não discriminação incluía inequivocamente um dever de adaptação razoável que os empregadores teriam que cumprir mesmo se a adaptação realizada diminuísse ligeiramente a produtividade de um empregado, desde que os custos implicados não se elevassem a um nível de “prejuízo insustentável” (ibidem).

5Finalmente, é de salientar em que medida a aprovação do ADA acontece sem que lhe precedesse um amplo movimento social com impacto sobre os poderes instituídos e sobre a opinião pública. Em bom rigor, o ADA foi o produto misto da actividade institucional das organizações de deficiência, do empenho de alguns congressistas e do paternalismo com que os governantes tendem a acolher a questão da deficiência. O aspecto mais pujante que daqui decorre cinge-nos à evidência (bem tratada nos textos de Lennard Davis e Harlan Hahn) de que o ADA surgiu sem que tivesse ocorrido uma consciencialização pública para os direitos das pessoas com deficiência. Portanto, diferentemente do efeito que decorreu, por exemplo, das mobilizações em torno discriminação racial e sexual, o «disablism» (a discriminação sobre as pessoas com deficiência) não conquistou um lugar evidente na consciência pública.

6Portanto, esta publicação pretende pulsar os efeitos práticos de uma lei arrojada dirigida a uma minoria sumamente marginalizada no seio de um status quo pouco sensível aos princípios que a inspiram. Conforme sugere o título da colecção, o balanço dificilmente podia ser mais negativo. Cedo as expectativas das pessoas com deficiência se começaram a confrontar com decisões judiciais que quase invariavelmente lhes eram desfavoráveis. As diferentes estatísticas que surgem ao longo do livro são disso expressivas. Os queixosos que se dirigiram a tribunal, alegando discriminação em processos relativos a discriminações no emprego, viram as suas pretensões nulificadas em mais de 90% dos casos.

7Sucedeu que os aspectos mais ambíguos na lei foram sendo sistematicamente interpretados em prejuízo das vindicações das pessoas com deficiência. O elemento mais crucial prendeu-se com a definição dos sujeitos que poderiam alegar situações de discriminação ao abrigo do ADA, ou seja, quem é que é considerado “indivíduo com deficiência”? A definição proposta pelo ADA tem três dimensões que pretendem abranger um conjunto mais amplo de indivíduos do que aqueles que são chamados deficientes na cultural popular. A mais relevante define o indivíduo com deficiência como alguém que tem “uma condição física ou mental que limita substancialmente uma ou mais das principais actividades da vida do indivíduo”. Ora, como os casos que produziram jurisprudência célebre mostram (com destaque para o caso Williams vs Toyota), esta definição foi interpretada num sentido assaz estreito, impedindo que muitos queixosos pudessem cumprir os desígnios do ADA, assim denunciando situações de flagrante discriminação. É sobre este absurdo estreitamento que Kay Schriner e Richard e Scotch ironicamente reflectem: «os tribunais têm uma preocupante propensão para concluírem que ninguém tem deficiência» (p. 176). No entanto, como nos mostram os exemplos deste livro, os usos interpretativos da lei, sistematicamente contrários às alegações dos queixosos, de modo nenhum se esgotam na definição estrita de indivíduo com deficiência.

8No texto que encerra a colecção, Linda Krieger formula a distinção entre lei normal, lei transformativa e lei capturada. A lei normal é aquela que traduz as normas existentes, enquanto que a lei transformativa é a que visa demover as normas sociais dominantes. Uma lei capturada, continua a autora, surge quando as práticas e significados preexistentes oferecem resistência bem sucedida a uma lei transformativa. Nesse sentido, reflectindo sobre o ADA, Krieger defende que a história desta lei é exemplar ao mostrar como uma legislação transformativa se pode tornar capturada através da reinscrição dos significados e práticas institucionais dominantes.

9A avaliação presente neste livro pode bem inspirar algum cepticismo, seja para os que pugnam pelo fim da marginalização e do silenciamento das pessoas com deficiência, seja para os que acreditam nas possibilidades emancipatórias da lei. Sem se dedicar a apontar saídas, esta colecção fala-nos mais sobre becos do que sobre outra coisa qualquer. Fala-nos de como os operadores de justiça reflectem preconceitos disseminados, inscrevendo-os nas suas decisões. Fala-nos do perigo de os movimentos sociais confiarem excessivamente na transformação legislativa quando esta não é acompanhada por mudanças nas representações culturais. Fala-nos da insensatez de se cessarem esforços e vigilâncias após a transformação legislativa. Fala-nos do perigo de as leis transformativas serem redigidas com ambiguidades que vulnerabilizem os seus propósitos emancipatórios. Fala-nos, enfim, da reinventada exclusão das pessoas com deficiência. No entanto, este balanço desencantado também pode ser libertador na medida em que promova uma pedagogia dos perigos a contornar. E nisso, concedamos, este livro é riquíssimo.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Bruno Sena Martins, «Krieger, Linda Hamilton (org.), Backlash against the ADA: Reinterpreting Disability Rights »Revista Crítica de Ciências Sociais, 72 | 2005, 216-218.

Referência eletrónica

Bruno Sena Martins, «Krieger, Linda Hamilton (org.), Backlash against the ADA: Reinterpreting Disability Rights »Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 72 | 2005, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 21 março 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/996; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.996

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Autor

Bruno Sena Martins

Licenciado em Antropologia pela Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra e Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Galardoado em 2005 com o prémio CES para Jovens Cientistas Sociais de Língua Oficial Portuguesa.
malangatana@yahoo.com

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