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Invertendo a “Passagem Atlântica”1: O “regresso” de Richard Wright a África

Inverting the Middle Passage: Richard Wright’s Return to Africa
En inversant le “passage atlantique” : le “retour” de Richard Wright en Afrique
Ana Luísa Saraiva
p. 65-74

Resumos

O texto discute o sentido polémico do “regresso” a África que Richard Wright inscreve em Black Power e a forma como a narrativa da viagem subverte a “Middle Passage”. O sujeito narrativo orienta o leitor através de uma incursão pessoal nos muitos sentidos da modernidade e desdobra a noção de “destino comum”, já apontada em 12 Million Black Voices. Contudo, qualquer sentido de comunidade é aqui necessariamente ambíguo, por estar sempre relacionado com questões de raça e identidade. Black Power é uma narrativa importante para o conceito de modernidade e assinala uma mudança significativa na produção literária de Wright para uma vertente não-ficcional. Esta segunda fase da sua obra contém, no entanto, um paradoxo crucial: enquanto se volta para o exterior, para o mundo mais global, Wright tenta, simultaneamente, inscrever-se como referência sobre o locus do qual nunca poderia demarcar‑se: África. Em Black Power, a duboisiana “color line” desdobra‑se em múltiplas dimensões.

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Texto integral

  • 1  “Passagem Atlântica” (Middle Passage) é a expressão que designa a violenta e traumática travessia (...)

1Em 1953, Richard Wright decide viajar para África, mais propriamente para a Costa do Ouro, actual Gana. O país atravessava um momento decisivo de renovação, com a eleição de Kwame Nkrumah e a mudança iminente de estatuto político. Estava‑se a caminho da independência e a altura era historicamente oportuna para uma incursão que procurasse entender as dinâmicas políticas que tentavam inscrever uma modernidade africana dentro do clamor global pela liberdade. Black Power: A Record of Reactions in a Land of Pathos constitui o testemunho dessa viagem de Wright ao Gana e foi alvo de críticas nos E.U.A. por assinalar uma marcada viragem na obra do autor: das temáticas internas a “preto e branco” para a política global. Black Power testemunha claramente a mudança para uma escrita essencialmente não‑ficcional e com forte carga política.

2Após ter travado muitas lutas no seu país pela inclusão dos afro‑americanos na modernidade ou pelo fim da “ilha psicológica” (Wright) encerrada na palavra “negro”, o exílio em Paris permite ao autor desenvolver ligações mais livres com uma comunidade importante e diversificada de intelectuais – o seu campo de acção muda radicalmente e com ele muda igualmente o âmbito da sua obra. Neste novo espaço, a consciência dos dilemas do mundo moderno é confrontada com a memória da escravatura: o racismo e o colonialismo.

3Black Power constrói-se em grande medida à volta do seu narrador, que se coloca voluntária e conscientemente no centro do vórtice identitário despoletado pelo “regresso”. Esta noção de “regresso” às origens ontológicas e raciais é esboçada logo no início da narrativa, numa cena complexa que põe a descoberto os mecanismos intricados do pensamento racial:

África! Sendo descendente de africanos, seria eu capaz de sentir e saber algo sobre África com base numa herança “racial” comum? A África era um vasto continente cheio dos “meus” […] Ou teriam trezentos anos imposto uma distância psicológica entre mim e o “grupo racial” do qual eu tinha saído? [...]
As minhas emoções pareciam tocar numa parede escura e húmida […] Mas, serei eu africano? […] De acordo com noções correntes de “raça”, deveria haver algo de “mim” lá em África. Algum vestígio, alguma herança, alguma realidade ancestral vaga mas decisiva que serviria como chave para abrir os corações e sentimentos dos africanos que eu conheceria […] Mas eu não conseguia sentir nada africano em mim e perguntei‑me “O que significa ser africano?” (Wright, 1954: 3-4)

  • 2  Refiro-me ao movimento da “Harlem Renaissance”, sobretudo na sua confluência com o primitivismo mo (...)

4Os “trezentos anos” e a vontade expressa ao longo da narrativa de não procurar a continuidade da memória (pelo menos em termos raciais) são a resposta. A “memória racial” dos processos destrutivos da Passagem Atlântica e da escravatura deverá ser repensada e colocada em acção futura, isto é, na perspectiva do “poder negro” (“black power”) que Wright desejava materializar. O passado, qualquer passado, fosse edénico, primitivista2 ou historicamente glorioso, terá de ser posto de lado, em nome da urgência de colocar o continente africano no caminho da modernidade, que tem tanto de material como de existencial.

  • 3  Expressão utilizada por Wright em White Man, Listen! (Wright, 1964).

5Wright pretenderia afastar-se de um “fardo do homem negro” como o enunciado por Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas: “Eu era responsável, ao mesmo tempo, pelo meu corpo, pela minha raça, pelos meus antepassados.” (Fanon, 1967: 112) A responsabilidade do viajante é a de ser “diagnosticador” (diagnostician)3 – a sua experiência lúcida de “estar na margem” permite‑lhe quebrar o maniqueísmo da lógica racial ao pôr a nu o carácter ficcional das leituras ocidentais sobre África e os africanos. Mas, participando Wright nessa alteridade, o seu encontro com os africanos passará necessariamente por ele enquanto “mediador” forçado entre os dois mundos: o Ocidente, do qual é membro “parcial”, e a África, como memória racial.

6Black Power inscreve-se perfeitamente na centralidade de uma memória estratégica. DuBois descreve esta em Dusk of Dawn como “uma longa memória”, que une os descendentes dos povos escravizados e insultados (DuBois, 1968). Essa memória sobrevive e renova-se em africanos e afro‑descendentes, mas a verdadeira essência do distintivo racial é a que se encontra num corpo político comum e crescentemente transnacional.

7Em Black Power, a “fatia de África” (Wright) que é analisada convoca para o texto uma série de interrogações sobre os significados da africanidade num mundo moderno. As tentativas para entender a África ou a relação entre africanos e afro-americanos provocam um questionamento constante, mas as limitações e ambiguidade do narrador, equipado com a sua “ocidentalidade”, são notórias.

8Parece evidente que Wright não pretende realmente descrever África ou sequer a “fatia” de África que visitou; pretende, sim, trazer para a narrativa as questões que considera de suma importância e que estão directamente ligadas à inclusão/exclusão identitárias e, sobretudo, ao macrotexto identitário que tinha motivado, desde logo, a sua presença no continente africano.

  • 4  Penso no termo “dislocation” usado por Wright num ensaio não publicado: “Fiquei desconcertado quan (...)

9O que domina a narrativa é a alienação e a múltipla deslocação4, presentes simultaneamente no narrador e nos africanos perante a modernidade euro-americana, sobretudo na elite dos intelectuais que Wright descreve como “homens sem língua” em White Man, Listen!.

10Há um lamento recorrente por a “negritude” não ser factor de aproximação – “Eu era negro e eles eram negros mas a minha negritude não me ajudava” (Wright, 1954: 127) – mas o lamento vai muito para além da solidão do “viajante-antropólogo”. Wright convoca para o texto a “cor” para poder desconstruir a noção de “raça”, mas é na cor como sinal de aliança que, aparentemente, reside a sua esperança de identificação com os africanos. Contudo, a “cor” falha completamente na “sua missão de reconhecimento”. Parece evidente que a verdadeira função da “negritude” na narrativa é a de libertar ontologicamente a noção de “raça”, libertá-la de séculos de associações simplistas e letais.

  • 5  A controversa “militarização temporária” na carta-epílogo a Nkrumah (Wright, 1954: 342‑351) é um b (...)

11Então, o que significa “ser africano”? Poderia dizer‑se que, para Wright, a “africanidade” é um obstáculo no caminho para a modernidade que o autor acha desejável. A “africanidade” seria um “estado onírico”, que roubaria aos africanos a necessária “dureza” para efectuar as mudanças necessárias. Mas a herança única e brutal dos africanos constitui uma possível vantagem num futuro próximo, desde que essa herança signifique consciência e vontade de compromisso com o pathos inevitável do mundo moderno e ocidental. O acesso à modernidade terá de incluir a tarefa complicada de confrontar e compreender um legado que simplesmente não desaparecerá.5

12Não obstante a falta de identificação com os africanos, há um “destino comum” (“common fate”, expressão que Wright tinha já usado em 12 Million Black Voices) que estrutura e intensifica a polissémica modernidade para os que são sistematicamente excluídos. A consciência do “não-espaço” causado pela exclusão é algo de muito importante para Wright e, ao escrever Black Power, ele certifica-se de que essa invisibilidade colectiva surja bem visível.

13Wright pode ser considerado um Outro simbólico cuja “perspectiva deslocada” (“standpoint of dislocation”, nas palavras de Paul Gilroy [1993: 160]) lhe permite identificar a natureza do seu “regresso” na carta-epílogo a Nkrumah:

Senti um estranho “estar em casa”, uma solidariedade que não despontava de laços de sangue ou de raça ou de eu ser descendente de africanos, mas da qualidade da profunda esperança e sofrimento no âmago da vida do vosso povo, dos duros factos da opressão que atravessam tempo, espaço e cultura. (Wright, 1954: 342)

14Esta localização existencial permite um reposicionamento de questões vitais para a modernidade pelo distanciamento de comunidades tradicionalmente constituídas em torno de noções como nação ou raça. Há uma vontade constante de questionar políticas baseadas em “velhas” definições identitárias que procuram distanciar partes do mundo da modernidade.

15A viagem de Wright e a narrativa daí resultante podem ser ambas consideradas respostas à Passagem Atlântica que subjugou milhões de africanos numa incerteza terrível, numa novidade que significava sofrimento ou morte. Wright “regressa” em parte para contar a história da fuga a essa subjugação, e a história também da sua própria fuga. E fá-lo empregando uma “visão estereoscópica” (Rushdie, 1992: 19) que revela não só a sua posição ambivalente constante mas também a sua procura dessa fugidia profundidade do real.

16A “dupla visão” de ser simultaneamente negro e ocidental, que o próprio Wright descreve em White Man, Listen!, aponta para a necessidade de negociar os termos da sua autoridade dentro e fora da narrativa. Em Black Power, a consciência do fosso entre o que é percebido como ocidentalidade legítima e africanidade legítima serve de ponte à irreparável distância. Mas não basta estar consciente ou perceber as dinâmicas do mundo moderno, é preciso comprometer-se numa dialéctica textual profunda que reconhece e combate o ubíquo “pathos da distância”.

17A desvantagem socialmente forjada e reconhecida como tal torna-se, assim, conhecimento profundo e vector de mudança. Wright espera que os intelectuais africanos dos meados do século XX possam pegar na sua não-pertença e torná-la num caminho viável – deseja que eles utilizem a consciência de uma identidade complexa e instável para efectuar mudanças reais para africanos e afro-descendentes também.

18Para Wright, o “estado onírico” e as “personalidades erodidas” dos africanos comprovam a presença colonial destrutiva. A distância é algo dolorosamente palpável, assim como a ansiedade de Wright de que o silenciamento e a subjugação possam ter sido realmente eficazes para manter os africanos afastados da teleologia ocidental do progresso: “O isolamento mesmo dos intelectuais da Costa do Ouro das correntes do pensamento moderno impediu‑os de compreender como as suas dificuldades eram universais.” (Wright, 1954: 135)

19Wright sente que as armas da modernidade são imensamente poderosas nas suas capacidades retóricas e tecnológicas: o autor crê que o livro e a máquina marcaram a viragem decisiva na sociedade ocidental. Não é, por isso, surpreendente que ele descreva qualquer mundivisão mística ou religiosa como “paralisante” ou o visionamento de filmes americanos no Gana como “contra-modernidade” negativa, uma vez que o cinema reforçaria a ilusão de um mundo que não existe e leva até África realidades intraduzíveis: “Psicologicamente distantes, [os espectadores] riam-se de um mundo que não era o deles, tinham uma palavra a dizer sobre um mundo no qual não tinham voz …” (Wright, 1954: 173) O cinema é mais um lugar de impotência e de irrealidade e este é um facto que o narrador não consegue suportar.

20O indivíduo – paradigma e microcosmos da modernidade – é uma noção que Wright gostaria de ver implantada no Gana. Ele vê o indivíduo como a personificação da liberdade para criar alianças verdadeiras e livres e a única maneira de subverter o pensamento colonial. A manifestação última deste indivíduo seria o “sujeito”, neste caso, o sujeito localizado dentro da autoridade da esfera textual.

21As manifestações culturais que Wright testemunha são-nos dadas à distância, mas não é a distância do olhar ocidental perante o exoticamente diferente; é, sim, a distância cuidadosamente elaborada do narrador ocidental que dita o “pathos da distância” (Wright, 1954: 170) e que podemos ler em expressões como “confrontado com a alteridade absoluta e inacessibilidade deste novo mundo” (ibid.: 40), “emocionalmente distante” (ibid.: 263) ou “conseguia percebê-lo mas não conseguia vivenciá-lo” (ibid.: 175).

22As manifestações de dança que frequentemente perturbam o narrador são mais uma ocasião onde se pode comprovar o seu isolamento cultural e existencial. Ao observar, sentado no carro presidencial, pessoas a dançar, Wright parece implicar-se a si próprio e aos afro-americanos na dança, sugerindo assim uma continuidade racial:

Até que ponto fazia eu parte dela [da dança] quando a via na América? Porque é que eu não conseguia sentir isto? Porquê o embaraço peculiar e desconfortável quando tentava dançar ou cantar? […] As multidões surgiam, dançavam, cantavam e gritavam mas eu pensava na minha mãe, no meu pai, no meu irmão… Estava francamente espantado com o que via; não sentia alegria nem tristeza, estava apenas estupefacto. Estaria eu a olhar para mim próprio a rir, a dançar, a cantar, a mexer as ancas para exprimir a minha alegria? Teria eu negado tudo isto em mim? Se assim era, porque é que quando eu tinha tentado cantar em criança não tinha conseguido? Porque tinham as minhas mãos e os meus pés toda a vida falhado em acompanhar o ritmo? Era inútil dizer que eu me tinha inibido, pois a minha incapacidade de fazer estas coisas precedia qualquer desejo, consciente ou inconsciente, da minha parte. Eu tinha querido fazê-lo porque fazia parte do meu ambiente mas nunca tinha conseguido! (Wright, 1954: 57-58)

23O corpo racial do narrador está claramente demarcado do corpo africano. Se existe continuidade, só poderá ser através da memória cultural. Não há nada “natural” na capacidade de entender o ritmo. E ele oferece-nos a sua total incapacidade (e inapetência) como prova da ficção do essencialismo.

24A dança tinha sido, desde o início da escravatura, um método para controlar e impor uma identidade aos africanos escravizados. Fazer dançar os escravos (“Dancing the slave”) no navio durante a Passagem Atlântica marcava uma ruptura tremenda com os significados que a dança tinha para os africanos. Era um instrumento de diversão da tripulação e confirmação de domínio. O movimento imposto aos corpos confinados e esmagados pelas terríveis condições em que viajavam revela a violência da Passagem Atlântica como ritual de passagem. Os escravos dançavam a sua submissão ao passarem para o “Mundo Novo” e dançavam também a representação do que os captores viam como primitivismo. Para muitos dos traficantes de escravos, o corpo constituía a única densidade existencial, podendo ser comprado, vendido e moldado, ou melhor, quebrado por todo um conjunto de acções que se iniciavam no navio e continuariam depois no estados esclavagistas do Sul dos E.U.A.

25Nas deambulações de Wright pelas cidades do Gana, a imagem de corpos imobilizados durante a Passagem Atlântica parece estar presente na vasta “negritude” que ele frequentemente regista: “a vivência negra estava por todo o lado” (Wright, 1954: 34). Esta imobilidade em solo africano não se refere à falta de movimento físico, mas a uma existência aprisionada por séculos de colonização e pelo o que autor vê como o peso das tradições africanas. Wright parece ler a movimentação quotidiana dos africanos como ausência de direcção objectiva, voluntária e em nítida oposição à sua própria trajectória de vida.

26Há também outro tipo de imobilidade: a do narrador quando tenta compreender o que vê, utilizando frequentemente perguntas directas e demasiado incisivas dirigidas a africanos anónimos com quem ele claramente não se identifica. Esta não-identificação ocorre múltiplas vezes e cria uma distância assinalável entre o desejo de unidade entre os despojados e a unidade real, experienciada, com os despojados, os africanos do Gana, neste caso. É neste sentido que Abdul JanMohamed distingue entre identificação “simbólica” e “imaginária” para tentar clarificar este “paradoxo”: a proximidade simbólica com a luta dos africanos é a única possibilidade para Wright. A memória viva do aprisionamento dos africanos, seja no estatuto político do Gana da altura ou na existência do Castelo de Elmina, e as dificuldades colocadas pela “ocidentalidade negra” convergem num peso identitário quase insuportável que Wright procura subverter. O narrador como “sujeito destinado à morte” (death-bound-subject, designação de Abdul R. JanMohamed) sobrevive quando se torna “uma testemunha do processo concebido para o formar como ser socialmente morto: ele sobrevive ao fazer uma viragem crucial no processo mais amplo de inversão metonímica” (JanMohamed, 2005: 35‑36).

27Numa breve conversa que Wright tem com um cozinheiro analfabeto, temos um exemplo claro do significado essencial que ele atribui a esta falta de identificação imaginária:

“Olhe para mim. Pode ver, pela cor da minha pele, que sou descendente de africanos. Bom, depois de todos estes anos, por que acha que voltei à terra dos meus antepassados? Acha que eles me chamaram de volta por alguma razão?”
O cozinheiro ficou novamente pensativo; coçou a cabeça e disse em tom grave:
“É difícil de dizer, senhor. Passou-se tanto tempo.” Olhou para mim e abanou a cabeça com pena. “Receio bem que os seus antepassados não o conheçam agora. Se os seus antepassados o conhecessem, ora, iriam ajudá-lo. E, claro, pode ser que os seus antepassados o conheçam e o senhor não os conheça, como compreende, passou-se já tanto tempo, senhor. Agora, se, por casualidade, acontecesse ir para a secção onde os seus antepassados estão enterrados, eles talvez o conhecessem, mas o senhor não os conheceria. Bom, se os antepassados o reconhecerem enquanto estiver em África, então, algo estranho lhe acontecerá e assim saberá que esteve em contacto com os seus antepassados”. (Wright, 1954: 194‑195)

28Na perspectiva do cozinheiro, também não haverá possibilidade de continuidade do tipo de memória que faria o narrador sentir-se “em casa”. Os antepassados não o reconhecem e Wright, como o cozinheiro (talvez ironicamente) refere, claramente não os reconhece, isto é, não admite a sua existência num tempo presente. O facto do não-reconhecimento mútuo parece óbvio para ambos, mas é a evocação da esfera mística que afasta Wright do cozinheiro e o leva a perguntar ao missionário para quem o cozinheiro trabalha: “ele é típico”?

29Wright assume a posição privilegiada do outsider: utiliza a “perspectiva de deslocação” que tinha pautado a sua vida e obra e o seu domínio da palavra pública para sublinhar os conflitos de uma modernidade investida na negação dos seus próprios fundamentos, nomeadamente, da liberdade. E é nos longos gritos por “liberdade” que ele ouve no Gana que um “regresso a casa” poderá encontrar um eco, e não num regresso a uma casa ancestral com a qual ele não consegue identificar-se. A verdadeira origem é a antiga mas sempre renovada luta dos africanos e afro-descendentes – e é um legado que determina uma constante movimentação para lugares em que a liberdade possa ter uma melhor “amplificação”.

30“África-como-espelho” é outro tropo bastante revelador em Black Power:

A África é um espelho vasto e sujo e o Homem moderno odeia e quer destruir o que vê nesse espelho. Ele acha, quando está a olhar para o espelho, que está a olhar para negros que são inferiores mas, na realidade, está a olhar para si próprio. (Wright, 1954: 158)

31A relação especular condiciona, assim, a análise: a África é, simultaneamente, um espelho escuro que ilumina o potencial destruidor do agente colonial contido no “Homem moderno”. Com esta metáfora especular, Wright distancia o euro-americano e o africano através de uma mediação que revela a sua própria posição ao estar a “segurar” o espelho. O olhar dominador do euro-americano seria, então, apenas um espelho, impeditivo de verdadeiro conhecimento. Se o colonizado entender esta perspectiva, ser-lhe-á mais fácil compreender o que constitui a sua prisão: o olhar do colonizador não é uma moldura vazia, mas o mais inútil dos espelhos, pois a sua superfície é a opacidade do seu próprio olhar.

32Black Power parece estabelecer a noção de modernidade e de “ocidentalidade” como processos em curso, os quais, no caso de Richard Wright, equivalem à fuga ao confinamento racial e social. Diz ele em White Man, Listen!: “Muito antes de eu ter a liberdade de escolher, fui moldado como ocidental. Começou na infância. E o processo continua..” (Wright, 1964: 50).

33O “regresso” tem de ser feito na direcção de lugares futuros de pertença identitária: em Black Power, a consciência problemática dos processos de inclusão e de exclusão aponta para a necessidade de superar velhos maniqueísmos raciais e essa consciência passa sempre pelo próprio narrador enquanto, por exemplo, ocidental, negro, descendente de africanos. A modernidade que Wright ambiciona terá forçosamente de se construir sobre a noção de identidade como processo, como escolha mas também como herança. E é essa identidade dinâmica que possibilitará pensar em novas formulações que subvertam a ficcionalidade e o imobilismo da herança racial.

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Bibliografia

Baker, Jr. Houston A. (1989), Modernism and the Harlem Renaissance. Chicago: The University of Chicago Press.

Du Bois, W. E. B. (1968), Dusk of Dawn; An Essay toward an Autobiography of a Race Concept. New York: Schocken Books.

Fanon, Frantz (1967), Black Skin, White Masks. New York: Groove Press.

Gilroy, Paul (1993), The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. London: Verso.

JanMohamed, Abdul R. (2005), The Death-Bound-Subject: Richard Wright’s Archaeology of Death. Durham: Duke University Press.

Rushdie, Salman (1992), Imaginary Homelands. London: Granta Books.

Wright, Richard (1954), Black Power: A Record of Reactions in a Land of Pathos. New York: Harper & Brothers.

Wright, Richard (1964), White Man, Listen!. Garden City: Anchor Books.

Wright, Richard (1995), 12 Million Black Voices. New York: Thunder’s Mouth Press.

Wright, Richard (s.d.), “I Choose Exile”, Richard Wright Papers. Yale Collection of American Literature, Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Series I, Box 6, Folder 110.

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Notas

1  “Passagem Atlântica” (Middle Passage) é a expressão que designa a violenta e traumática travessia atlântica dos escravos entre o continente africano e as Américas.

2  Refiro-me ao movimento da “Harlem Renaissance”, sobretudo na sua confluência com o primitivismo modernista. “Harlem Renaissance” é a designação dada ao amplo e diversificado movimento artístico iniciado na comunidade afro-americana de Nova Iorque, sobretudo no Harlem, nos anos 20 e 30 do século XX. O movimento, também conhecido por “The New Negro”, integrou um corpus artístico cuja característica mais saliente seria porventura o reclamar de uma modernidade especificamente afro-americana. Ver a este respeito Baker, Jr., 1989.

3  Expressão utilizada por Wright em White Man, Listen! (Wright, 1964).

4  Penso no termo “dislocation” usado por Wright num ensaio não publicado: “Fiquei desconcertado quando percebi a vasta deslocação de valores humanos que a mera presença do negro na América tinha originado” (Wright, s.d.).

5  A controversa “militarização temporária” na carta-epílogo a Nkrumah (Wright, 1954: 342‑351) é um bom exemplo do desejo de uma mudança radical por parte de Wright.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Ana Luísa Saraiva, «Invertendo a “Passagem Atlântica”: O “regresso” de Richard Wright a África»Revista Crítica de Ciências Sociais, 74 | 2006, 65-74.

Referência eletrónica

Ana Luísa Saraiva, «Invertendo a “Passagem Atlântica”: O “regresso” de Richard Wright a África»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 74 | 2006, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 18 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/930; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.930

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Autor

Ana Luísa Saraiva

Professora de Inglês do ensino básico e secundário. Mestre em Estudos Americanos na especialização de Estudos Afro-Americanos, com uma tese intitulada Outside, Looking In: A dinâmica da alteridade em Richard Wright (FLUC, 2002).
analuisaraiva@yahoo.com

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