- 1 Merck, Segal e Wright descrevem este processo histórico da seguinte forma: “Nos anos 1990, o ‘quee (...)
1Uma das tarefas porventura mais ingratas para quem se dedica aos estudos queer consiste em formular uma definição exacta do seu campo de trabalho. Esta é, não obstante, das exigências mais recorrentes no meio académico, forçando, ironicamente, a teoria queer a regressar ao quadro normativo das categorizações a que tão afincadamente procura escapar. Uma das formas de elidir o carácter redutor de qualquer definição deste campo é procurar antes de tudo as suas raízes, encetando assim uma arqueologia conceptual que remonta incontornavelmente à teoria feminista e aos estudos gays e lésbicos.1
- 2 Para uma análise detalhada da emergência dos estudos feministas, veja-se, entre outros, Donovan, 2 (...)
2Não cabe nos propósitos desta introdução proceder a um levantamento exaustivo da história dos estudos feministas nem dos estudos gays e lésbicos, até porque tal desígnio se encontra amplamente coberto pela literatura existente.2 Importa aqui sobretudo revisitar as pontes que unem ambos os campos de saber – estudos feministas e estudos gays e lésbicos – como forma de contextualização da emergência desse terceiro campo que se entendeu designar por estudos queer.
3A aproximação entre estudos feministas e estudos gays e lésbicos decorre de vários factores. Em primeiro lugar, a proximidade temática: ambos os campos se caracterizam pela oposição a regimes de poder baseados em categorias estritas de género e sexualidade. Como referem Abelove et al.,
- 3 Note-se que este posicionamento não é consensual. Por exemplo, Rubin rejeita tal paralelismo, defe (...)
o que os estudos gays e lésbicos fazem ao sexo e à sexualidade é muito semelhante ao que os estudos feministas fazem ao género. […] Por esta razão, o grau de sobreposição ou distinção entre os campos dos estudos gays e lésbicos e dos estudos feministas é matéria para um debate aceso e uma negociação constante. (1993: xv-xvi)3
- 4 Os primeiros estudos conhecidos na área da sociologia das homossexualidades foram conduzidos por M (...)
4Em segundo lugar, a partilha de tempos históricos: a segunda vaga do feminismo – situada entre as décadas de 1960 e 1990 – coincide com a emergência dos estudos gays e lésbicos que, por sua vez, se afirmaram contra o essencialismo e fervor causal presente nas primeiras incursões da chamada sociologia da homossexualidade nos anos 1950 e 1960.4
5Por fim, a sobreposição de autores: nomes como Adrienne Rich, Gayle Rubin ou Judith Butler, entre outros, constituem expoentes do designado feminismo lésbico, cujas propostas teóricas são frequentemente apropriadas por ambos os campos de saber (Merck et al., 1998).
6Um dos expoentes máximos da proximidade entre estudos feministas e estudos gays e lésbicos encontra-se nos trabalhos de Judith Butler (1990, 1993, 2004), ao propor que no género e na sexualidade não existe nada de autêntico ou natural, sendo as identidades constituídas, decompostas e reelaboradas através da repetição de performatividades socialmente construídas e temporalmente contingentes:
Por outras palavras, actos e gestos, desejos falados e praticados, criam a ilusão de um núcleo duro de género, interior e organizador, uma ilusão perpetuada discursivamente com o propósito da regulação da sexualidade dentro do quadro obrigatório da heterossexualidade reprodutiva. […] Tal como noutros rituais, a acção do género requer uma performance que é repetida. […] Existem dimensões temporais e colectivas nestas acções, e o seu carácter público não é irrelevante; com efeito, a performance é efectivada com o objectivo estratégico de manter o género dentro da sua moldura binária. […] Esta formulação afasta a concepção de género de um modelo de identidade substancial, levando-a para um outro que exige uma concepção de género enquanto temporalidade social construída. (1990: 136, 140-141)
7Da confluência de campos de saber centrados no género e na sexualidade, infirmada por especificidades históricas e ideológicas próprias a cada disciplina, viriam a nascer os estudos queer na década de 1990. Seguidamente, propõe-se uma leitura dessa história, partindo dos estudos gays e lésbicos.
- 5 Exemplos de estudiosos das sexualidades de uma perspectiva construtivista incluem nomes como Ken P (...)
8Tratando-se de um campo amplamente diverso, não é possível apontar um ponto de partida único para os estudos queer, sob pena de omitir contributos tão importantes quanto os mencionados. Ciente desse risco, destaca-se ainda assim a elaboração dos trabalhos fundadores dos estudos gays e lésbicos, nomeadamente aqueles desenvolvidos por W. Simon and J. H. Gagnon (1967), Mary McIntosh (1968) e Michel Foucault (1978, 1985, 1986). Com efeito, os autores citados encontram-se entre aqueles que mais contribuíram para a investigação sociológica das questões de orientação sexual, afastando-se de noções essencialistas predominantes na época (Mendès-Leite, 2003: 148) e sublinhando a importância do construtivismo enquanto modus operandi na investigação sobre sexualidades.5
9Não obstante tais marcos significativos, a tensão entre essencialismo biológico e construtivismo social não é linear, como comprova a proposta em torno do “gene gay”, apresentada pelo neurobiólogo Simon LeVay já em 1991. Por muito apaixonante que tal debate possa parecer quando se analisa a história dos estudos gays e lésbicos e dos estudos queer, porventura a única resposta que nos permite escapar à armadilha circular foi avançada por Gayle Rubin quando afirmou que “a sexualidade humana não é compreensível em termos puramente biológicos [no sentido em que] nunca encontramos um corpo que não seja mediado pelos significados que as culturas lhe atribuem” (Rubin, 1998: 106).
10E é no seio de debates entre essencialismo biológico e construtivismo social que emergiram, nos anos 1970, os então designados estudos gays e lésbicos enquanto campo marcadamente heterogéneo. Esta heterogeneidade resulta, de resto, das diferentes (e por vezes antagónicas) perspectivas teóricas utilizadas, bem como das diferentes áreas do conhecimento que contribuem para este campo em particular: antropologia (Hekma, 2000), ciência política (Adam, Duyvendak e Krouwel, 1999; Krouwel e Duyvendak, 2000), direito (Moran, 2000; Stychin e Herman, 2000), estudos feministas (Weed e Schor, 1997), estudos literários (Borghi, 2000; Pustianaz, 2000; Quinlan e Arenas, 2002; Quinn, 1997), geografia (Bell e Valentine, 1995; Binnie e Valentine, 2000; Taylor, 1997; Valentine, 1999), história (Schuyf, 2000), psicologia (Lane, 1997, Standfort et al., 2000) ou sociologia (Seidman, 1996; Stein e Plummer, 1996; Epstein, 1996) – todas estas constituem áreas de formação base dos diferentes teóricos em estudos gays e lésbicos. Tal diversidade constitui uma marca distintiva deste campo, dotando-o de elasticidade e capacidade de adaptação a novas necessidades. Como assinalam Medhurst e Munt:
Este carácter convenientemente imprevisível, rapidamente transformado em novos e reconhecidos campos académicos, consiste no engenhoso brilho, e no risco, dos estudos gays e lésbicos. Enquanto falsa disciplina, simultaneamente ambiciona e repudia o reconhecimento, investe na aprovação académica, ainda que tal corrompa os mesmos critérios de pertença. Os estudos gays e lésbicos são uma química instável: essa é a sua força e a sua vulnerabilidade. (1997: xiv)
11Tendo essa especificidade em mente, os estudos gays e lésbicos podem definir-se como “visando estabelecer a centralidade analítica do sexo e da sexualidade dentro de diversas áreas do conhecimento, expressar e promover os interesses de lésbicas, bissexuais e gays, bem como contribuir cultural e intelectualmente para o movimento gay e lésbico” (Abelove et al., 1993: xvi).
12A utilização contemporânea do conceito queer conduziu a uma categoria‑chapéu, frequentemente utilizada como atalho conceptual para designar pessoas e temas lésbicos, gays, bissexuais e transgéneros (LGBT). Contudo, se a história dos estudos gays e lésbicos é indispensável para a emergência dos estudos queer, esse passo dá-se mais por resistência do que por continuidade. Com efeito, e contrariamente ao que por vezes é veiculado, os estudos queer não são sinónimo de estudos gays e lésbicos (Giffney, 2004: 73), embora seja possível analisar a temática LGBT da perspectiva dos estudos queer. É essa, de resto, a proposta do presente número temático.
13Já nos anos 1990, surgiu a designada teoria queer, fortemente influenciada por J. Derrida, L. Althusser e J. Lacan e constituindo uma resposta ao alegado défice de desconstrutivismo que emanava dos pioneiros estudos gays e lésbicos. A expressão ‘teoria queer’ é atribuída a Teresa de Lauretis, no seu artigo “Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities” publicado em 1991 na revista differences. Contudo, três anos depois a autora renunciou ao conceito, por considerá-lo desprovido de significado. Num artigo intitulado “Habit Changes”, publicado em 1994, Lauretis explicitou a sua perspectiva:
Quanto à “teoria queer”, a minha insistente especificação lésbica pode ser encarada como um distanciamento daquilo que, desde que a sugeri enquanto hipótese de trabalho para os estudos gays e lésbicos nesta mesma revista (differences, 3.2), cedo se transformou numa criatura conceptualmente vazia da indústria editorial. (1994: 297)
- 6 A expressão “dissidência sexual” foi cunhada por Gayle Rubin em 1984 no seu artigo seminal “Thinki (...)
14No entanto, queer foi desde sempre um projecto político, mais que uma corrente científica. Resultante de uma crescente insatisfação quanto à literatura existente sobre “sexualidades dissidentes”6, acusada de se centrar de forma circular e opressora em categorias identitárias rígidas, a teoria queer propunha‑se a construir o espaço de desestabilização, subversão e emancipação para os fenómenos relacionados com sexualidade e género, não mais entendidos de forma linear e regular, mas antes instáveis, fluidos, tão reais quanto imaginados, e sempre politizados. Queer é, de facto, “uma zona de potencialidades” (Edelman, 1994: 114) e um instrumento de denúncia dos regimes de poder que cristalizam modelos heteronormativos de sexualidade (Butler, 1990, 1993; Sedgwick, 1991). Giffney formula-o da seguinte forma: “A tarefa da teoria queer consiste em tornar visível, criticar e distinguir o normal (estatisticamente determinado) do normativo (moralmente determinado)” (Giffney, 2004: 75).
15Não é por acaso que não se encontram definições acordadas do termo queer:
Parte da sua eficácia política depende da sua resistência à definição, e da forma como rejeita formular os seus objectivos, uma vez que “quanto mais se aproxima de tornar-se uma disciplina académica, menos queer pode a teoria queer ambicionar a ser”. (Jagose, 1996: 1)
16No entanto, para efeitos de compreensão geral do que está em causa quando falamos de estudos queer, atentemos na definição oferecida por Jagose em 1996:
Em sentido genérico, queer descreve as atitudes ou modelos analíticos que ilustram as incoerências das relações alegadamente estáveis entre sexo biológico, género e desejo sexual. Resistindo a este modelo de estabilidade – que reivindica a sua origem na heterossexualidade, quando é na realidade o resultado desta – o queer centra-se nas descoincidências entre sexo, género e desejo. […] Quer seja uma performance travesti ou uma desconstrução teórica, o queer localiza e explora as incoerências destas três concepções que estabilizam a heterossexualidade. Demonstrando a impossibilidade de qualquer sexualidade “natural”, coloca em questão até mesmo categorias aparentemente não problemáticas como as de “homem” e “mulher”. (Jagose, 1996: 3)
- 7 Esta proposta de síntese da teoria queer decorre da reflexão publicada em Santos, 2005.
17Num exercício de síntese, pode dizer-se que a teoria queer parte de cinco ideias centrais.7 Em primeiro lugar, as identidades são sempre múltiplas, compostas por um número infinito de “componentes de identidade” – classe, orientação sexual, género, idade, nacionalidade, etnia, etc. – que podem articular‑se de inúmeras formas. Em segundo lugar, qualquer identidade construída – como, de resto, todas são – é arbitrária, instável e excludente, uma vez que implica o silenciamento de outras experiências de vida. Na verdade, a afirmação de uma identidade, em vez de constituir um processo de libertação, obedece a imperativos estruturais de disciplina e regulação que visam confinar comportamentos individuais, marginalizando outras formas de apresentar o “eu”, o corpo, as acções e as relações entre as pessoas. Seidman formula este pressuposto quando afirma que as identidades são, em parte, “formas de controlo social, uma vez que distinguem populações normais e desviantes, reprimem a diferença e impõem avaliações normalizantes relativamente aos desejos” (Seidman, 1996: 20). Em terceiro lugar, ao invés de defender o abandono total da identidade enquanto categoria política, a teoria queer propõe que reconheçamos o seu significado permanentemente aberto, fluído e passível de contestação, abordagem que visa encorajar o surgimento de diferenças e a construção de uma cultura onde a diversidade é acolhida. Portanto, o papel individual – como forma de capacitação – e colectivo – em termos políticos, jurídicos e de reconhecimento social – que a identidade pode desempenhar não é rejeitado. Em quarto lugar, a teoria queer postula que a teoria ou política de homossexualidade centrada no “homossexual” reforça a dicotomia hetero/homo, fortalecendo o actual regime sexual que estrutura e condiciona as relações sociais ocidentais. Neste sentido, a teoria queer visa desafiar tal regime sexual enquanto sistema de conhecimentos que coloca as categorias heterossexual e homossexual como pedras angulares das identidades sexuais. De facto, a teoria queer considera a hetero e a homossexualidade como “categorias de conhecimento, uma linguagem que estrutura aquilo que conhecemos sobre corpos, desejos, sexualidades e identidades” (Seidman, 1996: 12-13). Por fim, a teoria queer apresenta-se enquanto proposta de teorização geral sobre a “sexualização de corpos, desejos, acções, identidades, relações sociais, conhecimentos, cultura e instituições sociais” (Seidman, 1996: 13), cruzando muitos campos de saber.
18Mais recentemente, surgiu uma nova proposta que visa expandir o conceito de modo a incluir os chamados heteroqueers (O’Rourke, 2005; Santos, 2005). Tal conceito revela o potencial hermenêutico da teoria queer, integrando novos desafios contemporâneos – mais do que presa à especificidade dos conceitos (nomeadamente o de orientação sexual), a teoria queer consiste numa ética contra binários, rótulos, determinismos e, sobretudo, heteronormatividades. Como sublinha Altman,
um número significativo de pessoas […] começou a ligar o debate sobre a homossexualidade com outros temas contemporâneos: representação, autenticidade, posicionamento, o corpo, etc. Este movimento teve a vantagem de retirar do gueto os estudos gays e lésbicos, de modo a que os temas e questões homossexuais começassem a ser discutidos em contextos mais amplos. (Altman, 1996: 5)
19Giffney associa tal diversidade temática ao próprio futuro dos estudos queer:
Os imaginários futuros da teoria queer residem […] no uso que dela fizerem os teóricos no questionar de todos os actos, identidades, desejos, percepções e possibilidades, normativos e não-normativos, incluindo aqueles que nem estão (directamente) relacionados com género e sexualidade. (Giffney, 2004: 74)
- 8 Na verdade o termo ‘homossexual’ foi cunhado pelo médico suíço Karoly Benkert em 1869, sendo poste (...)
- 9 Esta sigla continua a não ser pacífica, traduzindo algumas tensões dentro do próprio activismo LGB (...)
20Portanto, o campo é amplo, complexo e em processos permanentes de construção e negociação. Um bom exemplo será o uso alternado da designação ‘homossexual’ e a aparentemente inconsistente sigla que designa pessoas ou temas lésbicos, gays, bissexuais e transgéneros. Com efeito, se em Portugal as gerações do pós-25 de Abril sublinham o uso da expressão “homossexual”, tal termo tem vindo ser gradualmente substituído pela sigla internacional GLBT, num primeiro momento, e, mais recentemente, pela sigla igualmente internacional LGBT. A justificação para tal uso alternado explica--se em poucas linhas: enquanto o termo “homossexual” está fortemente ligado à medicina e à consequente patologização de comportamentos sexuais,8 GLBT parece escapar a essa herança simbólica. Contudo, para as gerações mais próximas da teoria queer – nomeadamente as que abraçam o feminismo como parte integrante das suas reivindicações por justiça sexual –, GLBT levanta problemas por colocar o “G” antes do “L”, empurrando simbolicamente as mulheres lésbicas para um segundo lugar. E assim surgiu a sigla hoje maioritariamente utilizada LGBT que, longe de terminada e totalmente satisfatória, se oferece a críticas e transformações conceptuais a curto prazo.9
21Os estudos queer, herdeiros de múltiplos desafios teóricos e políticos, começaram recentemente a dar os primeiros passos em Portugal. Prova disso é a publicação Indisciplinar a teoria. Estudos gays, lésbicos e queer (Fernando Cascais, org., Fenda, 2004) e a realização do 1.º Congresso de Estudos Gays, Lésbicos e Queer em Setembro de 2005, por iniciativa da Associação Janela Indiscreta. Trata-se de um campo de saber em larga medida por explorar, contendo inúmeras possibilidades de articulação com outras formas de conhecimento e activismo. Não obstante o seu potencial de entrecruzamento, este é, contudo, um campo autónomo, com estudos e autores/as próprios/as, cuja consagração noutros países permanece ainda ausente dos curricula universitários em Portugal. Urge, assim, proporcionar ao/à leitor/a a possibilidade de expandir o seu interesse sobre esta matéria, abrindo perspectivas e lançando desafios para futuros estudos, dissertações e/ou investigações quer na sua vertente metateórica, quer na sua componente de estudo de caso.
22Este número temático, reunindo um conjunto de investigadores/as de diferentes áreas das ciências sociais, pretende ser um contributo interdisciplinar nesse sentido. Dada a diversidade de ensaios e o seu carácter pioneiro entre os periódicos científicos nacionais, importa proceder a algumas precisões. A produção de uma ciência não heteronormativa pressupõe repensar os modelos que presidem à construção e disseminação de conteúdos científicos. De facto, a normatividade traduzida em modelos rígidos também se reflecte em formas cristalizadas de linguagem e estrutura dos próprios textos que frequentemente passam no crivo dos conselhos editoriais. Neste número temático foram intencionalmente acolhidos e incentivados modelos e conteúdos diversificados.
23Em primeiro lugar, facilita-se aqui o encontro de muitos quadros teóricos provenientes da Antropologia (M. V. Almeida), Comunicação (F. Cascais), Estudos de Género (A. C. Santos), Estudos Literários (M. O’Rourke), Filosofia (F. Cascais), Psicologia (N. Carneiro, I. Menezes e G. Moita) e Sociologia (A. C. Santos, S. Roseneil e T. Fernandes).
24Em segundo lugar, acarinham-se estilos de escrita distintos, desde um registo mais confessional a outro marcadamente empírico, passando por textos com maior densidade teórico-filosófica, sendo a auto-reflexividade possivelmente o único denominador comum a todos os ensaios.
25Em terceiro lugar, salienta-se a diversidade temática interna. Relações, contextos profissionais, sociabilidades, modelos familiares, posicionamentos identitários – de todas estas esferas se compõem sujeitos situados também em função da orientação sexual e/ou identidade de género.
26Finalmente, não obstante a diversidade possível, assinala-se a grande ausência de estudos sobre identidades bissexuais e transgéneros em Portugal, reflectida também neste volume. Esses constituem espaços que urge colmatar com investigação adequada às especificidades em causa, à semelhança do que tem sido feito noutros lugares. Na verdade, trata-se de um campo fascinante e com profundo potencial quer académico, quer activista, tal como atestam, por exemplo, autores/as como Del LaGrace Volcano, Judith Halberstam e Stephen Whittle, no campo transgénero, e Bonnie Zimmerman, Clare Hemmings, Naomi Tucker e Robyn Ochs, no campo da bissexualidade. Sublinha-se esta ausência em jeito de desafio a futuras investigações igualmente queer, mas (ainda) mais invisíveis entre nós.
27O presente volume construiu-se a partir de sete artigos inéditos, complementados por três recensões críticas. Começamos por fazer incidir o foco de análise sobre relações familiares e interpessoais, com os artigos de Miguel Vale de Almeida e Sasha Roseneil. Sob o título “O casamento entre pessoas do mesmo sexo. Sobre ‘gentes remotas e estranhas’ numa ‘sociedade decente’”, Vale de Almeida reporta-se ao seu trabalho de campo desenvolvido em Barcelona para reflectir sobre o debate público em torno do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, discutindo implicações, possibilidades e resistências nos campos da moralidade (heteronormatividade), academia (antropologia), família (homoconjugalidade e homoparentalidade) e variação geográfica (Espanha e Estados Unidos). O autor termina resgatando excertos de pessoas em situação de conjugalidade para ilustrar os argumentos apresentados ao longo do texto. S. Roseneil, no seu artigo “A vida e o amor para lá da heteronorma: Uma análise queer das relações pessoais no século XXI”, propõe uma reutilização da teoria queer aplicada desta feita às relações pessoais, ao mesmo tempo que procede a uma crítica da sociologia contemporânea pela forma como contribui para a legitimação de um modelo familiar monopolista assente nos adjectivos ‘nuclear’ e ‘heterossexual’. A autora centra a sua análise nos inúmeros modelos familiares cuja existência coloca permanentes desafios ao pensamento binário sobre hetero e homossexualidade.
28Os contributos de Nuno Santos Carneiro, Isabel Menezes e Gabriela Moita situam-se a partir do olhar da psicologia. O artigo de Gabriela Moita, “A patologização da diversidade sexual: homofobia no discurso de clínicos”, ilustra o heterossexismo em contexto clínico, nomeadamente entre profissionais de saúde mental, onde estão também presentes representações sexistas sobre o ser humano. O texto, resultante do trabalho de campo efectuado no âmbito de uma tese de doutoramento, é revelador das dificuldades que se colocam a gays e lésbicas quando se encontram em processo de acompanhamento terapêutico. Com “ ‘Do anel à aliança’: Sentido dos iguais e emancipação pessoal na psicologia das sexualidades”, Nuno Santos Carneiro e Isabel Menezes analisam a construção da identidade sexual em contexto partilhado de opressão, para conferir novos sentidos críticos aos conceitos de igualdade e diferença assim enquadrados por um devir psicossocial queer. Os autores terminam com a proposta de uma análise psicossocial crítica das identidades sexuais, como forma de conciliação entre a teoria queer e a abordagem psicológica das sexualidades.
29Seguem-se dois artigos que cruzam teoria queer e activismo no Portugal contemporâneo. Trata-se dos contributos de Ana Cristina Santos e António Fernando Cascais. Ana Cristina Santos, em “Entre a academia e o activismo: sociologia, estudos queer e cidadania sexual em Portugal”, avalia o potencial de uma sociologia pública aplicada ao estudo de temáticas LGBT como forma de aproximar academia e activismo e promover uma ciência mais útil e um activismo mais democrático. Na recta final, sugere-se a importância de uma investigação-acção queer, passo que beneficiará tanto a academia quanto o activismo LGBT português. No artigo “Diferentes como só nós: O associativismo GLBT português em três andamentos”, António Fernando Cascais recupera a história do movimento LGBT português desde 1974, procedendo à sua periodização em três tempos/andamentos que analisa em paralelo com o desenvolvimento sócio-político da época. Este ensaio termina com uma análise crítica do momento actual do associativismo LGBT português.
30O último ensaio deste número remete-nos para os caminhos futuros da teoria queer, através da proposta de Michael O’Rourke. Em “Que há de tão queer na teoria queer por-vir?”, O’Rourke sugere uma continuidade possível para os estudos e teoria queer através de uma releitura dos últimos trabalhos produzidos por Derrida, oferecendo à teoria queer a oportunidade de repensar e participar no debate público sobre democracia e justiça. Tal proposta pretende apontar para um caminho alternativo à situação de beco sem saída que alguns autores apontam para a teoria queer na contemporaneidade, identificando-lhe, assim, uma forma útil e pertinente de se auto-reinventar.
31Finalmente, a encerrar o volume encontram-se três recensões críticas a obras recentes de Jon Binnie, Judith Butler e Guacira Lopes Louro, elaboradas por Ana Cristina Santos, Anabela Rocha e Telmo Fernandes, respectivamente.
32O presente número temático sobre “Estudos Queer: Identidades, contextos e acção colectiva” visa, assim, constituir-se como uma semente de mudança no cenário de uma academia desejavelmente mais participativa, inclusiva e, por que não, queer. Afinal, já dizia Audre Lorde, “não são as nossas diferenças que nos dividem, mas a nossa incapacidade para reconhecer, aceitar e celebrar essas mesmas diferenças”.