Lopes, Ana (2006), Trabalhadores do sexo uni-vos! Organização laboral na indústria do sexo.
Lopes, Ana (2006), Trabalhadores do sexo uni-vos! Organização laboral na indústria do sexo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 270 pp.
Texto integral
1“Pode crer que a maioria dos profissionais do sexo não quer piedade mas sim direitos”. Proferida na introdução da obra (p. 22), esta frase sintetiza bem o propósito de Trabalhadores do sexo uni-vos! Organização laboral na indústria do sexo. Com efeito, estamos diante de um livro ousado e raro que narra “por dentro” o processo de constituição de um Sindicato Internacional dos Profissionais do Sexo (International Union of Sex Workers) e no qual a autora faz uso da dupla condição de investigadora e de activista. De investigadora, que observa, ou não fosse este um trabalho resultante de uma investigação académica (doutoramento em antropologia). Mas também de activista, que age, tanto mais que realizou observação participante na indústria do sexo no Reino Unido. A tese principal do livro é, pois, a de que os profissionais do sexo “querem controlar os seus corpos, o seu negócio e os seus ganhos e não estar sujeitos à exploração, ao abuso, à violência e atitudes discriminatórias, estigmatizantes e paternalistas” (p. 224). Numa palavra, anseiam pelo reconhecimento do trabalho sexual como trabalho legítimo.
2Estamos, sem dúvida, diante de um estudo inovador, apelativo (bem evidente nos títulos escolhidos para os vários capítulos), bem escrito (mesmo que, pontualmente, com pequenas gralhas resultantes da tradução da versão original inglesa ou omitindo nas referências bibliográficas finais autores citados no corpo do texto), de leitura fácil (por vezes quase sob a forma de um romance, ainda que de contornos realistas) e repleto de testemunhos de trabalhadores e trabalhadoras da indústria do sexo. As dimensões dos capítulos são equilibradas e cada um deles constitui uma peça de um puzzle que a autora vai progressivamente completando. Não havendo nenhum enigma para desvendar (pois, como se disse, o livro é claro quanto ao objecto que analisa e ao propósito que traça), o leitor vai, no entanto, sendo confrontado com palavras/temas-chave em cada capítulo: práticas e actores da indústria do sexo, nascimento do movimento/sindicalização, consolidação e adversidades, legislação sobre trabalho sexual, debates e controvérsias (feminismo versus prostituição), relação novo/velho nos movimentos sociais, e metodologia (investigação-acção) são, por esta ordem, algumas dessas palavras-chave.
3O primeiro capítulo cumpre bem a função de familiarizar o leitor com as “realidades múltiplas” da indústria do sexo enquanto indústria global. Aí são enunciadas algumas das práticas (e espaços) dessa indústria que pressupõem a troca de serviços sexuais por dinheiro ou bens materiais – as casas de prostituição, a prostituição de rua, os clubes de striptease, as publicações e filmes pornográficos, as sex shops ou as companhias de linhas telefónicas eróticas (pp. 29-34) – e clarificados conceitos como os de “pornografia”, “profissional do sexo”, “trabalho sexual”, “clientes”, entre outros. Neste registo informativo sobre a indústria do sexo não se quantifica (apenas se estima), porém, a sua dimensão e visibilidade em função do país, o que é justificado pelo facto de estarmos perante actividades em muitos casos clandestinas (pp. 29; 37). O perfil dos actores da indústria do sexo – que inclui clientes provenientes de todos os estratos socioeconómicos e profissões (soldados, camionistas, homens de negócios, marinheiros, polícias), “terceiras pessoas” (donos e gerentes de negócios, empregados de bares, empregados de limpeza, condutores de táxis, recepcionistas, seguranças, comerciantes locais, etc.) ou a polícia (que assume não só o papel de protectora face a situações de violência ou criminalidade, mas pode igualmente ser “fonte significativa de abusos e perseguição”, p. 41, e, como se disse, figura ainda no grupo dos clientes) – encerra este capítulo. Mas nele sobressai uma mensagem: ainda que a indústria do sexo esteja associada a problemas como a exploração, a violência, o uso de drogas ou o tráfico de pessoas, “não há nada inerentemente explorador na comercialização de serviços sexuais; pelo menos não mais do que na comercialização de outro serviço qualquer” (p. 28), pois a incidência dos problemas decorre do défice de enquadramento legal e da marginalização desta indústria.
4Não obstante o background fornecido no capítulo inicial, o segundo e terceiro capítulos são nucleares no livro. No segundo capítulo narram-se, de forma detalhada, os passos no sentido da sindicalização dos profissionais do sexo. Mas, para Ana Lopes, a afirmação destes profissionais deve ser feita por distanciamento frente a outros profissionais como os do Colectivo Inglês de Prostitutas (que representa trabalhadoras do sexo na prostituição), pois esta organização, como já ficara dito no primeiro capítulo do livro (pp. 49-50), tende a partilhar uma visão da prostituição como recurso (que deixaria de ser necessário se não existisse pobreza no mundo). Ora, como também já antes fora sugerido, não é neste registo que se situam os profissionais do sexo de que fala Ana Lopes, uma vez que estes profissionais preferem encarar a sua actividade como profissão, como vocação, da qual se orgulham e não querem abolir como é demonstrado em vários passos do livro (pp. 34; 42-43; 52; 58; 66; 67-73). No entanto, a liberdade de escolha inerente à vocação do profissional do sexo acaba por entrar em tensão (ou mesmo contradição) com a necessidade de preservação do anonimato sentida por muitos profissionais. Mesmo que o Sindicato Internacional dos Profissionais do Sexo procure reafirmar o orgulho e evitar o uso de máscaras, na prática muitos profissionais escondem-no (mantendo segredo em relação à família e amigos) ou revelam-no de forma temerária, recorrendo a pseudónimos ou nomes artísticos, ou trabalhando em espaços privados como forma de esconder a sua identidade (pp. 68; 93-94; 122; 48-49). Mas o principal facto relatado neste capítulo é a própria constituição do Sindicato Internacional dos Profissionais do Sexo, que nasce com o propósito de exigir a descriminalização do trabalho sexual, o direito a criar ou fazer parte de associações profissionais ou sindicais, o direito a trabalhar nos mesmos termos que outros trabalhadores por conta própria ou assalariados e a ter as mesmas regalias destes, a isenção de impostos até que sejam garantidos direitos e representação laboral, etc., etc. (pp. 60-61; 73-76). O reconhecimento do sindicato, traduzido na sua filiação no Sindicato dos Trabalhadores Gerais e Caldeireiros Municipais, significou a “passagem do Rubicão” e para tal Ana Lopes considera ter tido, enquanto líder do processo, um papel central (pp. 90; 96; 52).
5Por outro lado, em “os trabalhos de Hércules – o sindicalismo na indústria do sexo” (título do capítulo 3) são discutidas as condições para a consolidação do sindicato no seio do Sindicato dos Trabalhadores Gerais e Caldeireiros Municipais e são assinaladas duas vantagens principais da ligação do Sindicato Internacional dos Profissionais do Sexo a esse sindicato, a saber: o direito de qualquer trabalhador do sexo a ser representado por um sindicato oficial; e a aceitação do trabalho sexual como actividade legítima (p. 108). Mas, neste capítulo, dois outros pontos merecem ser destacados: um primeiro (fazendo jus ao título do capítulo) prende-se com o reconhecimento de que a luta dos trabalhadores do sexo tem como desafio a superação de persistentes obstáculos à mobilização que se relacionam com: o recrutamento, os recursos disponíveis, a visibilidade e publicidade, a representatividade, os conflitos internos ou o isolamento e os contactos (pp. 122-140); e um segundo, mas porventura mais central ainda, relativo ao esclarecimento do leitor sobre a posição político-ideológica da autora, a qual é sugestivamente testemunhada pelas seguintes palavras: “a um nível ideológico, nada distingue o ‘chulo’ da indústria do sexo de todos os outros ‘chulos’ do capitalismo. Como anticapitalista que sou, defendo que cada pessoa deve ter o controlo sobre a sua própria vida, o seu próprio trabalho e o seu próprio corpo. Na minha sociedade ideal e utópica, ninguém trabalharia por necessidade – cada um exploraria os seus desejos e vocações por prazer” (p. 114). O sentido desta frase de inspiração marxista é, de resto, reforçado noutros momentos do livro (pp. 180; 224).
6As discussões dos capítulos 4 e 5 não são, todavia, de menor importância. A questão da legislação (abordada de forma comparada no capítulo 4, ainda que com maior ênfase na realidade inglesa) constitui uma questão fundamental e a autora lamenta que as leis contra a prostituição produzam um impacto negativo sobre os profissionais do sexo, impedindo o acesso destes “aos mecanismos através dos quais se poderiam defender da exploração” (p. 163). Por outro lado, o debate feminista sobre a prostituição é analisado no capítulo 5. Aqui colocam-se em confronto os argumentos dos que vêem a prostituição como tráfico e trabalho forçado (a perspectiva abolicionista das feministas do século XIX) e os argumentos de quem defende que o tráfico é um problema laboral. Neste capítulo reconhece-se ainda que o desenvolvimento da teoria queer propiciou um enquadramento teórico no qual se desenvolveu um “discurso sobre o trabalho sexual como actividade laboral” (p. 194).
7Os dois capítulos finais – respectivamente uma análise de enfoque mais teórico sobre velhos e os novos movimentos sociais, e uma justificação da metodologia da “investigação-acção emancipatória” adoptada – poderiam ter aparecido na parte inicial da obra. Percebe-se, todavia, após percorrido o livro, que a autora se preocupou com chamar de imediato a atenção dos leitores para o seu “objecto-problema”. Estamos, é certo, diante de uma obra pragmática, empírica, que vai directamente ao objecto de estudo que analisa e esse é, sem dúvida, um dos seus principais méritos. Inclusive, Ana Lopes considera (embora aqui talvez exageradamente) que os investigadores deviam apenas “desenvolver teoria que realmente interesse aos activistas, ou seja, que contribua para o desenvolvimento das actividades dos movimentos sociais” (p. 222). Por isso, defende um modelo de investigação-acção “para a frente” (pp. 241-242; 250), i.e., que produza resultados práticos e não regresse ao ponto de partida. Nesse sentido, há que reconhecê--lo, a “linha ondulante” apresentada sob a forma de diagrama (p. 242) constitui uma síntese feliz de todo o processo de sindicalização dos profissionais do sexo.
8Ainda assim, teria valido a pena aflorar melhor teoricamente a discussão sobre a relação entre velhos e novos movimentos sociais empreendida no penúltimo capítulo. Aqui, a autora, ainda que não deixe de esclarecer as diferenças entre o velho e o novo (pp. 218-219), mostra-se claramente defensora da “tese” da continuidade entre o “velho” e o “novo” na análise dos movimentos sociais (pp. 220-221), considerando, por isso, existir um fraco valor teórico e político nessa distinção (p. 202). Em seu entender, o Sindicato Internacional dos Profissionais do Sexo é que melhor corporiza a ideia de um “sindicalismo de movimentos sociais”, que acolhe do “velho” movimento operário a mobilização formal dos trabalhadores e do “novo” as tácticas de activismo “de base” (p. 223). A autora não esclarece, porém, por que motivo utiliza a expressão “sindicalismo de movimentos sociais” no plural, quando a expressão “sindicalismo de movimento social” foi consagrada há pelo menos duas décadas em resultado dos estudos realizados por Gay Seidman, Kim Moody, Eddie Webster, Rob Lambert, Kim Scipes, Peter Waterman, entre outros. Estes autores (que não chega a incorporar na sua análise) tiveram por referência novos tipos de sindicalismo emergentes no Brasil, Filipinas, África do Sul ou Coreia do Sul, mas igualmente com o propósito de “abrir o mapa” do sindicalismo a outros discursos e realidades.
9Como é reafirmado por Ana Lopes, a investigação-acção realizada tornou a acção dos profissionais do sexo mais capacitante e assegurou a representação sindical para os profissionais do sexo (que não dispunham dela), tendo essa representação sindical sido oficialmente reconhecida. Ainda assim, apesar dos resultados alcançados, não terá ficado propriamente provada a tese de um “movimento mundial de profissionais do sexo” (p. 44) que Ana Lopes tão peremptoriamente defendera no primeiro capítulo. O facto de a indústria do sexo se ter tornado global (como defende no capítulo 2, p. 60) serviu de pretexto para a adopção da expressão “internacional” na designação do sindicato. Sustenta-se igualmente (p. 77) que a internacionalização advém da organização on-line, o que sem dúvida constitui um recurso de grande utilidade no nosso século. Porém, é reconhecido (capítulo 3, p. 128) que as estratégias de recrutamento para aumentar a visibilidade dos profissionais do sexo e da secção sindical no seio da indústria do sexo se limitaram geograficamente ao Soho e ao Red Line District mais conhecido de Londres e que está por fazer, apesar de alguns contributos válidos, uma “análise compreensiva do movimento pelos direitos dos profissionais do sexo no seu contexto global e mundial” (capítulo 5, p. 195). Certamente será necessário aguardar por um reconhecimento e crescimento mais alargados no âmbito nas distintas redes de activistas e, nomeadamente, da rede internacional dos profissionais do sexo. Como será igualmente curial avaliar que tipo de apoio/acolhimento se pode esperar da maior organização sindical mundial, a Confederação Sindical Internacional (constituída no final de 2006), perante a luta dos trabalhadores do sexo.
10Estamos, pois, diante de um movimento ainda emergente, de trajecto “ascendente”, que se faz sentir mais nuns países do que noutros, cuja expressão é difícil de quantificar e que, por esse facto, pode ser uma luta de interesse transnacional mas cujos contornos, neste livro, se encontram mais localizados e reportados à realidade do Reino Unido. Mas este trabalho é, afinal, pioneiro e, nesse sentido, constitui também uma alavanca para que os trabalhadores do sexo do Sul, mas também os do Norte, possam adquirir outra visibilidade e dignidade na esfera global. Como a própria autora reconhece (p. 244), o impacto efectivo da representação sindical na vida dos profissionais do sexo exigiria uma outra investigação pois só no longo prazo poderá avaliar‑se melhor esse impacto de forma sistemática.
11Mais do que propriamente abalar as (supostas) convicções do leitor sobre o sexo e a prostituição (como a autora, na própria contracapa do livro, adverte que possa suceder em resultado da sua leitura), será de realçar a componente informativa/formativa que percorre o livro desde os capítulos iniciais e que se afigura bastante útil como exercício de divulgação de um “submundo” menos conhecido do público em geral, mas comprovadamente atravessado por múltiplas formas de exploração e estigmatização. Diria que estamos sobretudo diante de um livro de grande oportunidade para os/as activistas e/ou profissionais do sexo activistas, pois serve de suporte ao reconhecimento das suas lutas. Mas será certamente exagerado pensar-se que os profissionais do sexo são os únicos destinatários deste livro. Na verdade, o respeito pela dignidade de quem exerce uma actividade laboral (seja no domínio das múltiplas actividades associadas à indústria do sexo ou em quaisquer outras) constitui um sinal de alerta e simultaneamente um indicador do muito que há a fazer (organizar) em prol das distintas formas de trabalho humano que recorrentemente são marginalizadas e dificilmente encontram estruturas associativas que salvaguardem os seus interesses mais elementares.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Hermes Augusto Costa, «Lopes, Ana (2006), Trabalhadores do sexo uni-vos! Organização laboral na indústria do sexo. », Revista Crítica de Ciências Sociais, 80 | 2008, 213-217.
Referência eletrónica
Hermes Augusto Costa, «Lopes, Ana (2006), Trabalhadores do sexo uni-vos! Organização laboral na indústria do sexo. », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 80 | 2008, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 13 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/706; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.706
Topo da páginaDireitos de autor
Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Topo da página