- 1 Parte deste texto resulta de um projecto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e (...)
- 2 Estou consciente da natureza insatisfatória de ‘feitiçaria’ como um conceito analítico. Para uma d (...)
- 3 Esta temática tem conhecido um interesse renovado, com vários investigadores a prestar atenção às (...)
1Em Moçambique, ao longo dos últimos quinze anos, as acusações e suspeitas de práticas de feitiçaria têm conhecido uma renovada importância. Com a emergência do moderno sistema colonial, a feitiçaria transformou-se no símbolo do mundo selvagem, numa prática a ser abolida com a introdução de uma racionalidade moderna.2 Consequentemente, o ‘porquê’ da persistência de tais práticas não tem sido explorado. Todavia, no início do século XXI, a religião e a magia permanecem como uma das mais poderosas retóricas da cultura política em África.3
- 4 Os dados e informações subjacentes a este artigo referem-se ao período entre 2003 e 2007, embora f (...)
- 5 O pós-colonialismo, não deve ser tratado como um órgão unificado de pensamento, pelo contrário, el (...)
2A dimensão mágica da política em África é, no entanto, frequentemente ignorada por muitos estudos políticos e históricos. Como procurarei argumentar neste artigo, a dimensão mágica da política não é marginal, mas sim uma dimensão central da natureza da autoridade pública, da liderança e das identidades populares no continente. Tomando como ponto de referência os casos amplamente divulgados acerca do suposto tráfico de órgãos humanos no Norte de Moçambique em 2003-2004,4 este artigo procura analisar estas acusações como parte de um contexto cultural vasto, em que múltiplas realidades culturais se cruzam numa complexa rede de luta pelo poder; os boatos e acusações de práticas de feitiçaria, quando analisados num contexto social mais amplo, são vistos como estando relacionados com mudanças sociais, económicas e políticas instáveis. Os boatos e acusações de tráfico de órgãos, de contrabando de corpos, são uma imagem ampliada da vulnerabilidade e violência que ocorre no país. Longe de pretender banalizar as realidades vividas em Moçambique, este artigo procura revelar mais acerca do mundo em que as pessoas vivem, tentando explicar as suas angústias e desejos e procurando soluções para os problemas que afectam as suas vidas quotidianas. Comparando os diversos significados que os boatos, suspeitas e acusações implicam, procurar-se-á proporcionar uma melhor compreensão acerca de como as relações de desigualdade passadas e presentes são construídas e mantidas no país. Tais debates ajudam a revelar os múltiplos sentidos da relação entre poder, discurso e instituições e práticas políticas, logo, produzindo novas ideias e interpretações epistémicas das experiências ocorridas quer durante o período colonial, quer no pós-colonial.5
3Longe de ser uma retrospectiva de realidades antigas, ou recentes invenções que respondem a necessidades e funções completamente novas, as estruturas de poder actuais têm uma longa história na região. Histórias, representações e deturpações locais são aqui analisadas tendo em vista a reinserção destas questões nas normas de evidência de um contexto regional e global mais amplo.
4Durante o auge da intervenção colonial portuguesa, a feitiçaria foi considerada de modos diferentes: como um conjunto de crenças, muitas vezes incluindo modelos de comportamento inversos; como modelos de acusação; e como um julgamento da pesada “tensão social”. Apesar de muitos assumirem que, com o início da modernidade – vista como produto da intervenção colonial – a feitiçaria iria desaparecer, em muitas partes do mundo é visível uma forte presença de bruxas e práticas de feitiçaria, com o número de acusações a aumentar (Geschiere, 2003; Caplan, 2004; Stewart e Strathern, 2004). No Moçambique contemporâneo, a feitiçaria persiste como um conceito e uma realidade, tanto em ambientes rurais como urbanos (Meneses, 2004a, 2007; West, 2005); esta constatação remete-nos, de um modo doloroso, para o facto de a feitiçaria não ser apenas uma assombração do passado mas fazer parte do discurso e da experiência da modernidade presente.
- 6 São especialmente representativas as obras de Douglas, 1970; Comaroff e Comaroff, 1988, 1999, 2006 (...)
- 7 Sobre a questão da interpretação, construo a minha abordagem baseada nas ideias sugeridas anterior (...)
5Desta forma, é óbvio que não pode negar‑se que há muitas linhas de continuidade entre o passado e o presente, entre a velha e a nova ordem social — mas qual a importância das continuidades? Um dos pressupostos deste artigo é que as continuidades se revestem de uma importância crucial, e que os conceitos supostamente tradicionais sobrevivem porque encontram uma nova dimensão e uma nova aplicação em situações contemporâneas. A África anterior à moderna colonização é parte da história, sobretudo de uma história oral, mas isso não significa dizer que possa ser ignorada. Pelo contrário, para reconhecer conceitos tradicionais e compreender como funcionam na África contemporânea, é necessário, em primeiro lugar, vê-los como parte de uma ordem política e social, o que nunca existiu num formulário impoluto. Na verdade, a questão da tradição e modernidade foi amplamente discutida em muitas publicações recentes; talvez a feitiçaria seja um dos principais temas a discutir na relação de “África com o resto”.6 Se a dicotomia entre o Ocidente e África é ainda, muitas vezes, baseada em contrastes entre feitiçaria, magia e irracionalidade por um lado, e procedimentos científicos, transparentes e racionais por outro lado, devemos interrogar‑nos sobre até que ponto este fenómeno é exclusivo de Moçambique, ou do continente africano. Ou será uma questão de tradução?7
6Um dos momentos base da intervenção colonial é a transformação do ‘outro’ num objecto, sobre o qual a ordem de conhecimento colonial poderia exercer o seu poder. O trabalho descritivo privilegiou a descrição que acentuava as diferenças do ‘outro’, tornando pessoas e ambientes distantes e estranhos inteligíveis a públicos ocidentais. Assim, a tradução actuou como um meio para construir uma ‘representação’ do outro. No entanto, o estudo das complexidades e contradições das relações entre culturas permite uma compreensão mais ampla do significado dos equívocos e dos legados de cada um.
- 8 Sobre este assunto, veja-se Dussel, 1995, e Santos, 2006c.
- 9 Por exemplo, a costa ocidental e sul do Oceano Índico foram descritas como sendo habitadas por ‘ne (...)
7A especificidade dos encontros que tiveram lugar durante o início da primeira modernidade colonial (ibérica)8 é importante para as discussões dos encontros europeus com os não-europeus, uma vez que, como alguns estudiosos alegam, os autores portugueses começaram por ver a África Oriental através dos olhos dos muçulmanos do litoral (Presthold, 2001: 385). A apropriação de certas expressões pelos narradores portugueses é particularmente reveladora da sua adesão aos conceitos e apelos swahili.9 Como mediadores culturais, os swahili tornaram-se nos tradutores da África Oriental para os portugueses conseguindo, assim, manter um controle relativo do comércio na região através de uma regulação do conhecimento dos portugueses sobre os mercados da África Oriental e o acesso a eles.
8Esta atitude que caracteriza a presença portuguesa na costa oriental do continente africano contrasta com a perspectiva dominante presente em grande parte das abordagens coloniais modernas em relação às relações culturais e intelectuais com os não europeus, especialmente a partir de meados do século XIX. Na realidade, a segunda modernidade colonial caracteriza-se pela interacção da Europa com outras regiões do mundo através do cânone definido pela Europa. Este cânone foi construído através da autoconstrução de uma identidade, apostando no reconhecimento dos europeus enquanto dotados de uma identidade não só completamente distinta do que era entendido como sendo culturalmente distante, mas também, muitas vezes, incomensuravelmente superior. Assim, o conhecimento e a compreensão do mundo tornaram-se a explicação do mundo através do prisma monocultural da ciência moderna (Santos, Meneses e Nunes, 2004).
9A hegemonia crescente do conhecimento científico moderno na Europa foi sinónimo, em grande parte do espaço colonial, da missão de organizar e disciplinar as populações autóctones. A ciência moderna, com o seu sentido ou ordem e poder, tornou-se um meio de regular as relações entre os ‘civilizados’ e os ‘insubordinados’ (Meneses, 2007). O moderno empreendimento colonial português começou numa altura em que a ciência deu uma nova força e legitimidade à política pública e colonial. De repente, o conhecimento científico emergiu como um instrumento de afirmação da superioridade portuguesa, uma mudança que transformou os saberes do ‘outro’, com quem tinham estado em contacto durante séculos, em formas inferiores e locais de interpretar o mundo. As fronteiras da civilização tornaram-se as margens de um sentido de ordem social europeia; consequentemente, os nativos tornaram-se a própria encarnação da desordem, simbolizada pelo seu sofrimento moral, degradação física e mundo desordenado.
- 10 Descrever a ciência como sendo o epítome de uma monocultura do pensamento não significa que a ciên (...)
10Esta negação da diversidade das formas de perceber e explicar o mundo é um elemento constitutivo e constante do colonialismo. No entanto, e muito embora a dimensão política da intervenção colonial tenha sido amplamente criticada, o ónus da monocultura colonial epistémica ainda é actualmente aceite como um símbolo de desenvolvimento e modernidade. Os estudos críticos pós-coloniais permitem hoje, ao trazer a diferença epistémica ao debate, alargar a crítica ao conhecimento monocultural da ciência moderna e, em particular, da forma como, historicamente, esse conhecimento se constituiu em factor de exclusão ou de marginalização.10
11Num mundo onde a força da hegemónica da racionalidade moderna é uma realidade presente, mas em concorrência com outras formas de conhecimento, uma das principais disputas diz respeito àquilo que precisa de ser conhecido (ou ignorado), a como representar este saber e para quem. Falar de diversidade cultural implica falar duma diversidade de saberes. No entanto, durante a maior parte da história colonial e contemporânea de Moçambique, o objectivo tem privilegiado uma interpretação moderna das culturas locais. No campo das ciências sociais, as metáforas sobre corpos dóceis, mas vazios ou limitados nas experiências e saberes, persistem. A criação da alteridade enquanto espaço vazio, desprovido de conhecimentos e pronto a ser preenchido pelo saber e cultura do Ocidente, foi o contraponto da exigência colonial de transportar a civilização e a sabedoria para povos vivendo supostamente nas trevas da ignorância. A segmentação básica da sociedade colonial entre ‘civilizados’ e ‘selvagens/indígenas’, conferiu consistência ao colonialismo enquanto epistema, transformando os autóctones em objectos naturais, situando-os num tempo-espaço temporalmente indeterminado, mas ainda assim periférico, sobre quem urgia agir, para os ‘introduzir’ na ciência, sinónimo do espaço-tempo único moderno.
12Recorrer ao argumento que invoca a localização dos ‘outros’ conhecimentos – como qualquer outra ilusão – é mais reconfortante do que reconhecer a verdadeira situação, caracterizada por uma concorrência feroz entre esferas de saberes que não aceita a hierarquização destes. Esta concorrência entre saberes é uma fonte genuína de grande receio e ansiedade, pois que se pressupõe que os supostamente menos civilizados e menos competentes estão a penetrar no território da civilização, contestando o lugar de destaque que a ciência reivindica sistematicamente para si e provando que há vários saberes em presença.
13Em Moçambique, como em muitos países africanos, a perseguição aos feiticeiros é descrita mais como um costume aberrante e disfuncional, em lugar de ser vista como fazendo parte de um sistema espiritual complexo, presente no continente desde há muito. O que, para um pensamento de orientação científica e ocidental, pode ser considerado como um facto infeliz e imprevisível – por exemplo, uma doença, uma morte, um acidente, a perda de uma propriedade e um qualquer outro infortúnio – é frequentemente explicado na região como resultado de feitiçaria. As práticas associadas a esta explicação variam de região para região e de comunidade para comunidade; no entanto, o denominador comum da maioria delas é a sua natureza não previsível ou controlável.
- 11 Embora a questão dos boatos esteja fora do âmbito deste artigo, eles resolvem as desordens que res (...)
14A análise dos boatos relativos a práticas e acusações de feitiçaria constitui uma janela privilegiada para a complexa realidade dos conflitos de conhecimento e poder.11 Estudos recentes acerca da relação entre os domínios mágicos/religiosos e a política em África procuraram responder a estas questões, e proporcionaram aos investigadores tipologias revistas e modelos teóricos no quadro das ciências sociais. Neste contexto, duas linhas de argumentação podem ser detectadas: a primeira, que apela à ‘re‑tradicionalização’ do continente, defende a análise e a solução de crises políticas contemporâneas através da reciclagem de antigas crenças e instituições locais; a segunda argumenta que a ‘modernidade’ da política africana explica as políticas recentes como sendo emergentes das limitações da modernidade e globalização, instigando contextos e dinâmicas completamente novas (Meneses et al., 2003; Meneses, 2004a, 2006, 2007). Um estudo cuidadoso dos significados atribuídos à feitiçaria no Moçambique contemporâneo oferece um bom exemplo de conflitos epistémicos, que envolvem a manipulação de múltiplos saberes. Este é um tema que merece uma análise mais profunda. De facto, a investigação em curso em Moçambique sugere, que longe de ser uma reminiscência de antigas superstições que persistem, ou de invenções recentes que respondem a necessidades e funções completamente novas, as acusações e suspeitas de feitiçaria têm uma longa história na região.
- 12 Porque a concepção e a percepção do mundo é distinta, as possibilidades de correspondência e media (...)
15A feitiçaria representa um comportamento que se desvia das normas aceites numa sociedade: os feiticeiros são maus e criam desarmonia nas relações sociais; eles representam um risco para a estabilidade da comunidade. Portanto, chamar a alguém ‘feiticeiro’ equivale a pronunciar essa pessoa como traiçoeira, situando-a num relacionamento antagónico com o resto da comunidade/sociedade. Porque as práticas de feitiçaria são impossíveis de detectar ou verificar por meios ‘normais’,12 as pessoas acusadas de tais práticas são vistas como destruidoras da solidariedade social do grupo. Sendo uma ameaça, elas deixam de merecer apoio e reconhecimento da comunidade. Em suma, já não fazem parte da comunidade; não existem socialmente. Este último aspecto é central para a análise das recentes suspeitas acerca do tráfico de órgãos humanos em Moçambique.
16Uma pessoa acusada de ser feiticeira representa uma ameaça à solidariedade comunitária, devendo ser descoberta e combatida através de todos os meios de que a comunidade dispõe. É esta ideia de traição ao próprio grupo, um ataque à verdadeira base da estrutura social que transforma a suspeita da prática de feitiçaria num crime odioso (Evans, 1992: 50).
17No passado, aqueles que cometiam traição, desobedeciam às decisões tomadas, cometiam assaltos, ofensas verbais para com os mais velhos, incesto, sodomia, violação, homicídio e feitiçaria eram considerados inimigos públicos. O castigo para estas ofensas variava desde uma multa que podia ser paga com gado, até à própria morte do acusado, passando por castigos corporais, exílio e confiscação de bens pertencentes à família do acusado.
- 13 Em relação a este assunto em Moçambique, cf., por exemplo, Silva, 1884; Costa, 1899; Cruz, 1910; A (...)
18Descrições recolhidas há mais de cem anos apontam semelhanças com algumas das acusações de feitiçaria dos nossos dias: suspeita de roubo de órgãos humanos para que os feiticeiros da noite produzissem remédios (muti), alvejar os rebanhos de gado dos aldeões durante passeios nocturnos, o envenenamento das fontes de água usadas pela comunidade e enfeitiçar os campos para que, quando as pessoas os fossem cultivar, sucumbissem e morressem. Os contributos de missionários, comerciantes, viajantes e, mais tarde, investigadores, desempenharam um papel importante na identificação dos feiticeiros e na tentativa de estabelecer um sistema de interpretação que pudesse explicar o atraso (em relação às explicações racionais da modernidade ocidental) da feitiçaria, assim como das formas para eliminar esta prática.13
19Com a introdução da legislação colonial, a aplicação de violentos castigos aos alegados feiticeiros foi diminuindo; todavia, as crenças e as explicações não desapareceram. Na África do Sul e noutros territórios vizinhos a Moçambique sob a administração colonial britânica, a aplicação das ‘Leis contra a feitiçaria’ (Witchcraft Acts) no início do século XX está na origem, não apenas da proibição da prática (e das acusações) de feitiçaria, mas também da consulta a médicos que poderiam detectar a existência de feitiçaria. Em Moçambique, onde a legislação colonial nunca proibiu formalmente a prática de feitiçaria, a identificação de feiticeiros, através do recurso à medicina pela adivinhação, levou à identificação destes médicos como parte do universo da feitiçaria (Meneses, 2000, 2004a; Honwana, 2002). Como várias pessoas entrevistadas ainda recordam, gradualmente, a defesa contra acções de feitiçaria foi-se limitando à consulta de adivinhos/curandeiros, a tomar medicamentos preventivos e, eventualmente, ao pagamento de multas e exílios ocasionais, procedimentos estes que ocorriam numa semi-legalidade. Contudo, o Estado colonial e a maioria das instituições de investigação científica em Moçambique não iriam dedicar atenção a este tema. Esta forma de ‘amnésia’ tornou possível a persistência da narrativa científica ocidental, a qual apenas tem sido parcialmente questionada sobre o enviusamento da sua abordagem em relação à diversidade de conhecimentos presentes no país. Nos nossos dias, e tal como durante o período colonial, em Moçambique as populações locais que recorrem aos curandeiros (médicos tradicionais) são ainda vistas como utilizando práticas curativas não civilizadas, não modernas. A presença de outros processos para resolver acusações de feitiçaria – fora do âmbito definido pelo Estado monocultural – é ainda entendida por muitos como exemplo de ausência de sofisticação jurídica moderna, um momento que reflecte a incapacidade destes grupos de integrar a moderna racionalidade nacional.
20Os boatos que circulam no espaço público retratam a feitiçaria como a forma mais comum de, em tempos de crise económica e de declínio social de oportunidades, se conseguir sucesso pessoal, riqueza e prestígio. Os líderes políticos são amplamente referenciados por recorrerem à feitiçaria a fim de assegurarem poder e sucesso eleitoral, e muitos usam engenhosamente este conhecimento para ganhar visibilidade e mesmo deferência. Na esfera doméstica, conflitos sociais e familiares em torno de acusações de feitiçaria materializam-se repetidamente, especialmente quando ocorrem mortes súbitas ou infortúnios pessoais. Permeando todo o espectro social e cultural, a feitiçaria permanece hoje como uma força ambivalente que ajuda a promover a acumulação individual e colectiva e a controlar a diferenciação social.
21Esta dimensão mágica do político, no contexto africano, tem sido frequentemente ignorada pelos estudos históricos e políticos clássicos (Santos, 2006a). Mas, como procurarei argumentar, a dimensão mágica da política não é marginal, mas uma dimensão central da natureza da autoridade pública, da liderança e das identidades populares em Moçambique.
22Para melhor se perceber a persistência da feitiçaria em cenários contemporâneos, é necessária uma exploração cautelosa, comparativa e histórica, das múltiplas camadas religiosas que compõem o corpus das convicções políticas na África contemporânea. No campo da pesquisa antropológica, as últimas duas décadas testemunharam um aumento dos trabalhos que procuram explicar a proliferação de tais práticas e crenças e a sua recolocação em cenários actuais. Um dos argumentos avançados por Mary Douglas e Aaron Wildaskvy (1982) propõe que as sociedades escolhem os seus pesadelos a partir tanto de critérios sociais como culturais; neste sentido, os seus pesadelos são diferentes. Um dos pesadelos coloniais portugueses era o de que os colonizados podiam ter poder e com ele desafiar a sua intervenção ‘civilizadora’ em Moçambique, ou seja, desafiar a própria razão da missão civilizadora ocidental. Desde a independência política de Moçambique, as realidades mudaram, assim como se modificaram os pesadelos da sociedade; no entanto o pesadelo de feitiçaria persiste.
23Longe de ser desestabilizada pela regra colonial, a feitiçaria beneficiou da existência das dramaturgias coloniais de autoridade – o monopólio da ciência e da lei, o sigilo, e a violência corporal – adequadas às representações locais do poder. As obsessões da administração colonial portuguesa com a feitiçaria promoveram-na como um aspecto fundamental das estratégias de resistência e inovação, recentrando-a, assim, no âmago da cultura política. Estes desenvolvimentos ajudam a reavaliar o período colonial, apresentando-o mais como um momento de reconfiguração estratégica cultural do que como uma ruptura caracterizada pela destruição das referências e valores africanos existentes. A proeminência crescente e a mudança de conceitos dos poderes de um feiticeiro reflectem a interacção entre a vida quotidiana e os sistemas macro-sociais e económicos. Esta interacção é usada como quadro teórico para interpretar as crenças e acusações de feitiçaria, que deverão ser vistas como resultado das relações de poder nos contextos contemporâneos e pós‑coloniais (Comaroff e Comaroff, 1999, 2006; Geschiere, 1997; West, 2005).
24As reportagens acerca do tráfico de órgãos humanos em Moçambique, em finais de 2003, inícios de 2004, tiveram o seu epicentro na cidade de Nampula, localizada no Norte de Moçambique. Cidades como Maputo, Nampula, Joanesburgo, ou Nairobi têm sido capazes de atrair e seduzir, à sua maneira, certas formas de capital global. Não há dúvida de que essas formas de capital são, na sua grande maioria, predatórias. Mas isto é, pelo menos em parte, um elemento do processo de globalização, que inclui modos refractados, fragmentados e fracturados. Estas cidades não são simplesmente compostas de espaços de marginalização social. São também cidades de dinheiro, cidades onde bolsas de privilégios coexistem com as de miséria. Estas são “cidades onde a circulação de riqueza, na forma de dinheiro, é imensa e ostensiva, mas as fontes de dinheiro são sempre restritas, misteriosas, ou imprevisíveis […] e a busca pelo dinheiro para se atingirem os fins é interminável” (Appadurai, 2000: 628). Tais formas de vida urbana fracturadas, conflituosas e fragmentadas podem ser vistas, cada vez mais, como características de muitas cidades do mundo de hoje, incluindo na Europa e nos Estados Unidos.
25Simultaneamente, nestes contextos urbanos, as especificidades das condições ‘pós-coloniais’ ganham configurações especiais. Aqui, a vulgaridade da política contribui para o que Mbembe descreve como sendo “uma prática de convívio e uma estilística de conivência”, em que as pessoas comuns “brincam com o poder, em vez de o confrontar directamente” (1992: 22).
26Em Moçambique, como em outros contextos africanos, as pessoas desenvolvem ‘estratégias de identidade’, particularmente em relação ao Estado, incorporando no carácter monocultural do Estado significados e conhecimentos múltiplos. No entanto, as experiências com o Estado e os domínios criados pelo Estado nos contextos políticos gerados com a independência levaram as pessoas, alternativamente, a sentir que o seu próprio bem-estar depende do dos outros. Paralelamente, o reconhecimento ‘informal’ de identidades múltiplas leva as pessoas a tentar incorporar identidades e capacidades dos ‘estrangeiros’ nas suas próprias identidades; ou, ainda, a sustentar crenças de identidade suficientemente flexíveis para negociar de forma produtiva os seus interesses. Tais ‘estratégias de identidade’ reflectem percepções contestadas do que é pensado para o bem comum e para quem, e da ambivalência generalizada acerca de como e para que fins o poder deve ser usado. As acusações de feitiçaria em Nampula podem ser interpretadas como um exercício para historicizar a intersubjectividade, isto é, para especificar as circunstâncias em que as pessoas reconhecem as suas interdependências como sendo um campo de acção tão legítimo e necessário como as suas aspirações mais individualistas.
27A ocupação efectiva portuguesa do norte da região de Nampula só aconteceu na transição para o século XX. Um século antes, o Norte de Moçambique testemunhou importantes mudanças político-económicas resultantes, sobretudo, do reforço do seu envolvimento nos sistemas comerciais internacionais de escravos e de armas. Este comércio deixou uma marca indelével no tecido social e político da região.
- 14 Amakhuwa é o plural de makhuwa, o principal grupo etnolinguístico em Moçambique, distribuído ao lo (...)
- 15 As autoridades tradicionais aplicavam as normas costumeiras (que passaram a ser consideradas como (...)
28Na região de Nampula, a ocupação colonial não causou, de imediato, mudanças substanciais nas relações entre os Amakhuwa14 e Portugal. Quaisquer que fossem as suas concepções sobre o processo de colonização, o Estado português não teve outra opção se não a de recorrer à administração indirecta, apoiando-se nas estruturas locais de poder para administrar o território. Todavia, a radicalização da estrutura colonial exigia que a moderna administração transformasse radicalmente as relações existentes. Com o Estado Novo (quando Moçambique passou a estar sob controlo de um só sistema de administração), o colonialismo português passou a ser caracterizado por um controlo político altamente centralizado e autoritário; pelo contrário, o controlo administrativo permaneceu ainda selectivo e descentralizado. Este sistema - profundamente ‘racializado’ – aliava a assimilação aos princípios da administração indirecta (Santos e Meneses, 2006; Meneses, 2007).15
29A formação da cidade de Nampula reflecte a diversidade étnico-política da região. Por exemplo, os imigrantes da Ilha de Moçambique predominam nos bairros de Namicopo-Nametequiliua e Carrupeia, enquanto os migrantes de Angoche compõem a maioria dos muçulmanos em Muhalla. Os Koti começaram a povoar estas terras no pico do comércio de escravos durante o século XIX, mas os imigrantes da Ilha de Moçambique chegaram à região sobretudo no início dos projectos de urbanização na década de 1930 (Bonate, 2006: 163-164). Nestes bairros, grande parte dos conflitos e problemas eram solucionados através do recurso a normas e práticas locais.
- 16 Através do Decreto nº 6/78, de 22 de Abril de 1978.
- 17 Na primeira década após a independência, os curandeiros ou adivinhos só raramente foram usados par (...)
30Com a independência, as autoridades tradicionais e locais foram suprimidas pelo Estado moderno, como forma de “combater o tribalismo para construir a nação”;16 esta opção política tinha como objectivo desenraizar a identidade nacional do seu passado étnico (Meneses, 2007).17 Os defensores da modernização – em Moçambique, a exemplo de outros países – assente quer em instituições coloniais, quer (pós)coloniais, desejavam, em nome do progresso, extirpar a feitiçaria o mais depressa possível, de preferência através meios legais, campanhas educativas, campanhas de justiça popular e de medicina para o povo.
- 18 Ou seja, pelo reconhecido da diversidade política local presente no país.
31A luta pelo apoio das comunidades ‘locais’18 é apontada como sendo um dos principais vectores da guerra civil que assolou Moçambique durante mais de uma década, logo após a independência (Geffray, 1991; Dinerman, 1999, 2004). Esta guerra teve um efeito profundo na reformatação de Nampula; impulsionadas pelas dificuldades económicas e pela instabilidade sócio-política produzidas com a independência, novas vagas de imigrantes surgiram na cidade de Nampula, que se tornou no principal pólo económico da região norte do país (PNUD, 2006).
32Em 2000, as autoridades comunitárias/tradicionais foram reintroduzidas, embora o seu papel, em contextos urbanos, continue controverso (Meneses, 2007). Desde o seu aparecimento, com a administração colonial, no início do século XX, que estas autoridades têm sido continuamente criadas e dissolvidas, subdivididas e redesenhadas. Esta volatilidade tem sido aproveitada e manipulada, quer por estas autoridades, quer pelos diversos partidos políticos, que emergem na cena política moçambicana a partir da segunda metade dos anos 90. No contexto de Nampula, cada vez que o jogo político é redefinido, os Amakhuwa não têm outra alternativa se não a de participar, tanto para proteger a sua posição perante o Estado, como para ter acesso aos cargos políticos – a via mais comum para se obter riqueza pessoal. Cada mudança requer uma remodelação das redes de influência, uma tarefa que exige muito tempo, assim como o aumento e o consumo dos recursos financeiros. Em suma, durante a maior parte do século passado, os Amakhuwa têm sido simultaneamente cidadãos e súbditos.
33A maior parte da província de Nampula foi convertida ao cristianismo relativamente tarde, nos meados do século XIX. Simultaneamente, a conversão ao Islão conheceu um aumento significativo no século XIX, numa região onde as religiões tradicionais ocupam um lugar importante.
34Na região, as filiações religiosas dos Amakhuwa configuram-se de forma bastante clara: se um makhuwa é cristão ou muçulmano, poderá ser previsto com um grau elevado de precisão com base na sua residência familiar, actual ou histórica, e pela influência dos processos de missionação: a oeste e a sul de Nampula são predominantemente católicos. Os muçulmanos estão em toda a província, mas são a maioria na região litoral (Bonate, 2006). As outras igrejas têm tido, até aos últimos anos, menor influência. A predominância de uma ou outra religião teria quebrado um delicado equilíbrio, porque, para além destas diferenças religiosas, que são comuns nas extensas famílias Amakhuwa, quando toca a questões políticas centrais, todos são Amakhuwa e o sentido de pertença étnica torna-se determinante. Esse compromisso é extremamente importante porque em Moçambique tudo é político (Iavala, 2000). Os representantes do Estado, lideres partidários, empresários políticos, lideranças religiosas e organizações da sociedade civil contestaram os ‘outros donos do poder’, ou seja, as lideranças políticas tradicionais, curandeiros e outros líderes, que são agora, de novo, actores estratégicos no xadrez político local.
35No início da década de 1990, com o fim da guerra civil e com a adesão do Estado às políticas sócio-económicas neoliberais, num contexto de diferenças de riqueza e de conflito geracional crescentes, as suspeitas de feitiçaria aumentaram dramaticamente. Este processo foi interpretado localmente pelas populações e líderes das comunidades como correspondendo ao restabelecimento de uma ordem moral quebrada pelo Estado (quer do Estado colonial como do contemporâneo, fruto da independência). O ressurgimento das articulações entre a política e o ‘oculto’, como novas articulações locais entre uma ‘modernidade ocidental’ e ‘práticas tradicionais africanas’ tem gerado novas etnografias. Semelhantes aos ocorridos noutros contextos africanos, estes encontros acentuam o papel das práticas ‘ocultas’ como formas de dar sentido às rápidas e profundas transformações na política e na economia. A violência crescente – em que se incluem as acusações de feitiçaria e vários rituais violentos – é um efeito das pressões de monetarização económica, aliadas à desarticulação social das comunidades (Geschiere, 1997; Comaroff e Comaroff, 1999; Niehaus, 2001). Estudos feitos na região destacam a forma através da qual os imaginários tradicionais sobre as ‘forças invisíveis’ concebem o poder como um espaço ‘opaco’. Isto produz um contraponto entre perspectivas ‘locais’ e uma racionalização ‘globalizada’ de transparência e responsabilização sustentada pelo Estado e pelas agências estrangeiras ou exógenas à região.
36A importância vital da solidariedade entre os membros da comunidade e os seus vizinhos inibiu as acusações de feitiçaria; assegurou que as pessoas não comprometeriam as relações interpessoais. A investigação levada a cabo sobre este tema em alguns países vizinhos (Chanock, 1998; Niehaus, 2001), sugere que a emergência de núcleos urbanos e a consequente separação das famílias alargadas e a sua transformação em famílias mais pequenas, associada à migração de trabalhadores para as cidades levaram ao desaparecimento de tais inibições; consequentemente, tornou-se menos arriscado fazer acusações de feitiçaria aos vizinhos e parentes, uma vez que tais acusações não eram tão críticas à própria existência do grupo como quando a vida se encontrava organizada comunalmente. No caso da África do Sul, Isak Niehaus leva esta tese mais longe, afirmando que as crenças na feitiçaria têm mais a ver com as experiências de “miséria, exclusão, doença, pobreza e insegurança” (2001: 192), do que com a identidade africana. Estas experiências são os próprios riscos quotidianos com que as populações desta região do continente lidam, um bom sinal de que as acusações de feitiçaria reflectem e amplificam os reais problemas sociais e económicos que estas sociedades atravessam.
37Trabalhos de investigação realizados nas áreas urbanas e rurais de Moçambique mostram que a diferenciação social e económica está firmemente enraizada e que as comunidades são, essencialmente, heterogéneas quanto à composição social (G20 Moçambique, 2004; PNUD, 2006). As grandes diferenças entre ricos e pobres causam tensões sociais, uma vez que os primeiros tentam evitar exigências excessivas feitas pelos vizinhos e parentes mais pobres; já os membros mais pobres da comunidade cada vez mais entendem os ricos como sendo egoístas. Como os mais ricos suspeitam dos vizinhos pobres, e como os vizinhos mais pobres tagarelam e criticam os mais abastados e os acusam de terem prosperado através de feitiçaria, as tensões eclodem em desconfianças e acusações de feitiçaria.
38Como em outras áreas de Moçambique, também em Nampula a feitiçaria é um conceito ambivalente. Teoricamente, o recurso à feitiçaria é considerado errado. No entanto, qualquer pessoa com poder político e/ou sucesso económico precisa de poderes gerados pela feitiçaria e, nesses casos, os poderes ocultos podem ser uma fonte de admiração, uma força que pode ser usada para atingir alguns fins ‘positivos’ (Geschiere 1997: 9-12, 23; Niehaus, 2001: 192; Meneses, 2004a), que poderão beneficiar um indivíduo ou o seu grupo. Além disso, os líderes políticos e religiosos só podem afastar os perigos de feitiçaria se eles próprios tiverem acesso a tais poderes, tendo assim o direito legítimo de usá-los. O resultado é um choque de valores que, a seu tempo, suscita agitação e tensões nas relações sociais e, eventualmente, conduz às suspeitas e acusações de feitiçaria.
- 19 Este caso foi amplamente debatido nos media locais e internacionais. Cf., por exemplo, as notícias (...)
39No início de 2004, as descrições sobre crimes medonhos e contrabando de órgãos abalaram Moçambique e o mundo.19 Supostamente, havia uma rede a operar na província de Nampula que traficava crianças e partes do corpo humano.
- 20 Jornal Domingo, de 25 de Janeiro de 2004, e de 29 de Fevereiro de 2004.
40No centro desta campanha internacional, estava uma missionária católica brasileira que, na altura, vivia num convento nos arredores da cidade de Nampula.20 Foi ela que, inicialmente, denunciou a suposta existência duma rede internacional envolvida no contrabando humano, activa naquela cidade. O factor mais interessante, porém, era que, no epicentro desta acusação, estava um casal branco, ‘vizinho’ do convento e envolvido num grande projecto avícola, que era apresentado como sendo o líder de um ‘bando criminoso de roubo de órgãos’.
- 21 Uma versão diferente persistiu nos media. Cf., por exemplo, “Conclusões válidas para 4 corpos exum (...)
- 22 Como relatado por vários jornalistas, a reacção não foi o suspiro de alívio que poderia esperar‑se (...)
41A histeria que se seguiu à notícia – que fez os cabeçalhos dos media internacionais durante algum tempo – levou a uma investigação urgente feita pelo gabinete do Procurador-Geral de Moçambique. No entanto, as investigações revelaram-se inconclusivas, sem que nenhumas provas sérias tenham surgido (Procuradoria-Geral da República, 2004).21 Pior ainda, porque as conclusões dos profissionais daquela equipa não apoiaram a opinião difundida pelos boatos, eles foram acusados de mentir e de esconder crimes graves.22 Como explicar este facto? A (sempre) alegada incompetência das instituições moçambicanas? Um mal-entendido cultural? Ambos? Que outras pistas continuam por deslindar nesta história?
- 23 Como relatou o jornal Savana, esta missionária, que tinha estado na região durante vários anos, ma (...)
- 24 Entrevistas realizadas na cidade de Nampula, em 2004.
42As acusações formuladas pela missionária23 e a atitude inicial da Igreja Católica, reproduzida pela maioria dos media, lembram a Inquisição. Por exemplo, os media moçambicanos e internacionais descreveram em detalhe como é que, alegadamente, a mulher do casal supostamente envolvido no tráfico humano tinha agredido fisicamente o Procurador Provincial em Nampula, apesar de entrevistados terem afirmado que o Procurador estava armado e a mulher não.24
43Em suma, o caso, e os seus principais actores, foram julgados e condenados, mesmo antes de o processo judicial oficial ter começado. Não poderia ser de outra maneira. Guiados por uma ideologia de modernidade, os media, com um forte apoio de certos sectores cristãos, não podiam tolerar ser desafiados na sua hegemonia pelas ‘tradições locais’.
- 25 “Mozambique deaths blamed on foreign witch doctors” (AFP, 6 de Abril de 2004). Surpreendentemente, (...)
44Em seis meses, houve três inquéritos que não conseguiram produzir qualquer prova significativa no que diz respeito às alegações de tráfico. Quando a última investigação foi concluída, dos supostamente mais de 50 crianças e adolescentes desaparecidos (listados pelos missionários), o departamento da Procuradoria-geral só conseguiu identificar 14 corpos, mas não houve nenhuma confirmação acerca do suposto tráfico de partes de corpo humano.25 No entanto, o caso não foi encerrado e os debates continuaram. As opiniões reticentes manifestadas por algumas das pessoas que viviam na região da exploração avícola são indicadoras de fortes conflitos de interesses presentes na região.
- 26 A irmã ‘mais velha’ (uterina ou reconhecida como tal pela sua experiência) de um chefe (mwénè) nas (...)
- 27 Paul Fauvet, AIM, 18 de Abril de 2004.
45Uma mulher de nome Arufina Omar, mas que é conhecida por Apwyiamwénè,26 levantou o véu sobre alguns dos problemas subjacentes a esta acusação, afirmando que “aquele estrangeiro impede-nos de cultivar os nossos campos, e está a matar os nossos filhos. Quando íamos aos campos, encontrávamos no caminho roupas manchadas de sangue e órgãos amputados”.27
- 28 Gabinete de Apoio às Pequenas Indústrias (GAPI). O GAPI é plenamente reconhecido pelo Banco de Moç (...)
46O casal estrangeiro sob suspeita tinha recebido apoio financeiro – através do Estado moçambicano (via GAPI28) - para a construção do aviário, ainda em Setembro de 2002. Os 300 hectares atribuídos ao projecto estão localizados na periferia da cidade, um lote de terreno que foi, em tempos, parte de uma grande quinta do Estado – reminiscências do período socialista – mas que, aparentemente, tinha sido abandonado há muito. As estruturas provinciais envolvidas no processo de distribuição de terras, conforme o GAPI confirmou, tinham concedido ao casal um título de utilização do terreno ainda em Dezembro de 2000, em conformidade com a Lei de Terras moçambicana. No entanto, devido aos atrasos burocráticos, o projecto só arrancou, de facto, em finais de 2003. No entanto, embora o GAPI tenha assumido que o local escolhido para instalar o projecto avícola estava desocupado legalmente, na prática, camponeses vizinhos tinham ocupado lotes de terra ‘provisoriamente’; ou seja, o GAPI não reconheceu o direito à terra destes camponeses.
47Num país caracterizado pela persistência de uma economia de subsistência, o sector rural continua a ser importante para a economia nacional. Uma vez que a quinta do Estado estava há muito abandonada, para os camponeses – principalmente mulheres – era uma prática ‘normal’ cultivarem os terrenos em desuso. Isto aconteceu durante a introdução dos títulos de terrenos no país, algo novo que surgiu no país com a expansão neoliberal desde os meados da década de 1990. Assim, uma pedra angular desta contestação é uma forte ‘disputa pela terra’. Embora tenha sido planeado para gerar empregos e receitas, o projecto parece ter sido pouco discutido a nível local, componente que, na Lei de Terras, é peça fundamental (Negrão, 2003).
48Várias das pessoas que estiveram envolvidas na troca de acusações de feitiçaria são pessoas que reclamam o direito à terra que o governo provincial de Nampula atribuiu ao projecto avícola. Algumas dos indivíduos que contestaram a decisão de titulação dos terrenos enviaram mesmo uma petição ao Governo Provincial, reclamando direitos sobre o terreno. A solução proposta pelas autoridades oficiais foi dar aos peticionários terrenos noutros sítios; todavia, isso não os impediu de continuarem a invadir o terreno cedido ao projecto avícola. Um dos camponeses entrevistados afirmou mesmo que o pai tinha sido um chefe tradicional com direito àquele terreno, mas que este lhe tinha sido tirado pelos colonos portugueses (provavelmente, antes da independência moçambicana).
- 29 Jordane Bertrand, “Mozambique organ trafficking scandal peters out”, IOL África, 16 de Março de 20 (...)
- 30 Era nas cidades sul-africanas de Durban e Pietermaritzburg que os transplantes eram supostamente f (...)
49Quando o projecto arrancou, as tensões aumentaram, tendo-se assistido a várias invasões do terreno, o que levou à procura de assistência da polícia por parte dos titulares do projecto avícola. Poucos meses depois, já em finais de 2003, a missionária brasileira começou a espalhar boatos de que o casal, sob o disfarce de um aviário, estava envolvido no desaparecimento de crianças e no tráfico de partes do corpo humano. Estas alegações tomaram uma direcção perturbante quando a missionária falou à imprensa internacional sobre “a situação horrível e de corpos mutilados encontrados nas estradas públicas”.29 Estas acusações saíram reforçadas, porque o ‘casal branco estrangeiro’ tinha, aparentemente, construído uma pista privada no seu terreno, a partir da qual, alegaram alguns dos missionários, aviões descolavam frequentemente para a África do Sul, rota preferencial deste tipo de tráfico.30
- 31 Um dos representantes provinciais do Conselho Islâmico, uma das mais importantes organizações de r (...)
- 32 Deve mencionar‑se que vários sacerdotes e missionários se dissociaram do caso sensacionalista, acu (...)
50Também é importante ter em consideração que a cidade de Nampula marca a transição de uma área essencialmente muçulmana, a zona costeira, com o interior, predominantemente cristão. A luta pela influência ideológica pode também ter desempenhado um papel importante nesta discussão,31 embora a Igreja Católica nunca tenha assumido oficialmente uma posição acerca do alegado tráfico de corpos.32 No entanto, por ignorância ou má vontade, alguns sacerdotes católicos e grande parte da imprensa opuseram-se fortemente ao projecto avícola, assim como às ambições aparentes da missionária para controlar o terreno do projecto, adjacente ao convento, sob disputa.
51A terra estava no centro desta disputa. Como várias pessoas entrevistadas referiram, os 300 hectares tinham sido igualmente prometidos (embora sem que a autorização tivesse sido formalizada) pelo anterior governador à Igreja Católica. Além disso, vários ‘líderes tradicionais’ tinham beneficiados das rendas cobradas aos camponeses que tinham vindo a ocupar vários pedaços de terreno para plantio. Alguns destes camponeses foram chamados como testemunhas pela missionária, pese embora o facto de muitas das pessoas envolvidas no processo serem muçulmanas.
52Resumindo, a desinformação provocada pelos media levou a um total desentendimento da situação, em que diferentes actores desempenharam activamente estratégias políticas para garantir o seu direito ao terreno. Afirmar que alguém está a vender órgãos ou partes do corpo é equivalente a acusá‑lo/a de canibalismo, uma prática que é identificada com a feitiçaria. Uma vez que o feiticeiro tem de ser expulso da comunidade, este foi o objectivo dos camponeses de Nampula, enquanto lutavam para manter os seus terrenos.
53Ou seja, perante o risco de perderem os seus terrenos – fonte de subsistência – estes grupos accionaram mecanismos de defesa assentes em simultâneo no reforço da confiança do grupo, e na produção de acusações às forças externas, pois que “cada tipo de sociedade produz um tipo de responsabilidade, focado para perigos específicos” (Douglas e Wildaskvy, 1982: 7) Em suma, estas acusações podem ser vistas como momentos de (re)construção de uma comunidade ética (Caplan, 2004). A função ideológica desta luta política tem que ser entendida em função das exigências colocadas pela política monocultural do Estado. A exploração dos pesadelos da sociedade, através da feitiçaria, esclarece-nos acerca de como as sociedades funcionam, e acerca do poder e do controlo, da complacência e da resistência, e de como estes são alcançados, não somente dirigidos para o manifesto domínio político. Vários dos sujeitos que participaram nesta luta comunicaram a sua opinião pela manipulação do pior pesadelo da modernidade – o recurso a práticas incompreensíveis, consideradas como restos de uma fase ‘tradicional’ e de pré-civilização.
54Este movimento de base popular, com várias conotações e cambiantes políticos, utilizou as acusações de feitiçaria como uma forma de violência contra os seus inimigos políticos. De facto, os residentes de Nampula, em conjunto com as missionárias brasileiras, produziram uma vaga de suspeitas em relação às realizações do Estado, originando pânicos quanto ao possível envolvimento de agentes da polícia estatal e de outros actores do Estado na organização deste comércio ilegal. Num certo sentido, foi uma forma de acção política popular, orientada para promover o despontar de uma nova ordem democrática, procurando igualar a distribuição dos rendimentos e da riqueza, ou ainda defender o ideal de solidariedade dentro das comunidades.
- 33 O governo moçambicano já tinha, em 2000, reconhecido a existência de tráfico de órgãos humanos no (...)
- 34 “Há extracção de órgãos para efeitos de feitiçaria” (Jornal Notícias, 16 de Março de 2004).
- 35 Jornal Savana, de 19 de Março de 2004.
55Simultaneamente, não devemos esquecer que alguns corpos foram encontrados em diversas áreas da província de Nampula, o que sugere que uma só explicação não é suficiente. Na verdade, têm vindo a acontecer homicídios e rituais de mutilações em vários locais do país.33 Como resultado das investigações feitas no país, o então ministro do Interior confirmou a presença das práticas de feitiçaria que envolvem partes do corpo humano,34 facto que provocou uma grande onda de repúdio por parte dos médicos tradicionais moçambicanos.35
56A persistência da violência epistémica, quando os corpos e os contextos são inscritos repetidamente na lógica científica moderna, não ajuda a resolver a violência inscrita naqueles corpos. A possibilidade de vários dos cidadãos de Nampula terem sido mortos para que os seus órgãos pudessem ser utilizados em transplantes não foi confirmada (Procuradoria-Geral da República, 2004). A maioria dos órgãos retirados de pessoas assassinadas não é ainda utilizada em transplantes, como é o caso dos órgãos genitais, língua, mãos, etc. Além disso, as secções dos órgãos para serem transplantados foram feitas usando facas vulgares, tendo estas acções sido realizadas num celeiro, e os órgãos utilizados para estes fins preservados num frigorífico doméstico, entre legumes. Por último, os registos do controlo de tráfego do aeroporto não revelarem quaisquer provas acerca de aviões adicionais que tenham aterrado na área para levar os possíveis órgãos.
57Os médicos entrevistados confirmaram o que os seus pares tinham afirmado: a impossibilidade de fazer transplantes em Nampula; os advogados envolvidos na disputa não conseguiram que as acusações fizessem sentido, uma vez que as práticas de feitiçaria não são consideradas no discurso jurídico moderno; os jornalistas internacionais só puderam publicar as representações que ‘faziam sentido’ para eles. Agindo desta forma, todos contribuíram, de algum modo, para reintroduzir a representação colonial de Moçambique como um espaço de desordem, incapacidade e perigos, a ser organizado e salvo pelo espírito da civilização ocidental.
58Na feitiçaria, o corpo torna-se uma arena política, uma extensão dos conflitos que perturbam a sociedade. O corpo intruso torna-se numa extensão da estranheza da agressão, inicialmente personificada pelos colonialistas europeus e, mais tarde, num contexto pós-colonial, pelas intervenções económicas e políticas estrangeiras (extra-locais ou internacionais). O meio, agora habitado por novas influências, novos objectos, se desprotegido, revela‑se impotente para lidar com estas invasões. Em suma, é metáfora de uma preocupação com as fronteiras sociais e com a integridade da cultura comunitária.
59As reflexões sobre as qualidades erosivas do dinheiro e da produção de mercadoria ajudam a interpretar estas realidades (Taussig, 1980; Snodgrass, 2002; West, 2005). Trabalhos mais recentes têm vindo a pôr de parte o estereótipo que define as ‘sociedades tradicionais’ como sendo resistentes à economia de mercado. O pensamento dominante é que a monetarização agrava as frustrações e os desejos das pessoas, tornando muitas mercadorias teoricamente acessíveis mas, na prática, inatingíveis (Parry e Bloch, 1989). A monetarização tende a aumentar o nível das diferenças de riqueza entre os membros de uma comunidade, face à diferença de oportunidades de vida. Mas esta mesma monetarização também permite que as pessoas se afastem das obrigações de ‘nivelamento’, de reciprocidade e redistribuição pressupostas pelas normas de vida na aldeia, ou que recusem essas obrigações.
60Os boatos acerca do alegado tráfico de órgãos para feitiçaria devem ser analisados no amplo contexto da abertura neoliberal política e económica moçambicana. Como escreveram Jean e John L. Comaroff, “os feiticeiros incorporam todas as contradições da experiência da própria modernidade” (1991: xxxix). Neste sentido, importa ampliar a pesquisa sobre o papel que a feitiçaria desempenha nas políticas locais no Moçambique contemporâneo. Nampula emerge, assim, como um exemplo de muitas cidades do Sul global, onde, durante a longue durée, os moradores das cidades aprendem a produzir múltiplos, por vezes contraditórios, paradigmas culturais – ou ainda a lidar com perspectivas culturais múltiplas – como forma de fazer sentido do mundo que habitam. A mudança da aparente hegemonia da racionalidade moderna para a compreensão de um cenário em que os argumentos são apresentados inscritos culturalmente e codificados normativamente faz-nos lembrar que os encontros culturais têm dimensões não apenas políticas, mas também epistemológicas. Ambas essas dimensões convergem, enquanto lutam para conseguir aquilo a que Ngugi wa Thiong’o (1986) poeticamente chama descolonização da mente.
61Contrastando com o discurso da modernização socialista, ou do desenvolvimento estrutural contemporâneo, com as suas promessas de instituições económicas, políticas e sociais, perfeitamente estruturadas e racionalizadas, o contexto social de feitiçaria alerta os moçambicanos para a fina linha que separa o poder socialmente construtivo e o poder que produz rupturas sociais e ruína. Dentro deste sistema, o terreno do poder está em constante mudança e os actores que nele se movem estão permanentemente sob escrutínio e avaliação social. Nenhuma declaração é aceite como definitiva, nenhuma sentença vista como final. Neste sentido, as novas forças económicas e sociais – quer no âmbito dos agregados familiares, quer junto das famílias alargadas ou das dinâmicas comunitárias – são percebidas como potenciando tensões e hostilidades no seio dos grupos, tornando-se estes agentes de mudança suspeitos de não só causar, mas também beneficiar dos problemas e aflições dos outros.
62As políticas socioeconómicas e sociopolíticas em vigor desde meados de 1980 produziram níveis elevados de instabilidade política e económica. No país, o desemprego alastrou, tornando-se numa condição crónica. Os duros eventos climáticos (secas e inundações) que têm fustigado o país têm fomentado o êxodo rural, com o consequente aumento da busca de oportunidades nas áreas urbanas. O conflito político entre os dois principais partidos políticos (Frelimo e Renamo), juntamente com o aumento do nível dos crimes de propriedade causado pelas más condições económicas, deixou nas pessoas uma forte sensação de vulnerabilidade.
63Os estudos realizados permitiram atestar como os estudos antropológicos coloniais usaram a feitiçaria para estigmatizar, classificar, e distanciar África da Europa; todavia poucos são as investigações quer acerca do modo como o governo colonial usou estas concepções locais para organizar ataques concretos às crenças africanas no plano local, quer sobre as formas como os africanos interpretaram, participaram e resistiram a tais esquemas.
64Nos dias de hoje, a linguagem da feitiçaria é utilizada como uma forma persuasiva para explicar as doenças, infortúnios ou até mesmo a morte, relacionando estes acontecimentos com padrões de inveja e desconfiança entre as pessoas. Ou seja, a feitiçaria enquadra e codifica situações de infortúnio – que procuram desesperadamente explicações persuasivas – como componentes políticas da esfera pública, problematizando a separação entre o público e o privado.
65As ideias acerca de forças espirituais (entendidas aqui como sendo tanto benevolentes, como maléficas, capazes de curar ou de destruir – Meneses, 2004a, 2004b), não resultam mecanicamente de um velho e imutável stock de crenças antigas. O conhecimento contemporâneo em circulação nas distintas regiões do país liga, de forma criativa, diferentes esferas de poderes, constantemente acumuladas: rituais locais, tradições muçulmanas, tradições cristãs, cultura ocidental material, ciência, cultos transnacionais. A fusão e a interpenetração destes diversos repertórios alertam para a flexibilidade das crenças locais e a sua capacidade de se articularem com elementos ‘modernos’ estrangeiros.
66Em vez de abarcar um conjunto de ‘universais abstractos’, o desafio consiste em abarcar os momentos específicos da diversidade epistémica. É uma posição que apela a pensar de forma diferente a diferença. O poder ‘oculto’ da feitiçaria está associado à fragilidade física, ao risco, uma dimensão essencial da política contemporânea. Redutos políticos ou étnicos são frequentemente vistos como recipientes geográficos de forças ‘ocultas’. No entanto, a ligação entre feitiçaria, identidades colectivas e territórios sagrados, não é sinónimo da restrição da política a um espaço físico protegido e estabilizado. Cada região pode, até certo ponto, ser redesenhada, incorporada ou ampliada, de acordo com as relações políticas de poder dominantes (West, 2005). Chamar a atenção para estes padrões pode ajudar a entender a disseminação da política em Moçambique, sobretudo em tempos de crise.
67Com a intensificação dos processos de monetarização económica associados à fragilização das comunidades rurais, a feitiçaria conheceu transformações, passando a ser entendida menos como um instrumento de ajustamento social e mais como uma ferramenta de intervenção competitiva (e muitas vezes destrutiva), atraindo dependentes contra a sua vontade ou capturando a vitalidade espiritual e material dos rivais. O risco e o perigo gerados por situações desconhecidas e, por isso, não controláveis, reforçam, de modo involuntário, ideologias locais que ligam o poder ao exercício de acções sobrenaturais, ocultas e maléficas.
68A (re)invenção do selvagem como alteridade do Ocidente aponta para uma imagem ao espelho, na qual se reflecte a auto-imagem concreta, ainda que invertida, da ‘missão civilizadora’ da intervenção colonial. As múltiplas tentativas de criminalização das crenças locais (Meneses, 2000) atingiram o cerne das ordens sociais e morais africanas. No entanto, através de lutas diárias com a morte, desastres, e contra a discriminação, os Moçambicanos esforçam-se a resistir, apropriar e mudar o sistema ideológico monocultural que quer o Estado colonial, quer o Estado contemporâneo, têm procurado impor.
69Hoje em dia, a circulação de ideias e de artefactos das redes mundiais (media, circulação de mercadorias, cultura impressa e visual, religiões estrangeiras), fornece novos recursos para as percepções populares e (re)configurações do espaço político. Desde o século XX que a reconfiguração dos repertórios do poder sagrado tem estado estrategicamente ligada à cultura popular local e à liderança mágica. As actuais percepções populares locais da globalização neoliberal, combinadas com um aumento da circulação de pessoas e bens, e com o agravamento da situação de debilidade económica, alimentam continuamente as ‘outras’ explicações sobre a situação; os seja, a circulação de boatos acerca da exploração humana pelos poderes invisíveis, ou ainda sobre o receio quanto a mercadorias tidas como tendo feitiços maléficos, tal como é o caso do alegado tráfico de órgãos humanos no Norte de Moçambique.
70As manipulações das acusações de feitiçaria, no terreno, correspondem a respostas locais à globalização neoliberal. Representam um aspecto da ligação íntima entre a feitiçaria e a modernidade, entre a África e o ‘resto (do mundo)’. Porém, se a ideia da feitiçaria como forma de intimidação é útil para compreender algumas das práticas alegadas do tráfico de órgãos, não deve ser usada para legitimar e defender, em nome da diferença cultural, estas práticas.
71O feiticeiro procura fintar as normas sociais, da mesma forma que o fazem outros actores políticos. Qualquer um pode, pois, ser sujeito a uma acusação de feitiçaria. Este tema é, quiçá, o mais poderoso foco de conflitos nas comunidades locais, reflectindo a potencialidade latente desta exteriorização do risco, manifestação das tensões presentes na sociedade. A vida das pessoas de Nampula, bem como da maioria da população moçambicana, é bastante incerta e difícil, a crise está instalada na sociedade. O desemprego generalizado, a alta incidência de violência (incluindo uma elevada ocorrência de assaltos), a prevalência de várias epidemias e a sensação da falta de pertença são referências comuns. As reformas governamentais, económicas e políticas, em curso desde a década de 1980, têm produzido o agravar dos desníveis sociais; em paralelo, o rápido processo de urbanização conduz à falta de recursos e de espaço. A luta por novas posições económicas e sociais por parte dos mais pobres e dos sectores mais marginalizados da sociedade moçambicana, em contextos sociais e económicos mutáveis e incertos, é uma das principais causas para as várias formas de violência observadas no país.
72Neste sentido, as acusações de feitiçaria são frequentemente dirigidas a pessoas cujo prestígio e proeminência social tem estado a ser reforçado através das suas participações na ‘nova’ economia: práticas comerciais, economia informal e administração governamental. Em Nampula, aqueles que são bem sucedidos nos negócios, que têm poder, ligações ao Estado e/ou partidos políticos ou ganham salários altos, são os mais susceptíveis à inveja e à suspeita de feitiçaria. A feitiçaria actua como um espelho, reflectindo e alargando as desigualdades e os conflitos que as novas condições económicas e sociais trazem. Aqui, as acusações de feitiçaria são feitas aos funcionários do governo, aos empresários. Estes são vistos como os novos portadores do mal, e a sua aliança a fontes económicas externas e de produção de mercadoria interpretada como sendo a fonte do poder do mal.
73A feitiçaria aqui não se assume como sendo uma continuação do ‘tradicional’, uma superstição arcaica que teimosamente perdura e que estará destinada a desaparecer com a penetração da ciência e do desenvolvimento. Pelo contrário, estes encontros, repletos de enganos, produzem choques geradores e amplificadores de novas acusações e interpretações da feitiçaria, novas narrativas sobre o mal.
74A avaliação das várias denúncias do alegado tráfico de partes do corpo sugere que essas acusações são um aviso de uma eventual sanção para todas aquelas pessoas envolvidas em relações que os membros da comunidade definem como anti-sociais ou desviantes; ou seja, cujo comportamento é visto como sendo violento, nefasto para a comunidade: numa frase, é um alerta frente a potenciais perigos que a comunidade local deve procurar resolver. Esta ameaça implícita induz medo e ansiedade; simultaneamente, estas acusações são um recurso activo para afastar os agentes de opressão, porque a suspeita de se ser feiticeiro vai marcar o comportamento durante toda a vida dessa pessoa. Os considerados culpados são excluídos da comunidade ética e punidos. Neste sentido, procurar compreender estas suspeitas e acusações passa pela recolocação de questões centrais sobre o que é o conhecimento e o risco, sobre o que se considera ser um regime de verdade (e, neste contexto, quem o pronuncia e faz o quê, quando e como). As comunidades recorrem a boatos e insinuações para criticar os ricos e os potencialmente problemáticos recém-chegados, sem condenar a própria riqueza, expressando a sua frustração e esperança numa sobreposição apreensiva para com os outros.
75As mudanças nos domínios sociais, políticos e económicos parecem redundar numa caça feroz aos traidores, aos feiticeiros ou bodes expiatórios, como forma de ultrapassar a incerteza e de restaurar a ordem; todavia, na procura de sentidos que justifiquem a sua existência como seres sociais; é também importante analisar os contextos em que estas acusações e boatos ocorrem, evitando transformar estas explicações – ou seja, os contextos culturais, em álibis que justificam a persistência destas acusações.
76Como Nancy Scheper-Hughes (2000) aponta, os boatos de rapto e roubo de partes do corpo servem para despertar nas camadas sociais mais pobres e fragilizadas alertas para o estado em que vivem. Neste sentido, as ideias sobre a feitiçaria e lendas urbanas não são apenas metáforas que revelam ideias de exploração e embuste; pelo contrário, emergem das experiências quotidianas das pessoas – e dos seus encontros regulares com o risco, o perigo e a morte. O caso de tráfico de órgãos em Moçambique sugere que estas acusações actuam como mecanismos rituais que concorrem para o reavivar periódico de sentimentos colectivos, enquanto, simultaneamente, actuam como um mecanismo de renovação de sentimentos éticos comuns, redefinindo os contornos da realidade social. Alguns dos crimes denunciados pelas populações podem ter sido imaginários, mas isso torna-se irrelevante; o que é crítico é que as pessoas acreditam que estão a limpar a sua sociedade, reafirmando os objectivos políticos despoletados pelo sentido ético. Num complexo ambiente cultural de violência constante, no qual a história, a memória e o boato se encontram enredados, e em que a comunicação boca a boca liga as pessoas contra as forças adversárias, em contextos altamente politizados, a força das acusações pode ser, simultaneamente, uma força de mobilização e resistência. É a não compreensão das práticas políticas locais que dá origem aos boatos de tráfico de corpos, relacionados com a circulação globalizada de tais problemas.
77Os moçambicanos de Nampula recearam perder as suas terras, as suas fontes de rendimento. A hostilidade e o pânico gerados encontraram expressão nas suspeitas levantadas quanto aos intentos dos estrangeiros (brancos). As acusações de feitiçaria foram interpretadas pela missionária brasileira como uma parte do contrabando global de órgãos humanos.
78Os ganhos políticos da comunidade – o poder político através das acusações da prática de comportamentos (i)legais – intimidam aqueles que poderiam opor‑se a eles. Como resultado, o casal estrangeiro abandonou a região pouco tempo depois, desistindo aparentemente do projecto. A propagação dos boatos e de acusações estabelece os desejos almejados pela comunidade, expondo as relações de poder presentes. Numa escala mais ampla, pode definir o relacionamento da comunidade com o do Estado moçambicano, considerado injusto e, por isso, como devendo ser desafiado.
79Em Moçambique, as lutas contemporâneas, que manipulam várias forças, incluindo a circulação dos boatos, empréstimos e traduções de artefactos, ideias e ansiedades, têm persistentemente reconfigurado e enriquecido repertórios e estratégias locais. No entanto, importa reflectir sobre o que é que torna essas dinâmicas específicas e originais neste espaço e tempo particulares, indagando sobre a importância das interpretações produzidas nas distintas redes de comunicação e associações sobre a relação entre a feitiçaria e as políticas locais, regionais, nacionais e globais. Ao fazê-lo, alarga-se a compreensão (e não necessariamente a aceitação) da complexa natureza de ‘matriz moral’ da política desta região, proporcionando novas pistas acerca da história do poder local e da acumulação de conhecimentos. As políticas da feitiçaria ‘moderna’ proporcionam também um novo ângulo de estudo sobre a natureza moderna da etnicidade e das identidades sociais contemporâneas em Moçambique.
80A intervenção moderna em Moçambique continua a assombrar o cenário político contemporâneo, conferindo sentidos e formas diferentes aos conflitos institucionais. A tensão entre os processos internos de transformação do Estado, e a reacção das comunidades a exigir que o Estado faça algo de significativo para eles, tem produzido novas estruturas de controlo social, as quais, longe de serem unicamente símbolo de uma ruptura com a situação colonial, podem ser analisadas como uma continuidade do passado: a (re)invenção de uma cultura tradicional que se alimenta, também, da modernidade.
81Alguns dos problemas relativamente à interpretação da natureza dos conflitos sociais actuais do país são um reflexo da complexidade do carácter dos encontros entre as ideologias políticas extra-locais (nacionais, regionais, globais) e os imaginários locais do poder; uma análise cuidadosa, situada e multifacetada das circunstâncias que geram estas acusações é crucial para melhor se compreender a luta pelo poder, no âmbito da qual distintas formas de conhecimento concorrem para imporem as suas estruturas de sentido.
82No caso de Nampula, o discurso sobre o poder da feitiçaria é, claramente, uma crítica à riqueza e à ostentação, uma ameaça contra qualquer ataque possível à ética económica duma comunidade. Tais críticas podem ter, inclusive, um efeito nivelador, quando a própria feitiçaria é desafiada como uma forma de diferenciação social. Na verdade, os discursos de feitiçaria suprimem‑se em simultâneo. As pessoas podem facilmente sugerir, recorrendo à gramática da feitiçaria, que a riqueza e o poder de determinados indivíduos foram alvo de feiticeiros ambiciosos, desejosos de arruinar qualquer projecto individual que passe pela melhoria – e consequente diferenciação – das condições de vida. Mas esta acção invejosa de um feiticeiro – e o seu efeito de nivelamento – presumem necessariamente processos de diferenciação social, onde os ‘que têm’ se transformam em vítimas de crimes ocultos.
83De qualquer forma, a gramática da feitiçaria é um fenómeno distinto da própria feitiçaria, embora intimamente ligado a ela. Revelando, momentaneamente, um domínio normalmente entendido como sendo oculto, falar de feitiçaria significa apontar fenómenos supostamente visíveis que, de facto, permanecem invisíveis, como a inveja e o sentimento de insegurança.
84Os discursos que dizem respeito à feitiçaria não são anti-modernidade; pelo contrário, constituem reflexos de uma luta constante por uma vida melhor, para um sentido mais amplo de saúde e bem-estar que inclui ‘paz social’ e a possibilidade de controlar e manejar os riscos produzidos pela modernidade. Porque o bem-estar da comunidade é um sistema aberto, apenas formalmente delimitado na sua prática, as possibilidades de explicação para os problemas são inúmeras, tornando possível a interacção antropofágica entre diferentes elementos. Neste sentido, as acusações de feitiçaria, longe de reforçarem um sentido alternativo, inteiramente diferente, de resolução de conflitos, constituem um discurso que diz respeito aos problemas que afectam a família, a comunidade e a sociedade.
- 36 A descolonialidade dos seres e dos conhecimentos é uma condição necessária para captar a essência (...)
85O caso discutido neste artigo chama claramente a atenção para a possibilidade de um cosmopolitismo ‘marginal’, subalterno, mas extraordinariamente imaginativo quanto ao poder.36 O mundo contemporâneo, multicentrado, com inúmeros momentos vernáculos e de implantação e reforço étnico, marca a possibilidade de abertura à diferença cultural e à possibilidade do cruzamento de inúmeras variantes de consciência cívica e de sentidos de responsabilidade moral, ultrapassando a dicotomia local/universal. Isso coloca a questão de saber se o local, o provinciano, o enraizamento, o culturalmente específico e o demótico podem coexistir com o translocal, transnacional, transcendente, elitista, iluminista, universal e moderno Norte global. Na verdade, a questão é frequentemente invertida, quando se suscita a questão da possibilidade de haver um cosmopolitismo normativo iluminado que, em última análise, não esteja enraizado localmente e culturalmente em comprometidas lealdades e conhecimento.
86A exploração dos cosmopolitismos marginais, activos na sua diversidade, é exemplo, em contextos pós-coloniais, de uma linha de pesquisa acerca da dignidade, dos direitos culturais e de uma ampla regra de direito, que inclui o direito à justiça cognitiva, a partir de um cruzamento de racionalidades (Bhabha, 1996; Masolo, 2003; Santos, 2006b, 2006c). Neste contexto, uma prática académica pós‑colonial deverá originar de um empenho construtivo com o papel do poder na formação das identidades e das subjectividades, bem como do relacionamento entre os saberes e as práticas políticas.
87Nampula representa um palimpsesto de culturas, uma ‘zona de contacto’ que é suporte para o exercício da tradução, com o objectivo de identificar, explicar e avaliar o que é comum na diversidade (Santos, 2006c). A ‘zona de contacto’ representa o esforço humano para construir comunidades baseadas em memórias e experiências de diferentes pessoas. Apesar de terem pontos de referência diferentes, nestas zonas de contacto as pessoas repartem saberes, o que implica a possibilidade de haver pontos comuns e contemporâneos, onde os horizontes das memórias e experiências se sobrepõem e a interpretação tem lugar. Estes horizontes permitem a coexistência e comunicação da/na diferença; longe de ser unicamente um factor de fragmentação e isolamento, esta diversidade é também uma condição de partilha e solidariedade. Esse processo afasta-se da certeza cartesiana, já que nele existe, normalmente, um razoável questionamento epistemológico, a incerteza e a ignorância. A tradução de saberes e experiências desvenda novas formas de pensar o conhecimento, gerando novas formas de acomodar a diversidade do saber da humanidade. Na senda da proposta avançada por Boaventura de Sousa Santos (2006c), processos equivalentes podem gerar semelhanças, as quais são vitais para qualquer interpretação, como forma de alargar e aprofundar o diálogo intercultural entre formas e processos de conhecimento. A identificação e a interpretação de processos semelhantes e contemporâneos é um momento-chave do processo de intercomunicação, que tornará possível detectar fenómenos esquecidos, subalternizados ao analisar a similitude destas memórias e experiências. Em suma, as epistemologias dos Sul, como Boaventura de Sousa Santos propõe, reclamam o recuperar máximo das experiências de conhecimentos do mundo, alargando o espaço de produção de conhecimentos e de modos de pensar, instaurando a própria possibilidade de falar com – em vez de falar sobre – outros mundos e saberes.