- 1 A investigação que serviu de base a este artigo foi realizada no quadro do projecto “Biografias (...)
1Ao longo das últimas três décadas, o projecto da epistemologia tem vindo a ser objecto de crítica e de uma transformação que culminou, recentemente, no aparecimento de propostas de rejeição desse projecto e da reivindicação a ele associada da capacidade de definição dos critérios que permitem estabelecer o que é e não é conhecimento e como este pode ser validado. Essa transformação passou, sucessivamente, pela transferência da soberania epistémica para o “social”, pela redescoberta da ontologia e pela atenção à normatividade constitutiva e às implicações políticas do conhecimento.
2Para alguns, estaríamos perante uma “crise final” da epistemologia ou, pelo menos, perante a sua “naturalização” ou historicização definitiva, libertando-a da pretensão de se estabelecer como o lugar de determinação do que conta e não conta como conhecimento e da definição dos critérios que permitem distinguir e adjudicar a verdade e o erro. Ao mesmo tempo, contudo, foi ganhando contornos uma constelação de posições críticas da epistemologia que, mais do que promover e celebrar a sua dissolução, viria a reivindicar a necessidade de uma epistemologia radicada nas experiências do Sul global. É na obra recente de Boaventura de Sousa Santos – que nos ofereceu algumas das mais pertinentes e avançadas reflexões críticas sobre a longa crise da epistemologia enquanto projecto normativo associado à ciência moderna –, que vamos encontrar a formulação mais radical e, ao mesmo tempo, mais consistente de um “pensamento alternativo de alternativas” neste domínio. Trata-se de um projecto que, como procuro argumentar mais adiante, vai mais além das críticas da epistemologia que abriram caminho ao actual ambiente intelectual “pós-epistemológico”, refundando radicalmente a própria noção de epistemologia no quadro do que o autor designa como “pensamento pós‑abissal”.
3Neste artigo, e num primeiro momento, são discutidos os rumos da crítica da epistemologia enquanto projecto indissociável desse fenómeno histórico que é a ciência moderna e que conduziram, em anos recentes, às posições que postulam o abandono ou reconfiguração da reflexão epistemológica a partir de um debate centrado nas ciências e nas suas práticas. Na segunda parte, proponho algumas pontes possíveis entre essa crítica e a proposta, avançada por Boaventura de Sousa Santos, de uma epistemologia do Sul. Essas pontes passam por revisitar uma corrente filosófica que exerceu, umas vezes de forma explícita, outras de maneira menos visível mas não menos importante, uma influência decisiva nas diferentes correntes críticas da epistemologia. Essa corrente é o pragmatismo. A proposta de Santos configura, explicitamente, um pragmatismo epistemológico, que apresenta continuidades, mas também importantes elementos de inovação em relação ao pragmatismo clássico e à sua descendência.
4A terceira parte situa essa proposta dentro do projecto de uma crítica mais geral do pensamento associado à modernidade ocidental como pensamento abissal – e, em particular, da sua reflexão sobre os limites da crítica interna do projecto da modernidade, incluindo essa sua componente central que é a ciência – e do processo de construção do que o mesmo autor designa como pensamento alternativo de alternativas, um pensamento não abissal (Santos, 2007b). A proposta de Santos assenta numa afirmação positiva da diversidade dos saberes existentes no mundo. A caracterização dos diferentes saberes e modos de conhecer e a definição das condições da sua validação passam, nesta concepção, por um caminho que recusa a ambição legislativa da epistemologia e a possibilidade de qualquer forma de soberania epistémica. A dupla referência à epistemologia e ao pragmatismo e a sua associação às experiências dos oprimidos no mundo em que vivem constitui, simultaneamente, uma ponte possível com a crítica da epistemologia enquanto projecto filosófico e uma ruptura com os pressupostos e condições dessa crítica. Torna-se possível, assim, uma dupla operação de “resgate” da epistemologia. Por um lado, esta deixa de estar confinada à reflexão sobre os saberes científicos ou centrada nela – mesmo se essa reflexão passa por uma viragem “naturalista”, que a torna indissociável da investigação sobre as práticas, a produção de objectos e de enunciados, a sua circulação e validação, que definem os modos de existência dos saberes científicos. A epistemologia passa a abranger explicitamente todos os saberes – deixando de os tratar apenas através da sua relação com os saberes científicos – e procura estabelecer as condições da sua produção e validação, indissociáveis de uma hierarquização incompatível com qualquer forma de soberania epistémica, mas também com um relativismo que, em nome da afirmação da igual dignidade e valor de todos os saberes, acaba por ignorar as consequências e as implicações desses saberes, os seus efeitos sobre o mundo. A epistemologia do Sul, enquanto projecto, significa, ao mesmo tempo, uma descontinuidade radical com o projecto moderno da epistemologia e uma reconstrução da reflexão sobre os saberes que, como veremos, torna reconhecíveis os limites das críticas da epistemologia tal como elas têm emergido num quadro ainda condicionado pela ciência moderna como referência para a crítica de todos os saberes.
5O propósito deste ensaio não é o de propor uma genealogia desse “outro” pragmatismo, mas o de, explorando o pragmatismo como “atractor”, contribuir para o programa de pesquisa esboçado por Santos a partir da sua concepção da oposição entre pensamento abissal e pós-abissal, em particular quando sublinha a impossibilidade de reconhecer os limites das críticas à epistemologia no quadro de um pensamento abissal. Mais precisamente, procura-se identificar um possível espaço de diálogo entre epistemologia do Sul e crítica (“naturalista”, feminista, pós-colonial, epistemográfica, epistópica ou pragmatista) da epistemologia.
- 2 Veja-se o caso exemplar de Nils Bohr, que designou a sua reflexão como “filosofia-física”. Veja‑ (...)
6A epistemologia enquanto projecto filosófico é indissociável da emergência e consolidação da ciência moderna. Se a sua pretensão era constituir‑se numa teoria do conhecimento, ela acabaria por se tornar um projecto paradoxal. Por um lado, a epistemologia pretendeu identificar um lugar exterior a todas as formas de conhecimento e de práticas de produção de conhecimento que permitisse avaliá-las de maneira independente através da adjudicação da sua capacidade de estabelecer a distinção entre a verdade e o erro, mas também de definir os critérios de distinção entre enunciados verdadeiros e falsos. Recorrendo a uma analogia com a reflexão filosófica sobre o poder, Joseph Rouse (1996) designou esta posição como “soberania epistémica”. Ao mesmo tempo que postulava a soberania epistémica, porém, a epistemologia tomava como modelo uma das formas de conhecimento que se propunha avaliar, a ciência. De teoria do conhecimento, a epistemologia convertia-se, assim, em teoria do conhecimento científico. Além disso, e desde muito cedo, a epistemologia, especialmente nas suas versões convencionais, empiristas, positivistas ou realistas, chocou com a constatação perturbadora de que, apesar das suas pretensões normativas, os seus enunciados eram – salvo em situações muito particulares, ligadas às exigências de defesa pública da ciência –, raramente invocados pelos cientistas. Mais: eles pareciam muitas vezes irrelevantes para dar conta das práticas de produção do conhecimento científico. Não será surpreendente, por isso, que se tenha desenvolvido, ao longo, sobretudo, do século XX, uma tradição de reflexão própria e autónoma de cientistas trabalhando em diferentes disciplinas sobre a sua própria prática e sobre as respectivas implicações epistemológicas.2
- 3 Etnometodólogos como Michael Lynch propuseram a expressão “epistópicos” para designar o estudo d (...)
7Mas foi durante as últimas décadas do século XX que esta epistemologia “imanente” se expandiu, num processo que constituiu o tema principal de Um discurso sobre as ciências, de Boaventura de Sousa Santos (1987). Esse fenómeno não deixou de ter influência no processo paralelo que veio a ser designado de “naturalização” e historicização da epistemologia. Na sua origem, está a assunção da crítica de que as condições de produção e validação do conhecimento só poderiam ser determinadas de maneira adequada a partir de um conhecimento das próprias práticas de produção e validação de conhecimentos. Esse processo apresentou duas vertentes principais. A primeira consistiu na decomposição da filosofia da ciência e do conhecimento em filosofias especializadas, ligadas a disciplinas ou áreas de conhecimento específicas e elaboradas em relação estreita com as práticas e debates nas disciplinas a que se referiam. Um critério central aqui para avaliar os enunciados filosóficos passou a ser a compatibilidade destes com os enunciados produzidos pelas práticas científicas. Um exemplo especialmente interessante desta orientação é o da filosofia da biologia (Callebaut, 1993). A segunda vertente levou ao desenvolvimento de orientações sociológicas e históricas no estudo dos temas e conceitos da epistemologia. A “epistemografia”, como lhe chamou o historiador Peter Dear (2001), procurava assim examinar, através de estudos ancorados empiricamente, a génese e transformação desses temas e conceitos através da sua realização prática em actividades de produção de conhecimento científico e nos debates e controvérsias através dos quais esse conhecimento era validado.3
- 4 Ao longo do século XX, foram várias as tentativas de problematizar as fronteiras entre a ciência (...)
8Os estudos sociais da ciência, tanto nas diferentes versões da sociologia do conhecimento científico como no conjunto de correntes que Peter Taylor (2008) designa por “construção heterogénea”, produziram, ao longo de quase trinta anos, um impressionante conjunto de trabalhos que forneceram uma importante base empírica e contribuições relevantes para as filosofias “naturalizadas” das ciências. A inflexão da reflexão epistemológica foi acompanhada por uma visibilidade crescente das epistemologias adjectivadas de construcionistas ou construtivistas, correspondendo a uma deslocação da soberania epistémica para o social (definido de maneiras diferentes por correntes diversas). A história das ciências inspirada pela sociologia do conhecimento científico, por sua vez, mostrou a impossibilidade de definição de critérios de avaliação e validação do conhecimento que não estivessem ancorados em situações e contextos históricos particulares. Conceitos como os de verdade e erro, objectividade e subjectividade, observar e experimentar, descrever e explicar, medir e calcular, passaram, assim, a ter significados e utilizações variáveis, conforme os contextos. Uma consequência importante deste tipo de estudos foi a demonstração de que a produção de conhecimento científico envolve um conjunto de actores, de saberes e de contextos distintos, e que a fronteira que separa a ciência dos seus “outros” (senso comum, saberes locais ou práticos, saberes indígenas, crenças, incluindo crenças religiosas, filosofia e humanidades) obriga a um trabalho de demarcação (boundary work) permanente e a um esforço de institucionalização das diferenças entre ciência e opinião, ciência e política ou ciência e religião (Gieryn, 1999). A demarcação entre ciência e não-ciência é, assim, um processo marcado pela contingência, e não uma separação estabelecida de uma vez por todas a partir de critérios “soberanos”.4
- 5 Veja-se Schiebinger (1999), para uma caracterização e discussão das relações entre o feminismo, (...)
9Neste processo, deve ser realçada a contribuição da crítica feminista, tanto a que surgiu no interior das próprias disciplinas científicas como a que foi desenvolvida no âmbito da filosofia, da história e dos estudos sociais da ciência. Essa crítica permitiu identificar o que ficaria conhecido, num primeiro momento, como as distorções masculinistas tanto da epistemologia como das próprias teorias e conhecimentos substantivos produzidos por diferentes disciplinas. Foi, sobretudo, na biologia e na medicina que essa influência foi mais visível, inicialmente.5 Mas as contribuições da crítica feminista viriam a ser muito mais amplas, tanto em termos disciplinares (alargando-se à física, à engenharia, à primatologia ou às ciência sociais) como, sobretudo, através de reflexões mais alargadas sobre as condições de produção do conhecimento, propondo conceitos como os de objectividade forte e epistemologia posicionada (Harding, 2004), conhecimento situado (Haraway, 1991), conhecimento social (Longino, 1990) ou a indissociabilidade do conhecimento e da normatividade (Longino, 1990, 2002; Clough, 2003; Barad, 2007).
10Uma nova inflexão viria a marcar o debate epistemológico durante os anos 90, desta vez ligada ao postulado da centralidade das práticas na compreensão da produção de conhecimento. Esta orientação “praxigráfica” (Mol, 2002) deu origem a um impressionante repertório de trabalhos de investigação centrados nas actividades de cientistas, engenheiros, médicos e outros produtores de saberes científicos e técnicos, ampliando e transformando consideravelmente os primeiros passos dados nesse sentido pelos chamados estudos de laboratório das décadas de 70 e de 80. A inflexão “praxigráfica” teve duas consequências importantes, que se fizeram sentir tanto nos estudos sociais da ciência como na filosofia da ciência. A primeira tem a ver com o debate em torno da noção de “prática” e, em particular, da sua relação com o problema da normatividade da actividade científica. Na linha da reflexão aberta por Stephen Turner, filósofos e cientistas sociais interrogaram-se sobre a forma como as próprias práticas científicas produziam de maneira “imanente” as normas que permitiam avaliá-las e validá-las. O carácter constitutivamente normativo das práticas científicas seria assim defendido por filósofos como Joseph Rouse (2002), com a implicação de que toda a actividade científica produz efeitos ou consequências que tornam o/a cientista co-responsável pelas diferenças que essas práticas criam no mundo. Nos estudos sociais da ciência, autores como Annemarie Mol e John Law viriam a cunhar a expressão “política ontológica” para designar essa indissociabilidade das implicações cognitivas, materiais e normativas da actividade científica e, em geral, de todas as formas de produção de conhecimento.
- 6 Veja-se, por exemplo, o debate em torno da “viragem normativa”, aberto pelas reflexões de Collin (...)
- 7 A leitura difractiva, que havia já sido proposta por Donna Haraway (1997, distingue-se da leitur (...)
- 8 Esta orientação “naturalista” tem sido objecto de um outro tipo de crítica, como a de Steve Full (...)
11A orientação “praxigráfica” teve duas consequências importantes. A primeira consistiu em trazer para o centro da reflexão sobre o conhecimento, a sua produção e as suas implicações a questão da normatividade – um tema que viria a ser retomado, sob os vocabulários da ética e da política, em muitas das discussões que ocorreram neste campo ao longo da última década.6A segunda está relacionada com o “regresso” da ontologia como preocupação central da reflexão sobre a ciência e os saberes. Mais do que as condições de produção e validação do conhecimento, essa reflexão parece orientada, sobretudo, para as suas consequências e implicações, para as diferenças que o conhecimento produz no mundo. Daqui até ao postular do abandono ou, pelo menos, da secundarização da reflexão epistemológica. vai um passo, que foi dado, por exemplo, pela filósofa feminista Sharyn Clough (2003). Mais recentemente, autores como Rouse e a física feminista Karen Barad, ainda que perfilhando muitas das críticas avançadas por Clough, têm procurado reconfigurar a relação entre a epistemologia, a ontologia e a ética, relançando o debate sobre a possibilidade de uma “outra” epistemologia. A contribuição de Barad é especialmente interessante pela forma como recupera e amplia o projecto de uma “filosofia-física” de Nils Bohr, no quadro de uma leitura “difractiva” de diferentes contribuições feministas, pós-estruturalistas e dos estudos sobre a ciência.7 A “ética-onto-epistemo-logia” de Barad constitui, provavelmente, a versão mais radical do que pode descrever‑se como a crítica interna do projecto epistemológico (Barad, 2007). O naturalismo defendido por Rouse (2002, 2004), por sua vez, baseia-se em dois postulados, que ele considera indispensáveis a qualquer naturalismo filosófico “robusto”: a) não devem ser impostas restrições filosóficas arbitrárias à ciência; b) devem ser descartados todos os apelos a explicações por forças sobrenaturais ou “misteriosas”. O segundo postulado torna problemática a ampliação de um naturalismo assim concebido a outras práticas de produção de conhecimento para além da ciência. O problema está em determinar o que conta como “sobrenatural” ou “misterioso” num dado modo de conhecimento. Ao pressupor a definição de uma e outra dessas qualificações nos termos definidos pelas ciências, deixaria de ser possível analisar de modo “naturalístico” práticas que invocam explicitamente essas entidades e que as constituem em elementos cruciais às descrições ou explicações do mundo que elas propõem. Deste ponto de vista, as propostas de autores como Bruno Latour (1991, 1996) ou Isabelle Stengers (1997) vão bastante mais longe, ao assumir explicitamente a simetrização das diferentes cosmovisões e modos de conhecimento e ao pressupor a necessidade de interrogar os termos em que eles definem as entidades e processos que existem no mundo.8
12Uma observação atenta destes debates não poderá deixar de notar a contribuição, de outras orientações críticas do projecto da epistemologia e, em particular, das que estão associadas à crítica ao próprio projecto da ciência moderna enquanto projecto eurocêntrico e enquanto parte da dinâmica de colonialidade que marca a relação entre os saberes científicos e outros saberes e modos de conhecimento. Os trabalhos de Sandra Harding são um exemplo de contribuição para o debate “interno” sobre a epistemologia e sobre a ciência moderna apoiada nos estudos pós-coloniais. Mas mesmo neste caso, é notória a dificuldade em sair do quadro eurocêntrico em que o debate se tem desenrolado. Recorde-se, a título de exemplo, que Harding (1998) defende a utilização do termo “ciência” para caracterizar outros modos de conhecimento e valorizá-los perante a desqualificação que deles é promovida pela ciência moderna e eurocêntrica. Ainda que compreensível enquanto parte de uma estratégia de afirmação do valor e da dignidade de outros modos de conhecimento, esta posição pode ter como consequência o reforço da autoridade epistémica da ciência, contribuindo para a sua ampliação, em lugar de problematizar a própria adopção da ciência e do conhecimento científico como padrão para aferir a validade e dignidade de todas as formas de conhecimento. A crítica de Harding mostra, assim, a dificuldade em sair do quadro que o debate epistemológico definiu para a compreensão do que conta como conhecimento. Um balanço desse debate, incluindo as propostas mais radicais de abandono do próprio projecto da epistemologia, torna visíveis os obstáculos a pensar os conhecimentos e a sua produção em termos de uma diversidade que não necessite de um centro, constituído pela ciência.
13Será possível, então, desenhar um projecto que recupere as preocupações que estiveram na origem da epistemologia sem que esse projecto acabe por ficar refém da referência central à ciência moderna enquanto padrão a partir do qual são avaliados e validados outros saberes? Antes de passar à discussão dessa possibilidade e do modo como ela toma forma na proposta de uma epistemologia do Sul, é necessária uma breve incursão por uma tradição filosófica que é explicitamente evocada por esta última, e que teve uma influência importante, ainda que nem sempre explicitamente reconhecida, nos debates atrás mencionados. Essa tradição é a do pragmatismo. Na parte seguinte, é discutida a relevância do pragmatismo para a epistemologia e para a sua crítica.
14O pragmatismo enquanto corrente filosófica é frequentemente caracterizado como a única forma original de filosofia produzida nos Estados Unidos, como resultado do encontro das tradições filosóficas europeias com as condições particulares da experiência da edificação da sociedade norte-americana. O pragmatismo foi a corrente dominante na filosofia americana desde a viragem do século XIX para o século XX, até ter sido destronado, na segunda metade deste, pela filosofia analítica. O conhecimento e a ciência constituem, nas histórias do pragmatismo, um tema central. Os pragmatistas clássicos – Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey – dedicaram muitas páginas à discussão das condições de produção e de validação do conhecimento e, em particular, do conhecimento científico. A ideia de comunidade em Peirce toma mesmo como modelo a comunidade dos produtores de conhecimento científico. James tratou de maneira original a questão da diversidade dos modos de conhecer e da sua relação com a experiência, e Dewey foi talvez, de entre os filósofos pragmatistas, o que mais contribuiu para a reflexão sobre as condições sociais daquilo a que chamava inquiry, o processo de envolvimento activo com o mundo através da construção de conhecimentos e de experiência resultante de actividades colectivas ou, nas palavras do próprio Dewey, as “maneiras de investigar” que dão forma ao “conjunto de estratégias inteligentes para resolver problemas”, sejam estes problemas práticos (associados às múltiplas situações da vida quotidiana, ou teóricos (como os problemas científicos), “de facto” (como descrever uma entidade ou processo) ou “de valor” (o que fazer em determinada situação) (Dewey, 1991a). É em Dewey que encontramos a formulação mais enfática da continuidade entre os diferentes modos de conhecer associados a diferentes formas de experiência colectiva e de vida social.
- 9 Para uma excelente discussão do que pode ser uma epistemologia pragmatista inspirada na obra de (...)
15Conforme os comentadores, é possível ler as contribuições dos pragmatistas para a teoria do conhecimento, seja como uma “anti‑epistemologia”, que postula a impossibilidade de abordar o conhecimento a não ser através das relações mutuamente constitutivas que mantém com a experiência do mundo e com as condições do envolvimento com este no quadro de comunidades, seja como uma corrente que propõe uma visão original da epistemologia. A primeira interpretação é apoiada nas críticas que Dewey dirigiu à epistemologia em diferentes momentos da sua longa e produtiva carreira, desde a sua diatribe contra “essa variedade bem documentada de tétano intelectual chamada epistemologia” (Dewey, 1977) até à denúncia da “indústria epistemológica”, da epistemologia como actividade especulativa e auto-referencial, consistindo na discussão de conceitos sem referência aos processos ocorrendo no mundo e aos sujeitos desses processos (Dewey, 1991b). A segunda interpretação apoia-se no interesse que Dewey nunca deixou de manifestar na elucidação dos processos de produção de conhecimento, da relação entre conhecimento e experiência e de validação do conhecimento e que constituem a matéria central de algumas das suas obras mais importantes, culminando em Logic: The Theory of Inquiry, de 1938.9 Em todo o caso, e a aceitar-se a existência de uma epistemologia pragmatista, esta apresenta características substancialmente diferentes das correntes que dominaram a epistemologia durante grande parte do século XX. De facto, ela levou, em diferentes momentos, a entendimentos opostos do que era o seu projecto. A ideia de que toda a vida social (incluindo a arte, a religião e a política) poderia ser interpretada a partir de um vocabulário “emprestado” da ciência e da epistemologia – e apesar de não ser essa a posição, por exemplo, de Dewey –, acabaria, paradoxalmente, por contribuir para que os defensores autoproclamados da ciência e da racionalidade atirassem Dewey para o lado “errado” da linha epistemológica abissal, e para que os críticos das concepções dominantes da epistemologia o acusassem, por vezes, de “cientismo”.
16Convém recordar brevemente, numa síntese que, inevitavelmente, não faz justiça à riqueza e diversidade interna das posições dos pragmatistas clássicos, os aspectos centrais da filosofia pragmatista, em particular no respeitante ao conhecimento:
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A máxima pragmática (Peirce, 1992: 132) postula que um objecto (ou entidade) pode ser definido pelo conjunto dos seu efeitos, ou seja, por tudo aquilo que ele faz, como diria James, implicando que não tem essência, e que a sua definição pode transformar-se à medida que vão sendo conhecidos novos efeitos.
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Para Dewey, se uma coisa é aquilo que ela faz, o conhecimento resulta de um procedimento experimental – a que chamou inquiry – baseado no que acontece quando interagimos com objectos e entidades no mundo, “a transformação controlada ou directa de uma situação indeterminada numa outra que é tão determinada nas suas distinções e relações constituintes que converte os elementos da situação original num todo unificado”. A situação definida que emerge desta actividade é o resultado de uma operação de transformação dos elementos de uma situação aberta a várias interpretações, mas também a vários futuros, criando o que Dewey chama um novo “universo de experiência” (Dewey, 1991a: 108). O processo de produção de conhecimento, segundo Dewey, ocorre através de actividades colectivas de diferentes tipos, que configuram, no seu conjunto, o que ele designa por “maneiras de investigar” ou “conjunto de estratégias inteligentes para resolver problemas” (Dewey, 1991a, b).
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“Pragmático” significa, segundo o mesmo autor, que as consequências “funcionam […] como testes necessários da validade das proposições desde que essas consequências sejam instituídas de maneira operacional e sejam tais que permitam resolver o problema específico que suscitou essas operações” (Dewey, 1991a: 4).
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A noção de verdade, nesta perspectiva, é associada ao que Dewey definiu como “warranted assertibility”, isto é, como enunciados ou afirmações justificados e sempre susceptíveis de revisão (Dewey, 1991a, b).
- 10 Cf. Santos, 2003-2005.
17Boaventura de Sousa Santos (1989) refere-se ao pragmatismo como uma das principais inspirações da sua crítica à epistemologia convencional. James, Dewey e Bernstein, em particular, aparecem como referências importantes de uma concepção do conhecimento, da sua produção e validação que, como o mesmo autor virá a reafirmar quase duas décadas depois, privilegia as consequências em lugar das causas. O pragmatismo continuará a ser uma presença importante na obra posterior de Santos, e ele reaparece de forma explícita nas suas abordagens da ciência e dos conhecimentos “outros”. Mas a forma que vai assumir a apropriação do pragmatismo nessa obra vai passar por importantes transformações, que o situam num universo categorial distinto do que encontramos em 1989. Ela não pode ser dissociada do encontro com as experiências do Sul, não a partir da imposição de quadros teóricos ou de critérios epistemológicos “importados”, mas de um estilo de investigação e de produção comprometida de conhecimento que vai encontrar a sua expressão mais significativa no projecto “A Reinvenção da Emancipação Social”.10 Todo esse projecto pode ser lido como uma reconstrução radical de um pragmatismo que procura emancipar‑se dos últimos resquícios do projecto da epistemologia convencional – nomeadamente da soberania epistémica –, simetrizando os saberes existentes no mundo e, ao mesmo tempo, ancorando a reflexão sobre eles no seu carácter situado e nas condições locais e situadas da validade de cada um deles, aferidas a partir das suas consequências.
18A realização desse programa depara‑se, contudo, com algumas dificuldades. A avaliação de um dado modo de conhecimento ou de um saber pelas suas consequências implica que existam critérios a partir dos quais essa avaliação possa ser feita. Uma avaliação não é uma mera descrição de consequências. E, se tivermos em conta que o próprio saber sobre os saberes a partir do qual se procura realizar essa avaliação é ele próprio sujeito a condições que têm de ser avaliadas, o imperativo de definir critérios e padrões de avaliação que possam ser objecto de prestação de contas ao grupo ou colectivo envolvido na produção ou uso do conhecimento ou por este afectado torna-se uma condição indispensável para evitar o relativismo. A posição de Santos consiste em tomar como ponto de partida da sua concepção de conhecimento a experiência e o mundo dos oprimidos. Esta posição difere da dos pragmatistas clássicos, na medida em que toma deliberadamente o partido de privilegiar critérios de avaliação dos conhecimentos assentes na defesa e promoção da vida e da dignidade dos oprimidos. Em Dewey, o autor que, dos pragmatistas clássicos, levou mais longe a reflexão sobre as implicações políticas do pragmatismo, a noção de “comunidade” era utilizada de maneira demasiado vaga para poder considerar de maneira adequada o efeito das desigualdades e das relações de poder. Na perspectiva de Santos, o critério de avaliação de um dado conhecimento depende do modo como ele afecta a condição dos oprimidos. Uma epistemologia pragmática é, pois, indissociável do reconhecimento do carácter constitutivo da normatividade na produção de conhecimento e na sua avaliação. É importante lembrar que alguns autores que, como Santos, podemos situar na “constelação da libertação” (termo inspirado em Adorno e que tomo emprestado a Bernstein, 1991) – como é o caso de Paulo Freire e Enrique Dussel – assumem posições muito próximas, mesmo quando não desenvolvem explicitamente as suas implicações epistemológicas.
19É esta preocupação que permite encontrar uma convergência com concepções da crítica epistemológica que procuraram elucidar a dimensão constitutiva da normatividade nas práticas científicas e definir a responsabilidade inalienável dos cientistas ou produtores de conhecimento nos seus efeitos sobre o mundo (o que, como já foi referido, tem sido denominado também política ontológica). A epistemologia do Sul, ao mesmo tempo que explora o legado do pragmatismo, com o qual partilha a ideia da indissociabilidade da produção de conhecimento e da intervenção transformadora no mundo, apresenta, contudo, a diferença em relação a ele de se situar explícita e inequivocamente do lado dos subalternos e dos oprimidos, conferindo às noções de comunidade ou de público um conteúdo mais preciso do que o fizeram pragmatistas como Dewey e acentuando os aspectos conflituais ou agonísticos do envolvimento activo com o mundo, que decorrem de uma diversidade de formas de desigualdade e de opressão e de resistência a elas.
- 11 Ao discutir as convergências entre o pragmatismo e a filosofia da libertação latino-americana, E (...)
20As histórias convencionais, mas também algumas tentativas mais recentes de reconstrução da genealogia do pragmatismo, têm-no caracterizado como, ao mesmo tempo, uma reapropriação de várias tradições da filosofia europeia e a invenção de um pensamento original dirigido às circunstâncias particulares da constituição histórica e da evolução da sociedade norte‑americana. Mesmo as interpretações radicais, como a de Cornel West (1989), situam as origens do pragmatismo na experiência dos descendentes dos colonos europeus, ainda que procurem mostrar a importância das contribuições da experiência africana-americana ou da crítica feminista no seu desenvolvimento posterior.11
21Uma reinterpretação recente da história do pragmatismo, proposta por Scott Pratt (2002), propõe uma genealogia diferente. Esse “pensamento norte‑americano” original seria muito mais do que a fusão da apropriação da tradição filosófica europeia e a interpretação das novas circunstâncias encontradas pelos colonizadores e seus descendentes. A origem do pragmatismo estaria, antes, no modo como, no encontro entre os colonos e os povos nativos da Costa Leste da América do Norte, se foi forjando, contra o que Pratt designa de atitude colonial, uma “lógica do lugar”, baseada no reconhecimento da diversidade de comunidades humanas e das suas relações com os espaços em que se inscrevem as suas histórias. Neste processo, um conceito nativo, o de wunnégin (um termo narrangasett que pode ser traduzido por “boas-vindas”, e com equivalente em outras línguas e culturas nativas da mesma região), cria as condições para um outro modo de relacionamento. Este basear-se-ia ao mesmo tempo, no reconhecimento e respeito pelas diferenças e no envolvimento mútuo entre diferentes comunidades, de modo a criar formas de vida em comum pacíficas e capazes de fazer “crescer” as relações e as capacidades das diferentes comunidades envolvidas. Nesta perspectiva, o conflito e a violência não estão ausentes, mas aparecem sempre como resposta a violações da “lógica do lugar”, como as associadas à atitude colonial.
- 12 “Crescimento” significa, pois, para os pragmatistas, algo de radicalmente diferente do que é ent (...)
22É na história dessa concepção e das práticas a ela associadas, e nas diferentes maneiras como, desde o século XVII, com o pregador dissidente Roger Williams, passando depois, no século XVIII, por figuras como Cadwallader Colden ou Benjamin Franklin e, no século XIX, Lydia Maria Child e Ralph Waldo Emerson, até aos pragmatistas clássicos e a figuras como Jane Addams, W.E.B. Du Bois, Alain Locke e outros, se foram definindo os quatro grandes princípios que caracterizam, segundo Pratt, o pragmatismo, e que enformam a concepção pragmatista do conhecimento e da sua produção: interacção, pluralismo, comunidade e crescimento (growth). Cada um destes princípios é entendido de maneira ao mesmo tempo específica e em evolução. O princípio da interacção está na base de toda a concepção pragmatista dos objectos, entidades e processos existentes no mundo, cuja caracterização adequada passa por conhecer as suas relações ou interacções com outros. O envolvimento com o mundo consiste no envolvimento mútuo dessas entidades e processos plurais, sempre no quadro de uma comunidade que permite definir o sentido desse envolvimento. O modo como esse envolvimento é avaliado depende da sua contribuição para o crescimento das comunidades envolvidas e dos membros dessas comunidades, entendendo-se crescimento como a extensão das suas relações, a ampliação das suas capacidades ou o aumento do bem-estar. “Crescer” adquire, neste caso, um sentido próximo do que se atribui ao “crescer” individual dos seres humanos, mas considerando-o sempre numa perspectiva relacional.12 Apoiado nesta genealogia, Pratt redefine deste modo o processo de emergência do pragmatismo clássico:
- 13 Pratt propõe uma reanálise das concepções e práticas da ciência experimental em Cadwallader Cold (...)
Na última década do século XIX, Dewey, Peirce e James conseguiram combinar a ciência experimental e baseada na comunidade de Franklin13, o activismo social das pragmatistas feministas e correntes da filosofia europeia numa epistemologia e ontologia que começa na experiência vivida. Num certo sentido, os compromissos da atitude indígena passaram a ser expressos numa outra lógica. Partindo do processo de dúvida e inquirição, nos termos de Peirce, essa lógica convergiu com a concepção, avançada por James, de uma subjectividade localizada socialmente, delimitada por condições materiais, pela fisiologia, por hábitos, e pelas visões dos outros, e depois, com Dewey, com a ampliação da lógica experimental, que se tornaria a lógica do naturalismo cultural. Em cada um destes casos, o desenvolvimento filosófico formal foi delineado sobre uma atitude herdada em parte do pensamento dos nativos [norte‑]americanos que emergiu ao longo da fronteira com a América Europeia. Essa atitude indígena esperava já encontrar sentido nas interacções num contexto pluralista, enquadrado em comunidades, e tendo como objectivo o crescimento (Pratt, 2002: 283).
- 14 O pragmatismo clássico veio a dar origem, ao longo do século XX, a diferentes correntes, com ori (...)
23Esta perspectiva pode ajudar a compreender como e por que é que o pragmatismo aparece, ao mesmo tempo, como uma das formas certamente mais radicais de crítica do pensamento abissal e, em particular, do projecto da epistemologia, e como um recurso para o resgate da epistemologia, para a sua reconstrução radical como epistemologia do Sul e como parte da emergência de um pensamento pós-abissal.14
24Num artigo que culmina uma longa reflexão crítica prolongada por um trabalho de identificação e reconhecimento da diversidade de formas de conhecer que coexistem e/ou se confrontam no mundo, Boaventura de Sousa Santos fundamenta o ambicioso projecto de uma epistemologia alternativa, uma epistemologia do Sul, na construção mais ampla de uma caracterização do pensamento ocidental ou do Norte como pensamento abissal. Para quem tiver acompanhado de perto os debates epistemológicos que foram tratados na primeira parte deste artigo, esta proposta poderá suscitar alguma perplexidade. Se a epistemologia é um projecto filosófico indissociável da ciência moderna e que teve sempre no seu centro a justificação e legitimação da autoridade epistémica desta, será possível conceber uma epistemologia que não se organize em torno da ciência enquanto padrão de todo o conhecimento?
25Não sendo possível, no quadro deste artigo, reconstruir a genealogia da proposta de Santos – o que terá de ser deixado para outra ocasião –, é importante começar por uma breve e, necessariamente, simplificada caracterização do modo como se fez a passagem da crítica da epistemologia, uma preocupação que tem percorrido a obra de Santos ao longo dos últimos 30 anos, ao desafio de uma epistemologia do Sul que, em trabalhos mais recentes, veio ancorar-se na oposição entre pensamento abissal e pensamento pós-abissal. Nesta perspectiva, a ciência e a epistemologia não desaparecem no quadro de um pensamento pós-abissal, mas passam a existir numa configuração distinta de saberes, que Santos designa por ecologia de saberes.
26As contribuições de Santos para o debate epistemológico no Norte (Santos, 1987, 1989, 2000, 2003, 2007a e 2007b; Nunes, 2003, 2007) caracterizam-se pela identificação de um conjunto de processos e de manifestações de crise que são interpretados no quadro de uma crise mais geral do projecto da modernidade. O adjectivo “pós-moderno” foi, assim, utilizado, em diferentes momentos, como uma forma estenográfica de caracterizar um processo de transformação que questionava o próprio projecto da ciência moderna e a sua viabilidade. Nessas contribuições, a reflexão centrava-se nas dinâmicas internas das ciências e no que o autor viria a descrever como as manifestações do seu pluralismo interno. A crise das epistemologias convencionais era abordada a partir de uma reflexão epistemológica que continuava a ter como seu centro principal as ciências, mas com uma diferença: procurava explorar as formas de relacionamento das ciências com outros saberes e experiências.
27A passagem desta reflexão a um outro enquadramento tornou-se possível a partir do envolvimento com as experiências do Sul e com as interrogações por estas suscitadas sobre a relevância dos saberes do Norte para abordar um mundo que é mais do que o mundo ocidental e uma compreensão do mundo que não se esgota, como tem afirmado Santos, na compreensão ocidental do mundo. Essa passagem tem sido descrita de vários modos por Santos, mas encontra-se bem resumida no título de um dos seus trabalhos: “Do pós‑moderno ao pós-colonial e para além de um e de outro” (Santos, 2006). Mais recentemente, é na oposição entre o pensamento abissal associado à modernidade e um pensamento pós-abissal associado a uma ecologia de saberes que a dimensão epistemológica desse trabalho de construção de um “pensamento alternativo de alternativas” leva à formulação do primeiro esboço do que poderá ser um programa de investigação sistemático sobre as questões epistemológicas suscitadas pelo período de transição em que vivemos (Santos, 2007b). Uma parte crucial desse programa será, precisamente, a interrogação e redefinição dos critérios e procedimentos que permitem estabelecer o que conta como conhecimento ou como saber. Santos formula, nesse sentido, três grandes conjuntos de interrogações, que vale a pena recordar:
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Qual a perspectiva a partir da qual poderemos identificar diferentes conhecimentos? Como podemos distinguir o conhecimento científico do conhecimento não-científico? Como distinguir entre os vários conhecimentos não‑científicos? Como se distingue o conhecimento não-ocidental do conhecimento ocidental? Se existem vários conhecimentos ocidentais e vários conhecimentos não-ocidentais, como distingui-los entre si? Qual a configuração dos conhecimentos híbridos que agregam componentes ocidentais e não-ocidentais?
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Que tipos de relacionamento são possíveis entre os diferentes conhecimentos? Como distinguir incomensurabilidade, contradição, incompatibilidade, e complementaridade? Donde provém a vontade de traduzir? Quem são os tradutores? Como escolher os parceiros e tópicos de tradução? Como formar decisões partilhadas e distingui-las das impostas? Como assegurar que a tradução intercultural não se transforma numa versão renovada do pensamento abissal, numa versão “suavizada” de imperialismo e colonialismo?
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Como podemos traduzir esta perspectiva em práticas de conhecimento? Na busca de alternativas à dominação e à opressão, como distinguir entre alternativas ao sistema de opressão e dominação e alternativas dentro do sistema ou, mais especificamente, como distinguir alternativas ao capitalismo de alternativas dentro do capitalismo? (Santos, 2007b: 33)
- 15 Noutro lugar, no mesmo artigo, Santos sugere a necessidade, no período de transição em que nos e (...)
28O caminho apontado por estes conjuntos de interrogações parte de dois postulados que, à primeira vista e segundo os critérios defendidos pelas correntes dominantes da epistemologia moderna, seriam incompatíveis. O primeiro é o do reconhecimento da dignidade e da validade de todos os saberes. O segundo é o da recusa do relativismo, ou seja, da ideia de que todos os saberes se equivalem. A posição de Boaventura de Sousa Santos é a de considerar que a aceitação do primeiro postulado implica, de facto, a aceitação do segundo. Reconhecer a validade e dignidade de todos os saberes implica que nenhum saber poderá ser desqualificado antes de ter sido posta à prova a sua pertinência e validade em condições situadas. Inversamente, a nenhuma forma de saber ou de conhecimento deve ser outorgado o privilégio de ser considerada como mais adequada ou válida do que outras sem a submeter a essas condições situadas e sem a avaliar pelas suas consequências ou efeitos. Nenhum saber poderá, assim, ser elevado à condição de padrão a partir do qual será aferida a validade dos outros saberes sem considerar as condições situadas da sua produção e mobilização e as suas consequências. As operações de validação dos saberes decorrem, pois, da consideração situada da relação entre estes, configurando uma ecologia de saberes. Dado que a “ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstracto, mas antes como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real”, Santos vai caracterizar a sua posição como um pragmatismo epistemológico, “justificado [acima de tudo] pelo facto de as experiências de vida dos oprimidos lhes serem inteligíveis por via de uma epistemologia das consequências” que, “no mundo em que vivem, […] vêm sempre primeiro que as causas” (Santos, 2007b: 28).15
29O projecto de uma epistemologia do Sul é indissociável de um contexto histórico em que emergem com particular visibilidade e vigor novos actores históricos no Sul global, sujeitos colectivos de outras formas de saber e de conhecimento que, a partir do cânone epistemológico ocidental, foram ignorados, silenciados, marginalizados, desqualificados ou simplesmente eliminados, vítimas de epistemicídios tantas vezes perpetrados em nome da Razão, das Luzes e do Progresso. Nesta perspectiva, o que conta como conhecimento é muito mais do que a epistemologia convencional – e a sua crítica, mesmo a “naturalista” – admite. O reconhecimento da diversidade das formas de conhecer – uma diversidade cujos limites são impossíveis de estabelecer previamente ao envolvimento activo com essas formas – obriga a redefinir as condições de emergência, de desenvolvimento e de validade de cada uma dessas formas, incluindo a ciência moderna, que passa assim a ser objecto de uma avaliação situada que obriga à “simetrização” radical de todos os saberes. Os critérios que permitem determinar a validade desses diferentes saberes deixam de se referir a uma padrão único – o do conhecimento científico – e passam a ser indissociáveis da avaliação das consequências desses diferentes saberes na sua relação com as situações em que são produzidos, apropriados ou mobilizados. A diferença que esta posição apresenta em relação às epistemologias “naturalistas” está na ampliação e transformação da ideia de que, se só podemos compreender e avaliar os saberes quando os abordamos como práticas, não se compreende por que certas práticas poderão ser excluídas dessa compreensão e avaliação por postularem o recurso a explicações ou interpretações que invocam entidades ou processos que uma forma particular de saber – a ciência moderna – rejeita ou caracteriza como inexistentes. É o caso, por exemplo, da referência a entidades sobrenaturais ou a forças que não podem ser descritas ou explicadas no quadro da cosmologia racionalista que enquadra a ciência moderna, mas são cruciais para as explicações do mundo, das coisas e dos seres que foram elaboradas no quadro de outras cosmologias e formas de envolvimento activo com o mundo. Se a demonstração da verdade de um enunciado ou da eficácia de uma acção está nas suas consequências, não fará sentido postular a exclusão ex ante de certas formas de descrição ou de explicação como falsas ou irracionais.
30A emergência do próprio projecto de uma epistemologia do Sul deve ser compreendida como parte de uma história, de um percurso que parte do envolvimento crítico com as epistemologias dominantes associadas às ciências modernas, com as suas tensões, dinâmicas de debate e propostas de inovação, convergindo com o que Santos designou de crítica interna da ciência. Num segundo momento, a crítica das ciências passou a outro patamar, o da crítica a partir de saberes, conhecimentos e práticas que a epistemologia dominante caracteriza como não-científicos ou aos quais, sumariamente, nega qualquer valor cognitivo. Neste segundo momento, é a própria concepção da epistemologia como discurso normativo sobre as ciências, como lugar de elaboração de uma soberania epistémica que permite distribuir a qualidade do que é e não é conhecimento que é posta em causa. A consequência deste passo é, aparentemente, paradoxal. Se a epistemologia é um projecto hegemónico, de imposição de uma soberania epistémica, indissociável da ciência moderna, como entender um projecto alternativo que retoma a própria ideia de epistemologia para caracterizar de maneira positiva a diversidade das formas de conhecimento existentes no mundo e as condições da sua validade? Num texto recente, Santos aponta duas chaves que permitem responder a este aparente paradoxo. O primeiro é a caracterização da epistemologia do Sul como uma epistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral. Esta concepção é incomensurável com a de uma epistemologia que define a soberania epistémica, que atribui a uma forma de conhecimento o poder de definir a existência e a validade de todos os outros modos de conhecimento. O segundo é a formulação de um programa de investigação que implica reexaminar a epistemologia dominante a partir dos olhares novos ancorados nas experiências históricas e emergentes do Sul. Estes podem ser os pontos de partida para, seguindo uma via aberta pelo próprio Boaventura de Sousa Santos em trabalhos anteriores, procurar um envolvimento activo e crítico com as versões da epistemologia do Norte que mais avançaram na crítica à epistemologia dominante, e que melhor poderão protagonizar um diálogo que tenha como horizonte a descolonização da reflexão epistemológica. As condições de viabilidade desse diálogo, contudo, estão ainda longe de ser realizadas. O que separa a crítica epistemológica produzida no Norte da epistemologia do Sul radica numa oposição mais ampla entre um pensamento abissal, associado ao projecto da modernidade, e uma diversidade de formas de pensamento que apontam para a emergência de um pensamento pós‑abissal.
31No que se refere à epistemologia, o pensamento abissal funda-se no que Santos designa de linha abissal epistemológica. A linha abissal epistemológica apresenta uma vertente interna e uma vertente externa. A primeira coloca todos os saberes e enunciados com pretensão a enunciados de conhecimento que não sejam reconhecidos pelas formas vigentes de exercício da soberania epistémica – sumariamente “arrumados” do lado da não-ciência – como vectores de erro ou de ignorância, como crenças ou formas de superstição. A segunda vertente amplia essa desqualificação, seja através da apropriação de alguns desses saberes, mas condicionando a respectiva validação ao tribunal da soberania epistémica ou às soberanias particulares de diferentes domínios do saber certificado – veja-se, por exemplo, a transformação dos saberes locais sobre a biodiversidade em “etnociências” –, seja eliminando-as ou àqueles(as) que são os sujeitos desses saberes, através de diferentes formas de epistemicídio – desde a evangelização e a escolarização ao genocídio ou à devastação ambiental. A transformação do saber e do conhecimento em algo que pode ser objecto de apropriação privada, separado dos que o produzem, transportado, comprado e vendido, sujeito a formas de direito de propriedade estranhas ao contexto em que esse saber ou conhecimento foi produzido e apropriado colectivamente corresponde, de facto, a uma operação de eliminação obscurantista de saberes e de experiências, em nome da sua racionalização e da sua subordinação aos cânones epistemológicos associados à ciência moderna. Esse resultado pode ser obtido, assim, através de dois caminhos: o da destruição física, material, cultural e humana, e o da incorporação, cooptação ou assimilação (Santos, 2007b: 9).
32Perante este panorama, até que ponto e como será possível alimentar a esperança de um diálogo construtivo entre as formas de crítica epistemológica “imanente” que têm marcado o debate no Norte e a epistemologia do Sul em construção?
- 16 A expressão “pensar categorial” é tomada de empréstimo a Hugo Zemelman.
33Se as críticas “naturalistas” e feministas e as orientações mais recentes dos estudos sociais da ciência têm procurado elucidar a relação constitutiva entre o epistemológico, o ontológico e o ético-normativo que caracteriza os saberes científico-técnicos modernos, é pouco clara a sua posição em relação aos “outros” saberes, não-científicos, e às condições da sua validação. É certo que o que a crítica feminista tem designado de epistemologias “posicionadas” ou situadas tem em atenção as diferentes configurações de saberes que são accionadas por actores específicos, incorporando histórias ou experiências colectivas, em circunstâncias ou situações particulares. Mas a validação desses outros saberes, como é sugerido pelos trabalhos de Harding, parece passar pela sua inclusão num repertório alargado de “ciências” ou de saberes científicos, como se fosse necessário esse reconhecimento nos termos dos modos hegemónicos de conhecimento para que o diálogo entre os saberes se torne, senão possível, pelo menos produtivo. Seria legítimo perguntar se, perante estas posições, o mesmo não poderia dizer‑se do recurso ao termo “epistemologia” para falar das condições de produção, apropriação e validação das diferentes formas de saber. O problema só se coloca quando se pensa o uso de expressões como “ciência” ou “epistemologia” (ou “filosofia”, ou “literatura”, ou “economia”, ou “política”, ou “religião”…) no modo de pensar “categorial” próprio do pensamento abissal.16 Ao passarem do pensamento abissal para uma constelação de pensamento pós-abissal, os termos são reapropriados no quadro de configurações de sentido e de contextos de práticas distintos. Não sendo possível, pelo menos na actual fase de transição, a eliminação pura e simples dos velhos termos e a sua substituição por termos radicalmente novos, toda a inovação conceptual ou categorial passará, necessariamente, por esse processo de reapropriação-transformação. Mas torna-se tanto mais importante, por isso, examinar de perto quais as transformações por que passam esses termos nesse processo, e o que eles passam a significar nas novas condições do seu uso. Uma das implicações dessa reapropriação do conceito de epistemologia é a sua vinculação, ancoragem ou enraizamento em experiências históricas que situam os seus protagonistas e que permitem vincular esse projecto a uma mais ampla “constelação da libertação”. A epistemologia do Sul aparece como uma refundação radical da relação entre o epistemológico, o ontológico e o ético‑político a partir, não de uma reflexão centrada na ciência, mas em práticas, experiências e saberes que definem os limites e as condições em que um dado modo de conhecimento pode ser “traduzido” ou apropriado em novas circunstâncias, sem a pretensão de se constituir em saber universal. Se todos os saberes são reconhecidos, a validade de cada um deles depende do modo como está vinculado às condições situadas e pragmáticas da sua produção e apropriação. As hierarquias dos saberes não podem ser definidas a partir da soberania epistémica de um modo de saber ou de uma instância “externa” aos saberes, mas de forma pragmática, isto é, indissociável das práticas situadas de produção dos saberes. É este tipo de relação que define o que Santos designa de ecologia de saberes:
A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstracto, mas antes como práticas de conhecimento que possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real, e deixa de conceber a ciência como a referência ou ponto de passagem obrigatório para o reconhecimento de todos os saberes e conhecimentos. Deste modo, é a própria concepção do que é a epistemologia que é radicalmente transformada. Um pragmatismo epistemológico é, acima de tudo, justificado pelo facto de as experiências de vida dos oprimidos lhes serem inteligíveis por via de uma epistemologia das consequências. No mundo em que vivem, as consequências vêm sempre primeiro que as causas. (Santos, 2007b: 28)
34Se o que caracteriza a epistemologia do Sul é um pragmatismo epistemológico que privilegia as consequências em relação às causas, não será aqui que poderemos encontrar um ponto de convergência com as preocupações epistemo-onto-éticas das críticas “naturalistas” e feministas à epistemologia? A influência – nem sempre reconhecida, mas nem por isso menos presente – do pragmatismo filosófico nessas críticas permite, pelo menos, fixar o ponto de partida possível de um exercício de tradução que poderá ajudar a identificar as preocupações comuns, mas também as concepções divergentes que movem os dois campos em diálogo.
35Regressemos, para concluir, à proposta, mencionada mais acima, através da qual Boaventura de Sousa Santos procura dar corpo à tarefa de “construção epistemológica de uma ecologia de saberes” (Santos, 2007b: 33). O autor identifica “três conjuntos principais de questões, relacionados com a identificação de saberes, com os procedimentos que permitem relacioná-los entre si e com a natureza e avaliação das intervenções no mundo real que possibilitam” (ibid.). Em relação ao primeiro conjunto, afirma-se que as questões suscitadas “têm sido ignoradas pelas epistemologias do Norte global” (ibid.). De facto, a afirmação é verdadeira, também, para os outros dois conjuntos. Enquanto projecto filosófico, a epistemologia do Norte, como foi recordado na secção 2, teve sempre como objectivo a identificação de uma forma particular de conhecimento, o conhecimento científico, e dos critérios que permitem demarcar a ciência de outros modos de conhecimento. De facto, é a própria atribuição da qualidade de “conhecimento” a um modo de envolvimento ou de relação com o mundo que constitui o objectivo último da epistemologia. Daí que as interrogações de que fala Santos sejam relevantes para a epistemologia apenas enquanto permitem realizar o trabalho de demarcação que atribui à ciência um privilégio epistemológico que a define como o modo de produzir conhecimento verdadeiro sobre o mundo – e, consequentemente, o interesse por outros modos de conhecer apenas enquanto “outros” da ciência, incapazes de estabelecer a distinção entre a verdade e o erro. Um programa como este não é capaz de reconhecer outros modos de conhecer, a não ser para submetê-los a uma forma de soberania epistémica que toma a ciência como modelo de toda a maneira verdadeira de conhecer.
36Esta observação sugere a necessidade de um novo uso da palavra “epistemologia”, que passaria a designar, não um programa filosófico alternativo, mas o que Santos designa por programa alternativo de alternativas, opondo a todas as formas de soberania epistémica a noção de ecologia de saberes. Deparamos, aqui, com um exemplo do conhecido problema de ter de usar de modo subversivo as ferramentas conceptuais e teóricas do pensamento do Norte ou, como diz Santos (2007b: 33), de “como combater as linhas abissais usando instrumentos conceptuais e políticos que as não reproduzam”. A resposta terá de ser pragmática: ao usar a expressão “epistemologia do Sul”, estamos a utilizá-la num quadro que não é o quadro familiar em que se entende o que é a epistemologia, mas que é adequado a interrogações novas que não é possível formular a partir do que Santos designa por pensamento abissal.
37A vinculação (explícita) da proposta de uma epistemologia do Sul e do seu corolário, a concepção do universo dos saberes como uma ecologia, a uma concepção pragmática dos saberes, das formas da sua produção, validação, circulação, apropriação, partilha e avaliação, permite, ao mesmo tempo, assinalar a relevância de um pensamento alternativo de alternativas epistemológicas e encontrar as convergências que tornem viável e produtivo o diálogo com as formas mais recentes e mais inovadoras de crítica epistemológica que têm aparecido em ligação com os estudos sociais da ciência, os estudos feministas e pós-coloniais e a filosofia “naturalista” das ciências.
38O pragmatismo advogado por Santos, porém, apesar das suas “parecenças de família” com a corrente filosófica do mesmo nome, emerge de uma reconstrução radical que resulta do encontro entre as experiências de populações, grupos e colectivos subalternos, especialmente no Sul global, e o “fazer trabalhar” as propostas de filósofos pragmatistas como William James e John Dewey para a crítica das epistemologias convencionais. É na referência explícita ao mundo e às experiências dos oprimidos como lugar de partida e de chegada de uma outra concepção do que conta como conhecimento ou como saber que a epistemologia do Sul confronta o pragmatismo com os seus limites. Esses limites são os limites da crítica da epistemologia no quadro do pensamento abissal.