Araújo, Pedro, A tirania do presente. Do trabalho para a vida às incertezas do desemprego.
Araújo, Pedro, A tirania do presente. Do trabalho para a vida às incertezas do desemprego. Coimbra: Quarteto, 2008, 148 pp.
Texto completo
1Pedro Araújo relata neste livro o estudo de caso analisado na sua dissertação de mestrado, no qual procurou estudar e interpretar as diversas vivências e experiências de um grupo de desempregados, ex-trabalhadores de uma fábrica de cerâmicas no concelho de Coimbra, a Estaco, falida em 2001. Partindo de uma crítica ao modo como, de uma forma geral, as ciências sociais e, em particular, a sociologia tendem a abordar o desemprego – a partir de uma perspectiva demasiadamente abstracta, assente em visões superficiais das vivências dos desempregados –, o autor contraria esta corrente, procurando abordar não somente o desemprego, mas os desempregados, não apenas o fenómeno do (não) trabalho, mas as pessoas que o vivem as acções por elas desenvolvidas para lidar com uma nova situação nas suas vidas, a reconfiguração dos seus quadros interpretativos e, com eles, dos seus modos de agir.
2Para Pedro Araújo, o desemprego constitui, para além da perda de rendimentos, o ruir de expectativas e o emergir de incertezas quanto ao futuro. De facto, se o emprego duradouro moldava a construção de um mundo, de um tempo e um espaço, de certezas, compromissos e sonhos para a descendência, o desemprego constitui o desmoronar de tudo isto, a estabilidade do emprego, portanto, da vida, do presente e do futuro, transforma‑se em precariedade e na incerteza, já nem do futuro, mas do próprio presente. Importará então estudar as suas implicações reais, as práticas e representações dos que efectivamente vivem essas transformações daqueles que constituem, afinal, o sujeito da sociologia.
3Com este objectivo, Pedro Araújo constrói um modelo de análise que, a partir da interacção de um conjunto de factores de vulnerabilidade e mediadores de compensação, interacção em cuja variabilidade se encontrarão os desempregados, dá conta das vivências do desemprego e as interpreta. Assim, a hipótese do autor é que “as situações de privação de emprego serão vividas e definidas pelos desempregados de modo tanto mais negativo quanto maior for a probabilidade de os factores de vulnerabilidade extrínseca e dos factores de vulnerabilidade intrínseca entrarem em sinergia negativa e quanto mais escassos forem os suportes assegurados e mobilizáveis pelos desempregados para lhes fazer frente, ou seja, quanto mais escassa for a margem de manobra disponibilizada pelos mecanismos de compensação” (pp. 41-42).
4Os factores de vulnerabilidade constituirão redutores de oportunidades, aspectos que constrangem o indivíduo nas suas possibilidades de reintegrar o mercado de trabalho e assegurar a sua autonomia. Podem ser intrínsecos, como as trajectórias de vida e as características sociais do indivíduo, e extrínsecos, remetendo para as características do espaço social no qual a pessoa se inscreve. Assim, o autor procura ultrapassar concepções individualistas do desemprego, responsabilizadoras unicamente do indivíduo e da sua iniciativa própria, para o equacionar com a sua história e trajectória, juntamente com o contexto social, económico, físico e temporal, salientando empregabilidades diferenciadas em função de factores individuais ou mais gerais e, em consequência, também de vulnerabilidades diferenciadas e duais, simultaneamente no relativo às pessoas individualmente consideradas e no tocante ao mercado de emprego e sistemas conexos, como o de ensino e formação profissional.
5Os mediadores de compensação, por oposição, definir-se-ão como as protecções e recursos assegurados e/ou mobilizáveis pelos desempregados para resistir e/ou adaptar‑se, sendo constituídos pelo Estado, as redes sociais e as actividades de substituição. Transmitem, portanto, os meios que, de modo isolado ou articulado, mais ou menos duradouro, os desempregados, enquanto agentes activos, mobilizam, gerem, que adaptam e aos quais se adaptam, de modo a enfrentar a sua situação.
6Quanto ao Estado, no que respeita à esfera da providência estatal, ligada à protecção na eventualidade do desemprego, Pedro Araújo delineia quatro tipos-ideais, no espaço europeu, em função do tipo de políticas sociais desenvolvidas: o subprotector, o liberal‑mínimo, o centrado no emprego e o universal, sendo o modelo social do Sul da Europa respeitante ao tipo de Estado subprotector. Este modelo caracteriza-se, essencialmente, por um acesso às protecções dependente da participação no mercado de trabalho, abrangendo um número reduzido de desempregados, com um nível mínimo de protecção e baixas prestações, ao que se soma um baixo investimento em políticas activas de emprego. Daqui decorrerá que este constitui um modelo de Estado social no qual se encontra um maior risco de dificuldades económicas e de desemprego prolongado.
7As redes sociais remetem para a protecção de carácter societal, baseada nas solidariedades familiares e de proximidade, e nas quais se enformarão o grau de integração social dos desempregados e a capacidade de assegurar apoio material e/ou afectivo, evitando o isolamento social. Se assim é, a providência societal dependerá então da natureza da estrutura familiar. Por um lado, do grau de estabilidade/institucionalização da família, por outro, das funções e responsabilidades atribuídas à família e da sua articulação com as políticas sociais. Quanto a este mediador, o autor apresenta três modelos, conforme o grau de protecção atribuído ao Estado, à sociedade ou à família: o modelo de autonomia relativa entre gerações, de autonomia avançada entre gerações e de dependência extensiva, no qual se insere Portugal. No nosso país, as lacunas do regime estatal subprotector serão atenuadas por uma sociedade-providência forte, sendo, no entanto, um sistema no qual são simultaneamente reduzidas quer a protecção individual, quer o apoio às famílias. Torna‑se, então, pertinente questionar se as responsabilidades atribuídas à família são correspondidas por medidas e apoios que lhe permitam desempenhar essas funções. O autor responde negativamente a esta questão, considerando que na nossa sociedade se assiste, a par de um aumento de desigualdades num cenário de progressiva redução da protecção estatal, à regressão da sociedade-providência.
8O autor aborda ainda o mercado, considerando que, no quadro das reestruturações dos sistemas económicos, novos condicionalismos se geram no acesso ao mercado de trabalho, fruto das alterações nas estruturas de emprego e novas competências e habilitações requeridas. Neste contexto, desenvolve-se uma crise do trabalho não qualificado, deixando de existir oportunidades para os trabalhadores que, ou não são qualificados, ou detêm qualificações que já não são necessárias. Para estes, o mercado nada mais terá do que a denominada armadilha do desemprego, um ciclo vicioso de desemprego – emprego precário – desemprego, no qual os indivíduos, fruto da pressão das necessidades e privação, são impelidos a aceitar empregos precários e de curta duração. Ora, tal situação não poderá deixar de ser solucionada senão pela intervenção do Estado, cujos apoios poderão ou não permitir fugir a esta armadilha, seja mantendo economicamente os indivíduos que não encontram oportunidades, seja promovendo a sua reconversão.
9O último mediador de compensação enunciado pelo autor respeita às actividades de substituição. Estas constituem actividades que não se restringem aos esforços individuais para reentrada no mercado de trabalho, e que são susceptíveis de dar conta das estratégias de adaptação dos desempregados. Pedro Araújo procura assim salientar o lado activo dos desempregados, contra os discursos simplistas da inactividade ociosa, procedendo a um levantamento das actividades desenvolvidas no quadro de margens de manobra delimitadas e condicionadas pelo espaço social. O autor identifica quatro tipos de actividades: as que são realizadas à margem do mercado de trabalho, portanto, na economia informal; as que constituem um retorno a actividades secundárias, no âmbito da auto-reprodução, como a agricultura familiar; as desenvolvidas com vista ao reingresso no mercado de trabalho, como a formação; e as de fraca vinculação ao mercado de trabalho, remetendo para a acima referida armadilha do desemprego.
10A partir da conceptualização dos factores de vulnerabilidade e dos mediadores de compensação, o autor define três Modelos de Regulação Social do Desemprego, expressando diferentes combinações de riscos e oportunidades, protecções e privações, vividas nas situações de desemprego. O Modelo Público Individualista, no qual encontramos um reduzido risco de exclusão, centra a responsabilização pelo desemprego na sociedade, portanto, numa protecção pública dos desempregados, sendo assegurados os recursos necessários independentemente da participação prévia no mercado de trabalho, não colocando, assim, pressão sobre as redes sociais. O Modelo Familista caracteriza-se por uma reduzida responsabilidade colectiva, colocando ênfase na responsabilidade das redes sociais e na família, à qual se deverão dirigir‑se as políticas sociais, de modo a que possa cumprir as funções que lhe são atribuídas. Apesar do reduzido risco de exclusão, o igualmente reduzido apoio individual tende a gerar situações de dependência dos desempregados relativamente à família. Por último, o Modelo de Responsabilidade Partilhada, atribui a responsabilidade simultaneamente à sociedade, à família e ao indivíduo, combináveis de diferentes modos. Neste modelo, encontramos um risco de exclusão mais elevado, dada a responsabilização individual do desempregado e o ineficiente apoio público às famílias.
11A análise do autor classifica o caso português como uma combinação do modelo familista e do modelo da responsabilidade partilhada, na medida em que as lacunas provenientes do modelo de Estado subprotector são compensadas pela sociedade-providência, portanto, remetendo para o modelo familista. No entanto, encontramos traços fortes do modelo de responsabilidade partilhada, por exemplo, na tensão entre complementaridade e substitutabilidade entre Estado e família.
12Apesar de o Estado ter um efeito decisivo na limitação das privações financeiras, a aproximação de Portugal ao regime subprotector permite esperar apoios reduzidos, no montante e duração. De facto, o autor verificou que, embora todos os desempregados detivessem, à data do encerramento da Estaco, as condições legalmente exigidas para o acesso ao subsídio de desemprego, finda a duração deste, o acesso ao subsídio social de desemprego é mais limitado. As entrevistas mostram que as prestações são valorizadas pela segurança do rendimento, mas consideradas insuficientes. Relativamente às medidas activas, parte dos entrevistados participou em Planos Ocupacionais. No entanto, os que o fizeram desvalorizam-nos, por não corresponderem às expectativas, mas também pelo carácter temporário. Quanto à formação profissional, o autor encontrou um número muito reduzido de desempregados que a ela recorreram, nela encontrando poucos ou nenhuns benefícios. Do mesmo modo que o emprego seguro representava uma vida segura, as precárias possibilidades de reingresso apresentam-se como insatisfatórias. Daí, que os desempregados procurem segurança no Estado, para o qual sempre contribuíram. Perante a ausência de apoio, originam-se sentimentos de injustiça. Por todos estes motivos, o Estado assume-se como o elemento central dos mediadores de compensação, com o qual os demais se articulam.
13Para os desempregados da Estaco, as redes sociais resumem-se às famílias e, nestas, sobretudo ao contexto da família directa. Esta limitação prende-se com a mobilidade geográfica dos desempregados, na medida em que a protecção conferida gera e acentua também padrões de dependência, que reduzem a mobilidade. Daqui decorre que, se o apoio financeiro se apoia na complementaridade das prestações do Estado e no rendimento do cônjuge, tal dependência da família acentuar-se-á findos os apoios estatais. Demonstra-se a tensão entre Estado e família. As relações entre a protecção estatal e as redes sociais assumir-se-ão como de complementaridade, na existência de prestações do Estado, e de substitutabilidade na sua ausência. Para o autor, apesar da indiscutível importância das suas funções providenciais, as capacidades das redes sociais são limitadas enquanto mediadores de compensação. São complementares à protecção do Estado, mas têm reduzida capacidade de apoio material, e possibilidades limitadas no apoio à autonomização dos desempregados.
14Perante um mercado de trabalho blindado à reentrada dos desempregados, um Estado subprotector nas suas funções sociais, e uma rede social insuficiente, importa analisar outros meios aos dispor dos desempregados para assegurar a autonomia, verificando-se que, quanto maior a duração do desemprego, mais os indivíduos se dedicam a actividades de substituição. O autor constata que o trabalho não declarado não surge como vantajoso. Tendo-se verificado a importância que as prestações do Estado assumem para o desempregado, material e simbolicamente, a ponto de serem preferíveis a uma reentrada precária no mercado de trabalho, o risco de as perder devido à ilegalidade do trabalho não declarado não se apresenta como uma estratégia viável. Quanto a passagens precárias pelo mercado de trabalho, dependendo da sua idade, os desempregados entrevistados assumiam uma de duas estratégias: prolongamento do desemprego até à reforma, ou alternância entre empregos precários e novos períodos de desemprego até atingir as condições necessárias à primeira estratégia. De um ou de outro modo, revela-se sempre o papel primordial do Estado social nas representações e expectativas destes desempregados.
15Relativamente às actividades desenvolvidas no contexto da economia informal, mas dirigidas à auto-reprodução familiar, a pequena agricultura surge como principal para os homens, e a prestação de cuidados de proximidade para as mulheres. Estas actividades asseguram alguma subsistência para o desempregado e sua família mas, na medida em que não geram rendimentos, não podem nunca deixar de ser somente complementos a outros apoios.
16Concluindo, apesar de uma relativa homogeneidade do grupo, e dos recursos que cada um poderá mobilizar, encontram-se situações de dependência e de difícil reentrada no mercado de trabalho, demonstrando a importância de considerar um conjunto de factores na análise do desemprego e das vivências dos desempregados. Este estudo sublinha, assim, a importância de relativizar a responsabilidade individual pela situação de desemprego. Mostra, ainda, de uma forma clara, que o Estado se afigura como o elemento central na compensação do desemprego, constituindo as redes e as actividades de substituição, mais que mediadores independentes, apenas complementos à protecção estatal.
Para citar este artículo
Referencia en papel
Alfredo Campos, «Araújo, Pedro, A tirania do presente. Do trabalho para a vida às incertezas do desemprego.», Revista Crítica de Ciências Sociais, 82 | 2008, 149-153.
Referencia electrónica
Alfredo Campos, «Araújo, Pedro, A tirania do presente. Do trabalho para a vida às incertezas do desemprego.», Revista Crítica de Ciências Sociais [En línea], 82 | 2008, Publicado el 01 octubre 2012, consultado el 20 marzo 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/629; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.629
Inicio de páginaDerechos de autor
Únicamente el texto se puede utilizar bajo licencia CC BY 4.0. Salvo indicación contraria, los demás elementos (ilustraciones, archivos adicionales importados) son "Todos los derechos reservados".
Inicio de página