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Whybrow, Nicolas (2011), Art and the City

Sandra Guerreiro Dias
p. 205-207
Referência(s):

Whybrow, Nicolas (2011), Art and the City. London, New York: I. B. Tauris, 198 pp.

Texto integral

1Zygmunt Bauman escrevia em 1991 que, na pós‑modernidade, o novo flâneur ‘viajante‑jogador’ prefere a irremediável redundância ao jogo da sobrevivência, isto é, o divertimento consciente de si como jogo ‘maduro’ e ‘puro’ que olha o mundo como teatro e a vida como jogo. Em Não‑lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade (2005), Augé sublinha a necessidade de conferir um sentido, “pela intensidade da experiência” (a performance), ao presente e aos “não‑lugares” do mundo, como contrapartida pela sobreposição e excesso dos acontecimentos, pela superabundância espacial e individualização das referências, modalidades que caracterizam os novos tempos “sobremodernos”. Em Art and the City, Nicolas Whybrow, especialista em Estudos do Teatro e da Performance, Professor na Universidade de Warwick no Reino Unido, associa à recente proliferação e ‘translocalização’ dos sítios e lugares de arte para fora dos museus, a ‘recolocação’ do “corpo relacional” (8) como centro e espaço de produção, circulação e receção dos discursos culturais e socioeconómicos urbanos. Salienta, neste sentido, o papel de resistência reservado especificamente ao corpo lúdico e performativo no espaço da revolução eletrónica e fibro‑ótica e das transformações em curso na cidade desde os meados do século anterior, de que Virilio é o principal arauto e com cujas teorias este texto dialoga.

2Na sua mais recente monografia, o também editor do recente e panorâmico estudo sobre performance e práticas urbanas de arte no século xx, Performance and the Contemporary City: An Interdisciplinay Reader (2010), começa por relacionar a “experiência momentânea” dos incidentes urbanos de Lefebvre, que este identifica também na arte, com as seguintes noções de ‘jogo’ e ‘trabalho’: “Por um lado, a cidade é em si própria, um ‘trabalho’ (de arte), ou ‘obra’, a qual invoca o direito cidadão à participação (ou apropriação pública) como arte. Por outro, a arte […] pode ‘utilmente’ funcionar na cidade como meio para trazer ao jogo aquilo que está a ter lugar” (18). Na abertura da reflexão (capítulo 1), o autor relaciona estes conceitos com os de cidade‑sítio como mediação cultural na relação com a viragem urbano‑performativa, na qual o espectador emerge como participante engajado − na linha das teses de Kwon (2009) – portanto como interveniente na produção da cultura urbana globalizada enquanto evento/arte relacional que reproduz uma “discursividade para sempre inacabada” (Bourriaud, 2002) de identidades, estados e deslocamentos em permanente transição. Ainda na justificação teórica (capítulo 2), e na continuidade da análise da arte como “trabalho/jogo”, o autor descreve a “experiência situada” como “prática crítica” (36) do interlocutor urbano. Identifica neste sentido a “escrita relacional” como escrita performativa, assumindo‑se como escritor no seu papel performativo. A novidade propriamente dita deste trabalho surge na segunda parte, isto é, na ilustração daqueles pressupostos teóricos com o relato descritivo dos “encontros situados” (40) e da “experiência afetiva” (43) de lugares/instalações de arte em três cidades distintas, Londres, Berlim e Viena. Os deslocamentos e configurações experimentais da invenção artística no espaço urbano são aqui analisados no seu potencial para, ora reorganizar o visível e o sensível, ora recompor os espaços políticos, para usar a terminologia de Rancière que o autor, aliás, quase não cita.

3A segunda secção do livro divide‑se por três categorias de eventos, correspondentes aos capítulos 3, 4 e 5 respetivamente: “walking art”, “playing fields” e “performing memory”, todas implicando a participação contingente do espectador, pelo movimento, pelo jogo e pela ativação da memória. No respeitante à primeira categoria, referem‑se os trabalhos artísticos de Wentworth (projeto das visitas‑guiadas alternativas por Londres e o Skulptur Projekte), Alÿs (Seven Walks, The Modern Procession), Wallinger (Zone e State Britain), Metzger (Aequivalenz‑Shattered Stones) ou Althamer (Path). A partir da análise destas propostas, reconhece‑se a “heterodoxa interdependência das coisas” na cidade (Wentworth) pela constatação da presença e importância da adversidade e do conflito como dimensões constitutivas das democracias urbanas (“paradoxo democrático” de Mouffe, 2000); analisa‑se as táticas dissolutivas do movimento, a transformação do vazio pelo happening que exige a criação de um sentido pelo discurso social, ao mesmo tempo que se alerta para as “discrepâncias do acesso e do privilégio” (73) (Alÿs); como estádios temporários, as instalações de Wallinger, Metzger e Althamer são descritas enquanto experiências espontâneas e imprevisíveis que potenciam as incursões indefinidas dos sentidos e das ligações entre espaço e espectador implicado nos ciclos sociopolíticos e históricos da cidade. No capítulo seguinte, a cultura urbana do flash mob e do mobile clubbing (analisadas na ótica de Dyer e de McGonigal), do skateboarding, do graffiti (onde se destaca o misterioso trabalho de Bansky), do parkour ou de outros projetos mais abrangentes − como o Fourth Plinth, com especial relevo para a escultura Alison Lapper Pregnant (que faz a capa do livro), de Marc Quinn – é analisada como processo de reconhecimento, posicionamento e contestação das contradições agonísticas do espaço citadino. Aqui a interação cidade‑arte‑corpo é identificada na improvisação de jogos e ritmos, formas de divertimento e risco de potencial radical, com vista ao aprofundamento de uma consciência mais política e ética. Finalmente, no último capítulo do livro, o pretexto para o diálogo interpelativo e interrogativo são duas das mais controversas instalações memorialísticas da cultura europeia, a saber, o Denkmal für die ermordeten Juden Europas (Memorial aos Judeus Assassinados na Europa), de Eisenman, em Berlim, e o Memorial to the 65,000 Murdered Austrian Jews de Rachel Whiteread, em Viena. Nestes monumentos que fazem emergir as narrativas agonísticas potenciadas pelo jogo aberto da construção, o autor observa detalhadamente a arquitetura dos espaços, do monumento e envolventes, indicativa do fluxo e refluxo do debate sobre a memória problemática do Holocausto naquelas cidades. Tratando‑se de formas de arte que se engajam no contexto e conflitos específicos dos lugares, Whybrow refere que a “recodificação retroativa” (Hall Foster) assegura a continuidade do debate sobre a presença de espectros de um passado quase impenetrável (à semelhança da “biblioteca fechada” de Whiteread). As respostas físicas e comportamentais concretas inerentes à organização do espaço são, segundo o autor, propiciadoras, em ambos os casos, de um importante diálogo cidadão sobre os “segredos horríveis” (Freud) da psique coletiva.

4Em suma, trata‑se de um trabalho interessante que alia, a uma escrita simultaneamente clara e de pendor ensaístico, o exercício crítico de uma análise que, baseando‑se em pressupostos teóricos e resistindo a interpretações fechadas, é aprofundada pela descrição detalhada e interpelativa de estudos de caso e narrativas empíricas que observam a metodologia de investigação histórica e sociológica não‑ortodoxa conforme proposta por Benjamin no “Projeto das Arcadas”, na linha de uma sociologia histórica da flânerie. Problematizando os desafios da arte politicamente engajada, salienta‑se o modo como as performances artísticas in situ podem (re)negociar efetivamente com o constrangimento e restringimento das atuais políticas públicas de planeamento e vigilância urbana, analisando‑se especificamente a articulação destas práticas emergentes com a discussão dos modos e perfis ideológicos de uma “criminologia da intolerância” (120).

5Duas fragilidades apontam‑se por fim, a esta obra: a ausência de uma conclusão final que sistematize as densas questões e reflexões levantadas ao longo de grande parte do livro, a extensa segunda secção; a análise propriamente dita não beneficia de um pendor comparativo com outras realidades que não a ocidental por se cingir o estudo de caso a monumentos, eventos e instalações de cidades europeias. Esse risco é no entanto desde logo assumido pelo autor que nega a intenção de propor qualquer argumento linear ou conclusão do livro como um todo. Abrindo‑se desta feita a novas discussões e debates, este estudo constitui um ponto de partida útil para estudos semelhantes.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Sandra Guerreiro Dias, «Whybrow, Nicolas (2011), Art and the City»Revista Crítica de Ciências Sociais, 99 | 2012, 205-207.

Referência eletrónica

Sandra Guerreiro Dias, «Whybrow, Nicolas (2011), Art and the City»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 99 | 2012, publicado a 04 setembro 2013, consultado a 19 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/5173; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.5173

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Autor

Sandra Guerreiro Dias

É licenciada em Literaturas Modernas e mestre pré Bolonha em História da Cultura Contemporânea (século XX) com tese sobre mudança social na literatura portuguesa do pós 25 de Abril. Atualmente é PhD Fellow do programa de doutoramento em Linguagens e Heterodoxias (Centro de Estudos Sociais/Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), realizando investigação sobre mudança cultural, poesia e artes da performance em Portugal nos anos 80.
sandra.cgd@gmail.com

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