1Num mundo globalizado, caraterizado por mudanças estruturais tanto no comércio como na indústria, são necessários espaços apelativos e singulares nas cidades, capazes de atrair potencial criativo e recursos económicos que lhes permitam diferenciar‑se e tornar‑se competitivas. A passagem da “sociedade industrial a sociedade pós‑industrial” (Harvey, 1989; Castells, 1996) obrigou muitas cidades a criar no seu seio espaços com caraterísticas benéficas para os seus habitantes e visitantes e também para o setor económico, desejosos de um ambiente de elevada qualidade aliado a equipamentos socioculturais de excelência. Neste sentido, a atratividade das infraestruturas físicas e socioculturais reveste‑se de significado estratégico para as cidades e para o seu desenvolvimento. Os antigos espaços industriais situados nos centros urbanos surgem, assim, como potenciais locais de construção aos olhos dos investidores, ao mesmo tempo que poderão incorporar elementos diversos da infraestrutura cultural, capazes de ajudar a cidade a melhorar a respetiva posição estratégica. Tais “recursos culturais” poderão configurar uma grande oportunidade para qualquer cidade que pretenda tornar‑se mais atrativa no que toca a visitantes e capital, promovendo desse modo o desenvolvimento.
- 1 A diferença entre valor cultural de tipo material e imaterial ilustra cabalmente os conceitos de p (...)
2As autoridades urbanas e os demais grupos de interesse não deixam de reconhecer a importância e o potencial das antigas áreas industriais dotadas de boa localização, de um património industrial rico e de uma identidade cultural própria. No entanto, procuram simultaneamente moldá‑los de acordo com aquilo que são os padrões globais, usando‑os principalmente como um complemento da cidade, quer dizer, como curiosidade cultural destinada a atrair visitantes, consumidores e investidores. Para tanto, as cidades não se limitam a proteger o valor cultural associado a esses espaços, mas procuram também adaptá‑los ou criar artificialmente novos espaços culturais a partir dos espaços desindustrializados. Nesta perspetiva, tendem a “reinterpretar a cultura local” (Urry, 1995 e 2005) de maneira a torná‑la mais atrativa para os fluxos globais de pessoas e de capital. Muitas cidades por todo o mundo ostentam ruas, zonas ou bairros históricos caraterizados por diversos estratos de estilos arquitetónicos – medieval, barroco, art nouveau e outros –, legalmente protegidos pelo facto de constituírem património cultural importante. Contudo, esta proteção implica por vezes que muitos dos seus usos e das suas caraterísticas próprias e originais deem lugar a ambientes “mais seguros” mas estéreis, que acabam por excluir práticas sociais, acontecimentos e rituais espontâneos, anteriormente com raízes locais fortes. No decurso deste processo de proteção e reabilitação é fácil os bairros, os edifícios históricos e as ruas de maior importância perderem parte do seu valor cultural “intangível” (o valor imaterial, formado constituído pelos serviços tradicionais, pela população local e respetivos hábitos, saberes e pela memória do lugar), ao preservar parte do seu valor original “tangível” (material), cultural e físico, sob a forma da arquitetura industrial, que é fator de atração do público.1
- 2 Outros autores, além destes, têm vindo a refletir sobre a diversidade urbana e o modo como ela afe (...)
3É frequente os processos de reabilitação cultural urbana centrarem‑se em aspetos específicos da cultura, não a encarando como um sistema heterogéneo de tipo holístico e bem mais complexo. Isto mostra‑nos que, se por um lado o processo de reabilitação e de revitalização económica procura atrair moradores, consumidores, turistas e outros grupos abastados, por outro lado acaba por conduzir a uma diminuição do grau de heterogeneidade da cidade. Bianchini (1999) referiu‑se a este uso da cultura e do potencial criativo das políticas urbanas como sendo a “era do marketing urbano”, em que a cultura seria, “cada vez mais, vista como uma ferramenta valiosa para diversificar a base da economia local e compensar a perda de empregos nos setores tradicionais da indústria e dos serviços” (ver também Hesmondhalgh, 2002; Howkins, 2001). Caraterísticas deste entendimento da cultura são as definições utilizadas pelo Departamento de Cultura, Média e Desporto do Reino Unido (2001) para descrever o conceito de indústrias criativas. Em contraste com esta perspetiva, algumas abordagens mais recentes (por exemplo, UNESCO, 2009; UNESCO, 2010; CGLU, Agenda 21 da cultura 2004, 2008, etc.) tendem a conceber a cultura como parte integrante do processo básico de tomada de decisão que permeia toda a estrutura do mecanismo de ordenamento urbano. No contexto da regeneração urbana, o planeamento da cultura deve assentar no princípio da sustentabilidade económica e cultural, da heterogeneidade e da inclusão. Além disso, deve procurar garantir uma elevada qualidade de vida para tantos grupos populacionais e tão diversos quanto possível (ver Lash e Urry, 1994; Landry e Bianchini, 1995; Landry, 2000, 2006).2 Desalojar os grupos de menores rendimentos conduz à destruição dos ambientes criativos gerando escassez de espaços alternativos ou informais, ou seja, de locais próprios para culturas alternativas dentro da cidade (Miles, 2007; Moulaert et al, 2004). Neste sentido, se a institucionalização ou “assetização” dos espaços subculturais contribui para que o centro da cidade aumente momentaneamente o nível do consumo e recupere uma certa vibração ao nível da rua, a verdade é que, a longo prazo, a mudança acaba por não abranger alguns segmentos importantes da cultura urbana, que tendem a ser empurrados para fora do centro da cidade (Zukin, 2009; Jacobs e Fincher, 1998; Ley, 2003).
4O presente artigo trata do projeto de reabilitação da antiga Fábrica Rog, situada no centro de Liubliana, e do seu papel no futuro desenvolvimento da cidade. Mais concretamente, analisa‑se a reabilitação da Fábrica Rog do ponto de vista da revitalização e da regeneração económica urbana da área mais vasta em que o projeto se insere. Presta‑se uma atenção especial ao papel desempenhado pelas diversas partes interessadas e à sua inclusão ou exclusão relativamente ao processo de reabilitação. Uma das grandes questões suscitadas pelos processos de reabilitação da Fábrica Rog diz respeito ao estabelecimento de relações corretas entre o desenvolvimento económico, a promoção de indústrias criativas, a proteção do património industrial e a preservação da heterogeneidade sociocultural caraterística daquela área. Dito de outro modo, tratar‑se‑á de equilibrar adequadamente os ingredientes, de maneira a permitir que a cidade, a comunidade local, e os grupos criativos de índole cultural, artística e outros existentes na área conheçam um desenvolvimento sustentado. As circunstâncias presentes, marcadas por ambientes pós‑modernos de tipo globalizado e em que as cidades se entregam literalmente a uma competição para angariar recursos, mão de obra adequada e capital económico, dificultam ainda mais essa tarefa. Mas o artigo pondera abordagens alternativas para a reabilitação da Fábrica Rog, capazes de diminuir os efeitos negativos da nobilitação e de integrar, conciliando, aspetos à primeira vista incompatíveis – aspetos económicos, sociais e culturais –, encontrando as melhores soluções com vista a promover um elevado nível de vida em paralelo com o desenvolvimento económico da cidade e de toda a região.
5A reabilitação e a revitalização urbanas são frequentemente vistas como um empreendimento meramente “técnico”, em que se procede à instalação de novos sistemas e infraestruturas cujas funções são determinadas com base em medições e em instrumentos rigorosos. Parte‑se do princípio de que a reabilitação urbana segue ao pormenor os procedimentos e os objetivos estabelecidos pelas políticas urbanas, impedindo os processos de ordenamento espacial de sinal negativo e privilegiando aqueles que vão em benefício de toda a comunidade. No entanto, a reabilitação de ambientes sociais complexos como o da Fábrica Rog só muito raramente é possível com base em medidas meramente “técnicas” ou formais; com efeito, na maioria das vezes a solução passa por fazer a ligação entre os grupos populacionais por um lado, e o planeamento de práticas capazes de gerar mais “decisões participativas” em torno das intervenções no espaço, por outro. A revitalização de uma área urbana à partida já com determinados “conteúdos sociais” constitui um empreendimento assaz melindroso, que geralmente requer uma grande articulação entre os diferentes grupos envolvidos. O planeamento cultural, neste contexto, é entendido como uma forma de consulta ou de gestão interativa, em que o objetivo é harmonizar os interesses dos diversos grupos (socioeconómicos, culturais, políticos, de classe ou etnia) presentes num determinado espaço (Healey, 2003; Wilson, 2006).
- 3 A nobilitação tornou‑se indissociável da reestruturação das economias urbanas contemporâneas, que (...)
6Na reabilitação de ambientes culturais sensíveis como é o caso da Fábrica Rog, os técnicos urbanistas têm de ter em conta as estruturas socioculturais presentes, o que significa ter em atenção os utilizadores temporários do espaço e eventuais efeitos da reabilitação sobre o núcleo de grupos sociais, culturais, artísticos e geracionais ali existentes. Nesta medida, é de admitir que os esforços, ou os planos no sentido da revitalização, façam diminuir, de certa forma, o grau de heterogeneidade cultural, acabando por levar a processos de “nobilitação” (Smith, 1996; Hamnett, 1984; Downs, 1981).3 No caso da antiga Fábrica Rog interessa‑nos sobretudo descrever os efeitos que a reabilitação poderá ter sobre a área envolvente, bem como o desenvolvimento futuro das potencialidades culturais e criativas da cidade. Por esse motivo, não pode a revitalização da Fábrica Rog ser vista como um mero processo de renovação urbana “de cima para baixo” com o intuito de aumentar a atratividade do centro urbano, devendo antes ser entendida como uma rede condensada em que se interliga toda uma variedade de funções, eventos, encontros, informações, visitantes e utilizadores de índole sociocultural. Esta rede confere suporte à heterogeneidade cultural, proporcionando um leque de atividades/oportunidades de expressão ao dispor dos diversos indivíduos e grupos, permitindo ainda a chamada “experimentação urbana”, inviável nas zonas mais fechadas e padronizadas – e, por isso também, menos permissivas – da cidade (Quadro 1).
QUADRO 1 – Atores temporários, atividades e utilização dos espaços na antiga Fábrica Rog
Utilização temporária dos espaços
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Atividades dos utilizadores temporários
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ONGs
Grupos de artistas diversos (pintura, escultura, multimédia, etc.)
Centro social Rog
Teatro musical Rog
Estúdio de dança Rog
Centro multimédia Rog
Espaço de exposições Rog
Cooperativa Rog
Salas de concertos e reuniões Rog
Pista de skate Rog
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Investigação
Conferências, oficinas
Grupos de ajuda (social) em voluntariado
Espetáculos de música
Exposições
Atividades desportivas
Espetáculos de teatro e dança
Performances multimédia
Diversos espaços de reunião e convívio, abertos 24h por dia
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Fonte: Fábrica Rog (2010), consultado a 05.02.2013, em http://tovarna.org/node/113.
7Dada a presença de intervenientes vários no espaço ocupado pela Fábrica Rog, as autoridades urbanas veem‑se confrontadas com o dilema de determinar até que ponto deverão abrir à esfera pública o processo de planeamento cultural e de que modo incluir os utilizadores ou outros grupos da sociedade civil nos processos de planeamento, sem, por outro lado, pôr em risco os objetivos da reabilitação e da revitalização. Uma boa maneira de representar as possíveis abordagens a esse dilema será a escala de participação dos utilizadores no ordenamento urbano, proposta por Sherry Arnstein (1969), que enumera diferentes patamares de inclusão dos interessados. A classificação dada por esta autora às relações de poder entre, por um lado, as autoridades ou os sistemas formais, e por outro os utilizadores, torna patente a variedade de formas de (não‑)cooperação entre os atores do processo de ordenamento do espaço urbano (Quadro 2).
8A escala de participação dos utilizadores no ordenamento do espaço urbano divide‑se em oito níveis (os graus da escala), por sua vez agrupados em três categorias mais latas. A primeira, abrangendo os dois graus mais baixos da escala, corresponde a baixo poder ou não‑participação da parte dos cidadãos. A categoria da não‑participação dá aos utilizadores uma mera ilusão de poder nos processos relacionados com o ordenamento, uma vez que os manípulos da tomada de decisão se mantêm, firmes, nas mãos dos atores políticos e económicos. A segunda categoria, do poder simbólico (ou “de fachada”), assenta numa estratégia unidirecional de informação aos utilizadores através de uma abordagem “de cima para baixo”, com recurso a diversas técnicas de informação, aconselhamento e negociação. A terceira categoria, a única que garante aos utilizadores a sua participação plena e que assegura a comunicação bidirecional entre os atores envolvidos, permite ainda a influência “de baixo para cima” nas diferentes fases do ordenamento urbano. Deste modo, a questão essencial será a de saber como coordenar os processos de reabilitação para garantir que seja mínima a tensão potencial entre utilizadores (artistas, utilizadores temporários), investidores, técnicos urbanistas, autoridades urbanas e visitantes. A inexistência de elos ou redes de ligação entre as partes interessadas pode, eventualmente, levar a um cenário insustentável em que se tornem necessários vultuosos investimentos financeiros para custear não apenas a reabilitação física mas também o apoio ao programa e aos conteúdos básicos, ou seja, ao próprio funcionamento corrente do complexo cultural. Nas secções que se seguem analisam‑se em pormenor as relações entre os grupos de interessados. A análise começa com uma breve história da Fábrica Rog, passando então ao estudo da capacitação, isto é, do processo de inclusão das diversas partes.
QUADRO 2 – Escala de Arnstein sobre a participação dos utilizadores no ordenamento urbano
8
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Controlo social
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Graus de poder dos cidadãos
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7
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Delegação de poderes
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6
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Parceria
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5
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Apaziguamento
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Graus de simulação
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4
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Consulta
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3
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Informação
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2
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Terapia
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Não‑participação
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1
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Manipulação
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Fonte: S. Arnstein (1969)
- 4 Veja‑se o caso das escolas‑oficinas ZGM de Bezigrad (“ZGM workshops Bezigrad”), em Liubliana, onde (...)
9Após as mudanças do sistema político e a introdução de uma economia de mercado livre, na década de 1990, muitas cidades eslovenas conheceram, num período relativamente breve, uma ampla reestruturação e reabilitação espacial, assim como por alterações rápidas nos procedimentos respeitantes ao ordenamento. Muitos locais social e historicamente importantes foram os primeiros a ser afetados por essas novas “políticas urbanas competitivas” (Harvey, 1989) que visavam a promoção de um desenvolvimento económico acelerado. Estas políticas foram informalmente permitidas pelas autoridades a nível local, urbano e nacional, a fim de encurtar, com a maior rapidez possível, o fosso entre as sociedades ocidentalizadas – leia‑se economicamente desenvolvidas – e as sociedades de transição. Com frequência os “gestores urbanos” (Pahl, 1975) tiraram partido da situação de instabilidade económica, procedendo a intervenções espaciais de qualidade duvidosa, em detrimento dos serviços públicos e das comunidades locais. No decurso dos processos de “reabilitação”, muitas antigas zonas industriais de Liubliana (Mapa 1) foram fortemente afetadas ou sofreram mesmo uma reconstrução total, que alterou por completo o espírito do lugar.4
MAPA 1 – Antigas zonas industriais de Liubliana (1998)
Fonte: J. Koželj, L. A. Momirski, T. Maligoj, B. Omerzu, D. Flere (1998), Degradirana urbana obmocja. Ljubljana, Ministrstvo za okolje in prostor, Urad RS za prostorsko planiranje.
10Em 1998 as antigas zonas industriais (no mapa a traço fino) ocupavam cerca de 10,6% da área total de Liubliana, mas essa percentagem baixou para cerca de 4‑5% num período de apenas 15 anos. Durante os processos de reestruturação das áreas desindustrializadas, muitos dos elementos que constituíam a heterogeneidade sociocultural desses espaços ou não foram integrados no plano de reabilitação, ou pura e simplesmente foram dele excluídos. Na secção que se segue analisaremos o caso da Fábrica Rog, um complexo fabril localizado no centro de Liubliana (e representado, no mapa, por um pequeno círculo com uma seta) que foi parcialmente abrangido pela proteção ao património industrial. Porém, o projeto de reabilitação elaborado para aquela zona não define com exatidão a estratégia de reabilitação a seguir, nem quais as consequências que daí advirão para o que ali já existe em termos de serviços, funções, estrutura de utilizadores temporários e comunidade local no seu todo.
- 5 Para mais pormenores sobre a história da Fábrica Rog, consultar o projeto Second Chance (2011), em (...)
11A utilização industrial da Fábrica Rog conta com uma longa história iniciada em 1871, data do começo de funcionamento dos curtumes Janesch (Janez). A empresa mudou de dono em 1900, tendo então sido adquirida por Carl Pollak, que renovou e ampliou o edifício da fábrica e expandiu a sua produção (Figura 1). A fábrica Pollak laborou com êxito até à crise económica da década de 1930, altura em que, por motivo de insolvência, a empresa foi colocada sob a administração da Caixa Municipal de Poupança. O edificado industrial encontrava‑se em uso durante e após a Segunda Guerra Mundial, tendo a fábrica começado a produzir bicicletas e máquinas de escrever, mais precisamente em 1952. Em 1953 e 1963 tiveram lugar as últimas grandes obras de reabilitação do edifício e a construção de instalações complementares. A Fábrica Rog funcionou até ao início da década de 1990, aquando do encerramento da produção de bicicletas.5
FIGURA 1 – Fábrica Rog nos inícios do século xx
Fonte: Project Second Chance (2011)
- 6 Forma abreviada de “Do It Yourself” [Faça Você Mesmo – NT]. Ao contrário das infraestruturas técni (...)
- 7 Para mais pormenores sobre a utilização atual (temporária) da Fábrica Rog (2010), consulte‑se o sí (...)
12Em 2002, a aquisição do edifício pelo município de Liubliana marcou o início de grandes debates sobre o futuro da zona, tendo‑se concluído que esta deveria destinar‑se a programas culturais públicos. Simultaneamente, iniciou‑se uma nova utilização do espaço da antiga fábrica, para eventos culturais de caráter ocasional (nomeadamente a Bienal de design industrial e o festival Break). Desde 2006, os utilizadores temporários que têm vindo a desenvolver programas culturais, artísticos e sociais naquele espaço têm vindo a usar o edifício em regime diário (Figuras 2 e 3). A passagem da fábrica a centro cultural foi conseguida, não pela via de uma ocupação clássica, mas de acordo com um conceito original daquilo que seria uma nova unidade de produção cultural e artística de tipo temporário. Aberta a todos quantos trabalham no setor sem fins lucrativos, a Fábrica Rog funciona como centro social, sala de concertos, pista de skate e espaço de produção dotado de estúdios improvisados e de uma “infraestrutura de DIY”.6 Até à data, o projeto envolveu a cooperação e a participação de centenas de pessoas e de inúmeras organizações culturais e sociais.7
FIGURAS 2 e 3 – Utilizações temporárias da Fábrica Rog para programas culturais, artísticos e sociais
Fonte: Matjaž Uršič (2009)
Fonte: Matjaž Uršič (2009)
- 8 Para mais informações, consultar MX_SI Architectural Studio (2010) – Rog Art Center, em http://www (...)
13Em 2007 o município de Liubliana começou a trabalhar intensamente num projeto de longo prazo para a reabilitação e revitalização do antigo complexo Rog. Para o efeito foi preparada uma vasta documentação e levada a cabo uma investigação abundante. Foi aberto um concurso público para a reabilitação arquitetónica da zona da Fábrica Rog, tendo sido selecionada a proposta de uma equipa mista sediada em Barcelona, a MX‑SI Studio, formada por arquitetos da Eslovénia e de Espanha.8
- 9 O custo total dos investimentos no CSU Rog e no parque de estacionamento subterrâneo está estimado (...)
- 10 As atividades de natureza privada irão abranger cerca de 17 000 m² de todas as estruturas construí (...)
14Para o município de Liubliana, a reabilitação da área degradada (com mais de 51 700 m2) insere‑se no âmbito das indústrias criativas. Segundo os planos da Câmara, baseados numa parceria público‑privada, o edifício principal será transformado no CSU Rog (Centro Rog de Artes Contemporâneas), dotado de espaços para exposição, de centro de produção, de estúdios e programas para artistas em residência, de oficinas de arte e espaços didáticos, tudo isto em simbiose com áreas comerciais tais como lojas, bares, restaurantes, um hotel, apartamentos, e estacionamento subterrâneo.9 Mas o rácio desta simbiose inclina‑se fortemente a favor das atividades comerciais de tipo privado (60% da área total).10 No total, o novo Centro Rog de Artes Contemporâneas irá proporcionar a Liubliana um novo polo criativo e artístico, que permitirá à cidade começar a pôr em prática o conceito de cidade criativa como modelo do seu desenvolvimento.
15De acordo com os planos do município, o Centro Rog de Artes Contemporâneas destina‑se essencialmente a atividades na área das artes visuais, arquitetura e design. O objetivo é desenvolver um polo dinâmico em que diferentes disciplinas, e tanto o setor público como o privado, possam não apenas coexistir mas também colaborar e entre si promover sinergias. A arquitetura do Centro Rog apresenta‑se como um espaço adaptativo e multifuncional, moldável de acordo com as necessidades de natureza espacial e criativa. As instalações destinadas a exibição incluem um grande espaço de exposições no piso térreo e um salão polivalente no primeiro andar. O espaço para exposições tem ligação direta às principais vias de acesso, à receção, à galeria de lojas, a bengaleiro para os visitantes, ao espaço para realização de programas educativos, etc. O grande espaço para exposições pode ser dividido em três salas de menor dimensão. Os recursos para fins educativos encontram‑se disponíveis no salão polivalente do primeiro andar. As instalações destinadas à produção, situadas nos dois andares superiores, incluem estúdios, ateliers, oficinas e laboratórios. Estão previstos um espaço de convívio e um café e/ou restaurante na interseção das zonas de produção e de exposição do primeiro andar (ver Figura 4).
FIGURA 4 – Distribuição do espaço no interior do Centro Rog de Artes Contemporâneas
Fonte: Projeto Second Chance (2011a)
- 11 Por exemplo o edifício em que residiu o primeiro proprietário da empresa de curtumes – a “villa Po (...)
16Pretende‑se que a reabilitação dos edifícios principais complemente o património cultural protegido com soluções arquitetónicas contemporâneas. Deste património da zona da Fábrica Rog contam‑se, como elementos principais, valores urbanos, arquitetónicos e históricos. O plano de proteção do património cultural industrial foi desenvolvido pelo Instituto para a Proteção do Património Cultural da Eslovénia (IPCH) – Gabinete Regional de Liubliana (2008). Para além da arquitetura do edifício principal da fábrica, que beneficia de completa proteção no que respeita tanto à envolvente exterior como ao respetivo interior, os elementos do património incluem o traçado geral, a organização do espaço na zona (por exemplo a orientação das ruas, as cérceas da rua Trubarjeva e a fachada da igreja vista a partir daquela rua) e alguns edifícios concretos e com funções diversas.11
- 12 O capital cultural de tipo incorporado encontra‑se representado no indivíduo, configurando um tipo (...)
17O projeto de reabilitação do Centro Rog de Artes Contemporâneas alia elementos arquitetónicos novos a elementos do património industrial protegido. Nesse sentido, o novo projeto consegue, de alguma forma, integrar os elementos do património industrial naquilo que é a matriz da reabilitação. A dimensão dos bens culturais “tangíveis” (materiais) acha‑se devidamente representada no atual plano de reabilitação; já o papel dos bens culturais “intangíveis” (imateriais) apresenta‑se pouco claro e mal definido. Segundo Pierre Bourdieu, o “capital cultural” pode ser de tipo incorporado, institucionalizado ou objetivado (1986: 248‑250). O capital cultural objetivado encontra‑se nas coisas materiais, quer dizer, nos artefactos, nas obras de arte ou – no caso da Fábrica Rog – nas caraterísticas históricas que a singularizam e lhe conferem o estatuto de património arquitetónico industrial. Estes bens culturais sob forma física podem traduzir‑se em capital económico, representando, hoje em dia, uma modalidade já bem firmada de entidade comercial (veja‑se, por exemplo, cidades com um rico património histórico‑cultural, como Veneza, Florença, etc.). As outras duas dimensões do capital cultural relacionam‑se mais intimamente com a noção de bens culturais intangíveis.12
18Embora não coincidam inteiramente com as conceções de desenvolvimento (regeneração) espacial atrás apresentadas, as conceções teóricas de Bourdieu suscitam, indubitavelmente, questões acerca da eventual acumulação de algumas formas concretas de capital cultural intangível na zona da Fábrica Rog durante o recente período da sua utilização não‑industrial, que agora estarão em risco de ser abolidas ou transferidas para outros locais da cidade. Os utilizadores temporários, os programas, as atividades e os serviços da Fábrica, que no decurso deste período de utilização não‑industrial se traduziram numa experiência rica em termos de programação cultural, artística e social, poderão configurar uma importante dimensão de capital cultural intangível, capaz de servir os objetivos de revitalização da cidade, sobretudo no que se refere aos programas que visam o desenvolvimento de indústrias criativas. Representam um importante elemento de heterogeneidade na oferta cultural da cidade, afetando a produção e o consumo ao nível local (ver, por exemplo, Jacobs, 1994; Sassen, 1994; Bairoch, 1998; Markusen, 2006).
19Num contexto de globalização e de crescente competitividade entre as cidades, que lutam por recursos económicos e humanos, o ordenamento urbano acaba, muitas vezes, por fugir deliberadamente às definições mais complexas daquilo que se entende por heterogeneidade e capital cultural. Os grupos de interesse económico e os investidores em busca de lucro imediato desconhecem frequentemente os efeitos de longo prazo das suas estratégias de reabilitação nas várias dimensões da heterogeneidade cultural da cidade. Ao atenderem apenas às caraterísticas do património histórico industrial, os projetos de intervenção tendem a centrar‑se na mera preservação física do capital cultural objetivado, descurando a importância dos bens culturais imateriais (ver a Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, 2003). Tais orientações, assentes numa abordagem que encara o ordenamento como algo feito “de cima para baixo”, reduzem a diversidade dos elementos culturais acumulados em determinado local ao longo dos tempos, fazendo com que ruas inteiras de estabelecimentos castiços acabem por dar lugar a complexos comerciais “à Disney” (Zukin, 1991 e 1995), escritórios, unidades residenciais nobilitadas, ou parques temáticos. Mesmo quando, nas áreas em que houve intervenção, se encontra uma mistura de elementos diversos, em que se interligam museus, galerias, escritórios, habitações, restaurantes e estruturas do espaço público, geralmente a nova disposição do espaço urbano não suporta a coexistência, em proximidade, dos diferentes grupos sociais, de espaços comerciais de luxo e espaços módicos, ou de atividades económicas altamente lucrativas (de índole empresarial) e outras sem fins lucrativos. Em consequência disso, os danos colaterais dos projetos de desenvolvimento resultam evidentes, traduzindo‑se em segregação espacial, em formas adaptadas de ordenamento do espaço, e processos de nobilitação. Com base num estudo de vários projetos de reabilitação do património industrial realizado por Dupagne e Dumont (2006), o Quadro 3 apresenta os possíveis efeitos positivos e negativos da reabilitação de áreas desindustrializadas.
- 13 Para ilustrar a dimensão das eventuais consequências da reabilitação do património industrial, os (...)
QUADRO 3 – Possíveis efeitos da reabilitação do património industrial13
Impactos sobre a diversidade do património urbano
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Impactos sobre as práticas e representações culturais urbanas
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Impactos sobre as economias urbanas
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Aspetos positivos (+)
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(+)
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(+)
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Regeneração urbana
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Diversificação, redescoberta, troca, identidade, reapropriação
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Mais empregos e fontes de receita
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– Maior proteção da paisagem urbana
– Valorização do património
– Requalificação de lugares de interesse que de outra forma se perderiam
– Criação de novas infraestruturas
– Espaços públicos mais bem cuidados
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– Maior consciência da história comum
– Redescoberta ou manutenção dos valores e/ou tradições locais
– Diversificação, multiplicação e melhoria da oferta cultural
– Vantagens das trocas culturais
– Alterações na utilização do espaço (público) urbano
– Organização de eventos e de atividades de animação de curta duração
– Orgulho no local de origem ou de residência, decorrente do aumento da visibilidade ou notoriedade da cidade
– Maior sensação de segurança, resultante dos maiores cuidados com a coisa pública
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– Criação de oportunidades de emprego
– Novas áreas de atividade comercial
– Mais dinheiro deixado pelos turistas nas lojas, restaurantes, cafés e hotéis locais
– Novas fontes de receita
– Efeito multiplicador
– Atração de empresas devido a fatores de implantação intangíveis
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Aspetos negativos (‑)
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(‑)
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(‑)
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Destruição ambiental, saturação, padronização ou “poluição” da paisagem urbana
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Padronização, efeito caricatural, perda de autenticidade, alienação, sensação de invasão
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Monossetorialização, mais despesas, nobilitação
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– Erosão do património
– Poluição turística
– Degradação ou destruição da paisagem urbana
– Criação de espaços monofuncionais (turistificação)
– Constrangimentos de trânsito e problemas de estacionamento
– Globalização e padronização da arquitetura
– Embelezamento e empedernimento (conservação) dos espaços públicos urbanos
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– Conflitos entre moradores e visitantes
– Perda do espírito de comunidade
– Alterações na utilização do espaço (público) urbano
– Alienação, sensação de haver perdido a cidade
– Apagamento das histórias alternativas / criação de histórias “alternativas” (Urry, 1995)
– Perda ou “teatralização” dos valores e/ou costumes locais
– Estereótipos negativos
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– Risco de monossetorialização e de dependência excessiva em relação ao turismo
– Aumento dos preços do imobiliário
– Aumento geral dos preços dos bens devido à turistificação
– Aumento da despesa da cidade, devido a estratégias de financiamento instáveis/indefinidas
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Fonte: Dupagne e Dumont (2006)
- 14 O método das entrevistas de grupo centradas, ou focus groups (ver, por exemplo, Barbour e Kitzinge (...)
- 15 Cada um dos estudos contou com seis grupos, por sua vez constituídos por 5 a 8 pessoas pertencente (...)
- 16 O Quadro 4 constitui uma seleção dos aspetos concebidos por Dupagne e Dumont e encontrados no caso (...)
20Em alguns aspetos, as conclusões de Dupagne e Dumont (2006) podem aplicar‑se ao caso da antiga Fábrica Rog de Liubliana. O estudo destes autores dá nota de um vasto leque de efeitos possíveis da reabilitação, o que por sua vez sugere que, anteriormente a esta e enquanto ela estiver em curso, será importante proceder a uma análise exaustiva das redes físicas e sociais existentes na área abrangida pelo projeto. No caso da Fábrica Rog, foram realizados dois trabalhos de investigação. Num estudo intitulado Formation of Tabor Cultural Quarter – Analysis of Focus Groups, Final Report (Ursic et al., 2010) – zona em que se encontra localizada a Fábrica Rog –, analisaram‑se entrevistas de grupo centradas,14 com vista a identificar as perceções, os desejos e as necessidades da população de Liubliana em relação aos espaços alternativos da cidade. Em 2011 realizou‑se um outro estudo, intitulado The Scheme of Functions in Centre of Contemporary Arts Rog – Analysis of Focus Groups, Final Report (Ursic, 2011), com o intuito de analisar as reações de grupos de artistas, investidores, representantes eleitos da cidade, utilizadores temporários e peritos nacionais e estrangeiros da área da cultura relativamente ao plano de reabilitação da Fábrica Rog proposto pela Câmara de Liubliana.15 Um dos principais propósitos foi analisar as possibilidades de estabelecimento de ligações entre os vários atores a trabalhar no campo da arquitetura, design e artes visuais, representantes dos potenciais futuros utilizadores, visitantes e investidores do CSU Rog. Um outro objetivo desses estudos foi procurar detetar as necessidades, desejos e expectativas dos interessados relativamente ao projeto. Assim, enquanto o primeiro estudo se centrou sobretudo nas opiniões de diversos grupos de habitantes de Liubliana, o segundo resultou numa análise pormenorizada das perceções e do pensamento das partes mais diretamente interessadas, e que estão, de alguma forma, associadas ao projeto de reabilitação. A seleção das partes interessadas foi feita em função das respetivas ligações à comunidade local, à universidade (arquitetura, design, artes visuais) e aos utilizadores temporários ou com base no seu envolvimento nas atividades de produção, organização, financiamento e comercialização relacionadas com a criação do novo Centro. A exemplo do que ocorre na investigação de Dupagne e Dumont (2006), vários elementos que participaram nos estudos em representação das partes interessadas identificaram inúmeros efeitos positivos e negativos da reabilitação. No Quadro 4 apresentam‑se os possíveis efeitos da reabilitação, vistos da perspetiva concreta dos interessados.16
21Ao contrário daquilo que esperavam as autoridades urbanas, a quem coube encabeçar o projeto de reabilitação, os resultados dos estudos revelaram diferenças consideráveis nas expectativas dos vários grupos de interessados. Tais diferenças de opinião, bem patentes no Quadro 4, remetem para diferenças na hierarquia de participação no processo de ordenamento do espaço. Em especial os interessados com menores possibilidades de influenciar o resultado da reabilitação, como é o caso dos utilizadores temporários, de vários grupos de artistas e dos peritos da área da cultura, sentiram que o seu papel no processo de reabilitação era diminuto em comparação com o das autoridades urbanas e investidores. O projeto de reabilitação foi encabeçado pelo município, integrando também, em menor grau e mediante várias formas de participação, outras partes interessadas. Em termos da escala de Arnstein sobre a participação dos utilizadores no ordenamento urbano (1969), o papel dos utilizadores temporários e de diversos grupos de artistas viu‑se reduzido à dimensão da consulta e informação, em detrimento de uma participação ativa através de modalidades como seriam a parceria, a delegação de poderes, ou os mecanismos de controlo social. Por força da utilização de estratégias de participação de tipo convencional mas de facto “passivas” – como a realização de exposições, debates públicos, mesas redondas, publicações nos média, iniciativas de apaziguamento, informação através da divulgação de dados estatísticos –, a participação nos processos de ordenamento do espaço por parte de alguns dos grupos interessados não passou do nível do discurso. Deste modo, as partes intervenientes com menor poder desempenharam um papel também menor nos processos efetivos relacionados com o ordenamento, acabando por ser usadas a título meramente simbólico, como estratégia de legitimação destinada a camuflar as atividades dos grupos de interessados dotados de mais poder.
QUADRO 4 – Possíveis efeitos da reabilitação da Fábrica Rog segundo as partes interessadas
Grupo de interessados
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Possíveis impactos positivos da reabilitação
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Possíveis impactos negativos da reabilitação
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Artistas
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Criação de novas infraestruturas
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Turismo de massas, aumento geral dos preços dos bens devido à turistificação, eventual exclusão de grupos específicos de utilizadores/moradores
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Investidores
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Criação de oportunidades de emprego, novos campos de atividade comercial, maior gasto dos turistas nas lojas, restaurantes, cafés e hotéis locais, efeito multiplicador
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Aumento da despesa da cidade, devido a estratégias de financiamento instáveis/indefinidas para o Centro Rog
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Autoridades urbanas
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Requalificação de lugares de interesse que de outra forma se perderiam, proteção da paisagem urbana, cuidados com os espaços públicos, maior segurança dos edifícios, alterações na utilização do espaço (público) urbano, aumento da visibilidade ou notoriedade da cidade, novas fontes de receita, atração de empresas devido a fatores de implantação intangíveis
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Risco de monossetorialização e de dependência excessiva em relação ao turismo, aumento dos preços do imobiliário, estereótipos negativos
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Utilizadores temporários
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Inclusão de diversos grupos socioculturais de habitantes
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Degradação ou destruição de paisagens urbanas alternativas (subculturas), eventual exclusão de grupos específicos de utilizadores/moradores, aumento da despesa da cidade devido a estratégias de financiamento instáveis/indefinidas para o Centro Rog, apagamento das histórias alternativas / criação de histórias “alternativas”
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Peritos em cultura
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Maior consciência da história comum, valorização do património, diversificação, introdução de novos eventos e atividades de animação
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Embelezamento e empedernimento (conservação) dos espaços públicos urbanos, conflitos entre artistas, trabalhadores da cultura, moradores e visitantes, alterações na utilização do espaço (público) urbano
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Peritos em cultura estrangeiros
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Vantagens das trocas culturais, multiplicação e melhoria da oferta cultural
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Criação de espaços monofuncionais (turistificação), aumento da despesa da cidade devido a estratégias de financiamento instáveis/indefinidas para o Centro Rog, perda ou “teatralização” dos equipamentos (sub)culturais existentes no local
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Fonte: Project Sostenuto (2010), Project Second Chance (2011a).
- 17 Development Vision for the Centre of Contemporary Arts Rog – Working Papers of Project Second Chan (...)
22No caso da Fábrica Rog, estes desafios vieram todos ao de cima aquando da preparação do modelo ou da estratégia de reabilitação. Os resultados dos dois estudos mostraram que, de acordo com a maioria dos intervenientes, o projeto de reabilitação tal como foi proposto pelas autoridades urbanas17 se apresenta muito pouco claro em determinados capítulos, carecendo de um maior aprofundamento. Acresce que a análise das entrevistas de grupo centradas revelou ainda a ocorrência, entre as diversas partes interessadas, de radicais divergências de opinião sobre como reabilitar, sobre qual a utilização a dar às instalações, sobre a conceção de programas e os conteúdos, e ainda preocupações quanto à atuação pública, à manutenção e ao futuro do CSU Rog. As divergências de opinião entre os grupos interessados de maior poder e os grupos com menor poder – mas nem por isso destituídos de grande importância cultural e social – implica que uma parte significativa dos traços socioculturais que atualmente conferem heterogeneidade cultural ao espaço da Fábrica Rog pode vir a sofrer uma transformação irreversível durante o processo de desenvolvimento. No caso da reabilitação da Fábrica Rog, não é claro o papel das diversas comunidades e grupos culturais, sociais e de artistas que, de alguma forma, se encontram associados àquele espaço. Estes grupos de utilizadores temporários poderão constituir uma boa base para o futuro desenvolvimento e expansão da produção criativa já existente em Liubliana. Embora tenha sido elaborado tendo em vista a preservação da arquitetura industrial e de outros atributos físicos da zona da Fábrica, o modelo de reabilitação proposto suscita inúmeras questões quanto aos efeitos sociais, culturais e económicos da estratégia de reabilitação. De facto, tais efeitos podem alterar de forma irreversível – que o mesmo é dizer, destruir – os grupos de utilizadores temporários com atividade não‑lucrativa que são parte integrante do meio a que deverá estar cometido o incremento do potencial criativo de Liubliana.
23Qual a melhor forma de fazer a ligação entre as várias partes interessadas, de maneira a dotar de conteúdos adequados um CSU simultaneamente uno e múltiplo, capaz de impulsionar todo o potencial criativo em presença, de promover a inovação e o crescimento económico, de integrar a economia local, de permitir que as entidades criativas sem fins lucrativos floresçam, e de facultar o acesso a uma pluralidade de utilizadores? É difícil responder. Mas por outro lado é impossível ignorar que a Fábrica Rog constitui um conjunto de singulares “práticas espaciais, representações do espaço, espaços de representação” (Lefebvre, 1974) e outras formas coletivas de viver o espaço, que, ao longo do tempo, geraram um novo espaço a que não se adaptam definições simples como a de antiga zona industrial abandonada, dotada de um património industrial de tipo meramente físico. Por este motivo, as abordagens contemporâneas para a revitalização das áreas desindustrializadas procuram ampliar o âmbito da participação na reabilitação, incluindo desde urbanistas profissionais a toda a sociedade civil, passando pelas comunidades locais.
24As abordagens pós‑modernas ao ordenamento do espaço partem do pressuposto de que todo o espaço urbano é reflexo simbólico de valores, de determinados comportamentos sociais, e da ação individual de pessoas, que num momento concreto marcam um local concreto. O ordenamento é, assim, percecionado como sendo o “produto da interação dialética entre a sociedade e o espaço” (Soja, 1995). É uma evidência que existem vários modelos políticos e económicos em que, através dos respetivos sistemas formais e institucionalizados, o nível de interação entre a sociedade e o espaço se encontra, de algum modo, já previsto ou estipulado. Ao fazê‑lo, tais sistemas dão maior ou menor atenção às pessoas e às comunidades locais no respeitante às intervenções no espaço, do que, por sua vez, resultarão diferentes tipos de problemas. Independentemente das diferentes abordagens com que se encare a interação entre a sociedade e o espaço, pode dizer‑se que é verdade que os resultados das experiências de um grande número de projetos de reabilitação cultural são de molde a exigir uma rotura em relação aos métodos de ordenamento modernistas e a adoção crescente dos conceitos pós‑modernos sobre o ordenamento espacial e a definição das políticas públicas – isto é, sobre o governo das cidades –, os quais procuram assegurar o mais alto nível possível de inclusão e de participação ativa dos cidadãos (Hill e Hupe, 2009; Howlett, 2011).
25O aspeto relativo à garantia de um nível mais elevado de inclusão é, sem dúvida, o ponto fraco do sistema de ordenamento do espaço atualmente instaurado em Liubliana. Considerando as relações de poder no que respeita às intervenções no espaço, os utilizadores temporários, no caso da Fábrica Rog, gozam de um poder que é sobretudo simbólico, ao passo que os manípulos do poder permanecem, bem firmes, nas mãos das instituições formais. O leque de estratégias de participação poucas alterações tem conhecido ao longo dos últimos anos, continuando a preferir os métodos convencionais, os quais, de um modo geral, se resumem à divulgação de informação junto do público, em detrimento da inclusão efetiva dos utilizadores (abordagem de baixo para cima) nos processos de ordenamento do espaço. As abordagens conducentes a um nível mais elevado de envolvimento do utilizador no ordenamento encontram‑se ainda em fase inicial, sendo nulo o seu impacto.
26Neste contexto, é possível ver a Fábrica Rog como um local dotado de um conjunto único de estratos de bens culturais que corre o risco de ser descurado e insuficientemente incorporado nos planos de reabilitação. A reabilitação somente dos bens culturais tangíveis levaria à destruição de uma parte da vertente intangível acumulada ao longo de décadas e cujo reflexo se encontra patente nas redes sociais dos utilizadores temporários e nos serviços e eventos de natureza sociocultural existentes no local. A longo prazo, a sua eventual exclusão poderá afetar profundamente as redes sociais e as práticas espaciais da comunidade artística local, que constitui a base do desenvolvimento das indústrias criativas previsto para Liubliana.
27Exemplos semelhantes de instrumentalização do património cultural imaterial, com a consequente diminuição da diversidade dos espaços locais, podemos encontrá‑los noutras cidades, onde políticas urbanas (globais) de tipo competitivo também procuram criar espaços seguros, economicamente viáveis e atrativos, mas culturalmente asséticos. Não obstante o desenvolvimento cultural e económico das cidades globais assentar em modelos eficientes de estratégias de produção e consumo, visando a promoção de produtos culturais passíveis de ser consumidos tanto fora como dentro da respetiva região de produção, a verdade é que os critérios para definir aquilo que é um espaço de qualidade cultural elevada são, de facto, muito fluidos, não permitindo uma definição fácil (ver Bianchini e Parkinson, 1993). O caso da Fábrica Rog sugere que, no decurso do processo de “preparação” de um desses produtos culturais, há qualidades importantes que podem perder‑se, devendo portanto prestar‑se uma maior atenção aos métodos que buscam medir os valores “não‑monetários e imateriais” – ou seja, intangíveis – dos lugares concretos (Olsson, 1999). Os cenários mais atrativos e pitorescos de uma cidade encontram‑se, normalmente, nos locais em que é maior o contraste e a aparente incompatibilidade dos respetivos ingredientes. Uma tal concentração de extremos e de diversidades é, sem dúvida, altamente problemática e potencialmente conflituosa. Por isso mesmo é que não restam dúvidas de que deverão também existir regulamentações específicas, de tipo formal e informal, respeitantes aos espaços – não com o intuito de excluir, mas com vista a integrar e a permitir a coexistência de grupos, instituições e serviços diversos.