1A literatura sobre a cidade criativa já é extensa e continua a expandir‑se. Muitos contributos para esta literatura citam a importância da criatividade urbana e das indústrias culturais para o desenvolvimento económico urbano, enquanto outros contestam as ideologias neoliberais e os efeitos da segregação, polarização e exclusão social inerentes à aplicação da agenda de consensos e de pensamento único da cidade criativa. São conhecidas as transformações na paisagem urbana que acompanham o surgimento e o desenvolvimento urbano de políticas baseadas na tese de Florida (2002, 2004). Vários autores têm testemunhado os efeitos de polarização social nos espaços urbanos acarretados pelas políticas para a criatividade, nomeadamente as ruturas introduzidas nas comunidades artísticas, bem como o desalojamento dos residentes de estatuto socioeconómico mais reduzido e também de organizações sem fins lucrativos com sede nas áreas urbanas recentemente referenciadas como distritos culturais (Booyens, 2012).
- 1 Não é preocupação central do presente texto problematizar a definição conceptual de nobilitação ur (...)
2A nobilitação urbana1 é, em última instância, um dos efeitos nefastos mais consensualmente apontados pelas análises da teoria urbana crítica em torno da ideia e prática da produção da cidade criativa e branding dos distritos criativos. As ações de reabilitação e regeneração urbana, no âmbito de políticas de cidade criativa, determinadas, igualmente, pela necessidade de melhorar a imagem da cidade, de a tornar mais atrativa num quadro e cenário estratégicos de competitividade interurbana global, implicam, muito frequentemente, a expulsão de habitantes de menor estatuto socioeconómico das áreas centrais, condenando‑os, doravante, a uma marginalidade socioespacial (Atkinson, 2003; Hutton, 2004; Newman e Wyly, 2006; Lees et al., 2009; Jacob, 2010; Stolarick et al., 2010; Parker, 2011; Krätke, 2012).
3David Harvey (2010, 2011, 2012), Neil Smith (1996, 2002, 2005) e Jamie Peck (2005) são alguns dos autores que se têm destacado na crítica da cidade criativa, sendo esta enquadrada na discussão de políticas urbanas ao serviço da ideologia neoliberal e da produção de uma cidade revanchista. Apontam que o discurso “regenerativo” da cidade criativa no âmbito de políticas urbanas de valorização da imagem da cidade, ainda que vise a fixação da população já existente, a modernização do tecido económico, o aumento do emprego e do crescimento económico, bem como a melhoria da qualidade de vida urbana em geral, na prática, não deixa também de funcionar como mecanismo de legitimação do poder instituído e da mobilização de grande investimento público que, em última análise, é desviado do auxílio aos mais carenciados, funcionando como subsídio aos mais ricos (banca, instituições financeiras, grandes grupos económicos e de construção civil, empreendedores, governantes, etc.).
4As intervenções públicas que provocam valorização da cidade criativa desencadeiam mecanismos contraditórios de expulsão e de reapropriação. As novas políticas urbanas traduzem uma maior orientação para o mercado e para os consumidores, em detrimento das classes mais desfavorecidas. Os autores reconhecem que, em larga medida, o desenvolvimento de parcerias público‑privadas, que neste quadro é frequente desenhar‑se, constitui um verdadeiro subsídio aos mais ricos, ao tecido empresarial mais poderoso e às funções e relações estratégicas de controlo, poder e dominação do espaço urbano, condição fundamental na perpetuação da reprodução do capital, premissa essencial para o suporte do sistema de produção e consumo capitalista. Tudo isto à custa dos investimentos em serviços locais de consumo coletivo. É que se, em última análise, a atração e o crescimento propiciados pela nobilitação urbana a todos beneficiam, em primeiro lugar ganham os promotores imobiliários, as empresas e as instituições financeiras, muito frequentemente à custa da expulsão dos residentes e das empresas mais débeis dos lugares requalificados, lançados por via desta (des)valorização, num processo de exclusão. A seletividade dos investimentos favorável à reprodução do capital implica o abandono, o esquecimento e a menor atenção à “cidade da maioria”, com particular gravidade para as áreas mais carenciadas onde se concentram os mais desfavorecidos (Arantes, 2000). É a emergência da cidade revanchista produzida pela ofensiva neoliberal e que Smith tem explorado mais recentemente. O autor desvendou, desta forma, a máscara social de compreensão e “bondade institucional” inerentes a estes recentes produtos imobiliários da nova gestão urbana, argumentando que eles promovem uma lógica de controlo social favorável à reprodução do capital e às classes dominantes.
5Entre as transformações mais relevantes no mercado habitacional das áreas interiores da cidade contemporânea destacam‑se o surgimento de novos produtos e formatos imobiliários dirigidos ao uso residencial que têm contribuído para gerar um fenómeno de “nobilitação urbana marginal”. É um movimento que envolve franjas menos favorecidas das novas classes médias, atraídas pelo ambiente social e cultural do centro da cidade.
6O propósito principal desta reflexão é apresentar e discutir criticamente o posicionamento da nobilitação urbana marginal enquanto potencial prática crítica e emancipatória, e dos marginal gentrifiers como parte de uma fação de esquerda liberal no seio da nova classe média, que ativa e efetivamente procuram a mistura social (e étnica) em bairros antigos e tradicionais do centro da cidade, podendo constituir‑se como um movimento social crítico, alternativo à narrativa dominante e de pensamento único que a cidade criativa representa. Tratando‑se de um ensaio teórico e exploratório desta problemática, desprovido de fundamentação empírica direta, o texto segue uma metodologia hipotético‑dedutiva, pelo que a sua construção parte de postulados ou conceitos já estabelecidos na literatura consultada, através de um trabalho lógico de relação de hipóteses, que configura, a nosso ver, uma possível perspetiva de interpretação dos fenómenos em estudo.
7Na atualidade, a nobilitação urbana ocorre de várias formas em diferentes bairros de diferentes cidades, abrangendo diversas trajetórias de mudança de bairro, o que implica uma variedade de protagonistas (Lees, 2000). No entanto, a discussão ao longo dos últimos 40 anos na definição do conceito é clara. Segundo Savage e Warde (1993), para que haja nobilitação no espaço urbano tem de se dar uma coincidência de quatro processos: i) uma reorganização da geografia social da cidade, com substituição, nas áreas centrais da cidade, de um grupo social por outro de estatuto mais elevado; ii) um reagrupamento espacial de indivíduos com estilos de vida e características culturais similares; iii) uma transformação do ambiente construído e da paisagem urbana, com a criação de novos serviços e uma requalificação residencial que prevê importantes melhorias arquitetónicas; iv) por último, uma mudança da ordem fundiária, que, na maioria dos casos, determina a elevação dos valores fundiários e um aumento da quota das habitações em propriedade.
8Por definição, o termo nobilitação urbana passou, assim, a designar o movimento de chegada de grupos de estatuto socioeconómico mais elevado, geralmente jovens, de classe média em áreas desvalorizadas do centro da cidade. O efeito é que essas áreas tornam‑se social, económica e ambientalmente valorizadas, sofrendo um processo de filtering up. Constitui um processo de mudança socioespacial, em que a reabilitação de imóvel residencial num bairro da classe trabalhadora ou de génese popular/tradicional, por novos moradores relativamente endinheirados, leva ao desalojamento de ex‑moradores que deixam de poder pagar o aumento dos custos de habitação que acompanham a regeneração (Pacione, 2001). Por conseguinte, é um processo pelo qual os bairros pobres e de classe trabalhadora no centro da cidade são renovados através da entrada de fluxo de capital privado e de proprietários e inquilinos da classe média; bairros que aliás já tinham experimentado um desinvestimento e um êxodo da classe média. De acordo com Smith (1996), o processo socioespacial que a nobilitação urbana encerra representa uma inversão dramática e imprevisível do que a maioria das teorias urbanas do século xx tinham vindo a prever como evolução para o centro da cidade. Posto isto, a nobilitação urbana desdobra‑se numa variedade de configurações socioespaciais e geográficas, que precisam de ser distinguidas tendo em conta o facto de o processo ser liderado liderado por fluxos de capital de investimento (teorias da produção e oferta) ou de se constituir como um movimento social urbano (teorias do consumo e procura).
- 2 Para uma clarificação em língua portuguesa do conceito de “rent gap”, consultar os trabalhos de Me (...)
9Clay (1979) produziu um dos primeiros estudos importantes sobre a nobilitação urbana. Desenvolveu um dos modelos de estádios deste fenómeno com maior aceitação entre a comunidade científica, tipificando um conjunto de aspetos desde a primeira fase da nobilitação (pioneer gentrification), até uma quarta e última fase (maturing gentrification). As etapas finais do modelo de Clay – que corporizam o paradigma convencional do que vulgarmente se designa por gentrification – envolvem cada vez mais agregados familiares ou indivíduos de classe média (yuppies e dinks) e promotores imobiliários que visam capitalizar a partir do “rent gap”2 gerado pela oportunidade de investimento criada, aumentando assim o potencial de valor imobiliário nesses bairros através da compra de habitações e posterior renovação e revenda para os membros mais ricos da nova classe média.
10Pelo contrário, na primeira etapa da nobilitação urbana primária, os grupos sociais pioneiros da nobilitação apresentam características muito distintas daquelas que definem o gentrifier típico, como elemento da nova classe média. Em primeiro lugar, afirmam‑se a nível identitário pela “refutação do que interpretam como um estilo de vida suburbano das famílias de classe média” e dos grandes projetos de redesenvolvimento urbano para fim residencial; “em alternativa, valorizam a cidade interior histórica, vista como mais ‘humanizada’, e na qual as relações de proximidade e de vizinhança estão ainda presentes” (Rodrigues, 2010: 123).
11Referindo‑se aos gentrifiers pioneiros, Rose (1984) desenvolveu o conceito de marginal gentrifier. A autora defendeu uma conceptualização específica deste processo, diferente da mainstream gentrification. É a marginal gentrification. Este movimento corresponde, grosso modo, a franjas menos privilegiadas das novas classes médias e que apresentam uma significativa clivagem entre um capital escolar e cultural elevado e um baixo nível de capital económico. São indivíduos que se encontram subempregados ou empregados temporariamente em situação precária, mas que continuam a dar preferência às áreas centrais da cidade para fixar residência, tornando‑se gentrifiers pioneiros presumivelmente atraídos pelo estilo de vida não‑conformista e de ambiente urbano social e etnicamente misto e tolerante dos bairros do centro da cidade, recusando a normatividade convencional do urbanismo moderno. Rose dá destaque às mulheres, aos estudantes, aos artistas, aos jovens casais e às famílias monoparentais. Existe um evidente paralelismo entre o conceito de marginal gentrifier e a preferência dada por estes indivíduos à apropriação e residência no centro da cidade e aquilo que Florida (2002, 2004) designou por classe criativa e o privilégio que esta confere às comunidades abertas, tolerantes e plurais.
12Nos marginal gentrifiers é notória a revalorização da noção de urbanidade, sendo que esta decorre ainda do seguimento de uma valorização, por distinção, do centro da cidade, em oposição à ideia de massificação e homogeneidade social introduzida pelo desenvolvimento dos subúrbios e dos novos produtos imobiliários (muitos deles aliás já no centro em virtude da reestruturação urbana) do urbanismo moderno, e que, a seu ver, conferem, à periferia ou aos espaços urbanos entretanto regenerados, contornos de modelo de antítese da vivência urbana. Ora, a valorização da ocupação do centro da cidade procura afirmar‑se como instrumento diferenciador relativamente a esta ideia socialmente comum de “morte da cidade”, afirmando‑se como oposição crítica à ênfase exurbana e ao subúrbio “de massa” como “anti‑cidade”.
13Empregues, geralmente, de uma forma negativa e relativizada, isto é, por contraposição a um centro, os atributos característicos quer dos subúrbios, quer dos espaços de recente reestruturação urbana – ambos manifestações do urbanismo moderno – tornam‑se sujeitos a uma associação pelo entendimento social a todo um campo morfológico e territorial caracterizado por uma vivência social, uma arquitetura e uma organização espacial monótonas, homogéneas, desqualificadas, vulgares, amorfas, tipicamente entendidas pela condição de “sub‑urbano”, ou seja, de nível inferior ao que se entende por urbano. O urbanismo moderno é, com efeito, conotado com um tipo de crescimento urbano em mancha, extensivo, submetido ora a um processo de planeamento extremamente regulado que produz uma organização espacial muito homogénea, da qual decorre a noção de monotonia; ora a processos de cariz mais espontâneo de crescimento urbano, fracamente regulados pela figura do plano de gestão territorial e muito frequentemente caracterizados por níveis muito baixos de infraestruturação básica e acesso limitado e deficiente a bens, serviços e equipamentos de carácter mais qualificado.
14Deste ponto de vista, está‑se à espera de que para os gentrifiers, à semelhança dos estudos de Caufield (1994), o subúrbio corresponda a uma representação socioespacial estigmatizada. O subúrbio é um lugar de exclusão da condição urbana, no qual se registam os mais elevados valores de marginalidade e segregação socioespaciais, de anomia social, de défice de cidadania. O subúrbio apresenta uma existência precária enquanto “espaço político”, de participação cívica e social. Em contrapartida, ao centro são associadas as categorias de qualificado, de genuíno, de típico, de heterogéneo, diferente e cosmopolita, “verdadeiramente urbano”, sendo que a condição de centro passa a ser percecionada como socialmente distintiva. De facto, a noção de periferia não se pode definir por si própria, de forma restrita, pois representa realidades cuja observação é necessariamente contingente e vazia de significado, não tendo valor senão quando relacionada com outras referências, nomeadamente com um centro. Álvaro Domingues refere que “é o grau de afastamento a um centro que clarifica a posição periférica (física, social, morfológica, etc.) e esta é‑o tanto mais quanto maior é a visibilidade, o posicionamento, o poder e a clareza dos atributos da condição central” (1994: 5). A “distância” relativamente ao centro é, assim, uma distância também construída socialmente e que relativiza, por via da mediação da imagem dicotómica de centro/periferia, a posição destes dois tipos de modalidades de organização espacial do espaço‑metrópole a uma visão simplificada. Esta caracteriza‑se por definir o centro pela diversidade e pela densidade de relações sociais, pela intensidade de vida cívica, pelo acesso a informação, pela aglomeração de recursos culturais, políticos, económicos; e o subúrbio representa o exato oposto. Enquanto espaço social, a periferia e o subúrbio são percecionados pela dependência e pela subalternidade face às áreas centrais, sendo desta condição que decorre a capacidade distintiva de residência nas áreas centrais da cidade.
15A imagem que domina na construção social do subúrbio é a de que o suburban sprawl corresponde a proporções territoriais cada vez mais extensas, degradadas, incaracterísticas, compostas por áreas extensivas invariáveis de lotes residenciais (uma função dominantemente residencial), desprovidos de conforto e diversidade estéticas e funcionais; pela ausência ou défice de espaços públicos; pela má qualidade ambiental; por uma distância ao centro e, portanto, obrigando a fortes pendularidades casa‑trabalho, muito frequentemente incomportáveis com estilos de vida baseados na necessidade de uma constante centralidade; por subinfraestruturação, ou seja, pelo défice de serviços e de equipamentos públicos e privados, em quantidade e em qualidade. Enfim, condições que constroem a imagem de subúrbio como algo isento de legibilidade e identidade urbanas. É o subúrbio de massa como imagem da “anti‑cidade”, que inclui áreas de disfunções de variada ordem, principal subsidiário para aquilo que alguns autores têm vindo a alertar como sendo a iminência da morte da cidade. Os subúrbios constituem‑se maioritariamente por um parque habitacional periférico, de baixa qualidade e pelo zonamento de áreas unifuncionais que negam a qualidade urbana assente na diversidade e na polivalência. Tendo‑se iniciado como um mecanismo de fuga à cidade confusa, o subúrbio transformou‑se no seu próprio inverso.
16Como é óbvio, este discurso de caracterização da periferia e dos subúrbios, ainda que bastante vulgar e difundido, está longe de esgotar a diversidade de formas territoriais características do conceito. Sobretudo, tendo em conta as lógicas atuais de organização e estruturação urbanas, componente imediata e sistemática da reestruturação económica e social, que desconstroem o modelo simplista da metrópole clássica. Este discurso assenta na ideia da metrópole monocêntrica marginada por um conjunto de anéis concêntricos, cujo funcionamento é estritamente dependente do centro. Contudo, persistente nas representações sociais dos gentrifiers sobre o que é o urbanismo moderno.
17Por conseguinte, uma visão que se fixe única e exclusivamente nesta perspetiva claramente dicotómica centro/periferia é pouco válida e, de certo modo, artificial, na medida em que a construção social da periferia e do subúrbio, entendida como o referido anteriormente, corresponde na generalidade a uma imagem e “preconceito” social, embora seja essa que predomina claramente nas representações sociais do gentrifier e que se configura, por isso, altamente influente na estrutura simbólica motivacional do mesmo e na sua decisão de residir em áreas centrais.
- 3 Expressões em itálico do autor.
18Entendendo o subúrbio pelo senso comum generalizado de um modo de vida monótono e de débil qualidade a vários níveis, em torno da ausência de espaço de qualidade, reduzido à expressão mais simples do alojamento, sofrendo de carência generalizada de infraestruturas, acesso a bens, a serviços e a equipamentos urbanos complementares que fazem, hoje, parte do conforto urbano mínimo, o gentrifier passa a identificar o centro histórico como espaço socialmente distintivo, logo mais compatível e ajustado a uma trajetória de mobilidade social ascendente que o assiste na atual fase de ciclo de vida. O marginal gentrifier, também de acordo com Walter Rodrigues, valoriza as áreas antigas do centro, “pelo seu urbanismo distintivo, pela sua arquitetura típica e pelos seus bairros históricos tradicionais, pelas ‘suas gentes’ genuínas e o seu comércio tradicional de proximidade e de pequena escala” (2010: 123).3 Todos estes aspetos produzem um ambiente urbano que contrasta com o dos subúrbios, de urbanização produzida de forma massificada, “socialmente ‘desumanizada’, urbanisticamente ‘descaracterizada’” ou seja, onde predomina uma produção “urbanalizada” do espaço contemporâneo e do ambiente construído, crescentemente dominado pelos centros comerciais (enquanto catedrais de consumo) e pelos condomínios privados, entre outros novos produtos imobiliários no âmbito da regeneração urbana.
19Um outro aspeto ainda mais importante para a presente reflexão – igualmente referido por Rodrigues (ibidem) – e que caracteriza o urbanismo distintivo da gentrification no centro da cidade enquanto prática emancipatória é o facto de os marginal gentrifiers valorizarem “a diversidade, a tolerância e a liberdade de expressão das culturas e dos estilos de vida (conceitos caros ao discurso oficial das cidades criativas) que identificam com a identidade do centro histórico, interpretado como espaço liminar e de emancipação, em contrapartida a uma maior homogeneização e uniformização social, cultural e de estilos de vida”4 dos espaços suburbanos e do urbanismo moderno.
20Na mesma linha de pensamento de Caufield (1994) e Beauregard (1986), Ley (1996), Butler (1997) e Lees (2004) argumentam que uma das marcas da nova classe média é a sua capacidade para explorar o potencial emancipatório do centro da cidade para criar uma nova classe urbana, culturalmente sofisticada, menos conservadora. Ley e Mills (1986), por seu lado, defendem que a nobilitação urbana nas cidades canadianas foi iniciada por uma contracultura marginal que procurava espaços da cidade interior capazes de representar uma ideologia expressiva contra a ideologia dominante moderna dos anos 50 e 60. Por exemplo, os autores comprovaram que nos espaços da cidade centro os gentrifiers eram mais propensos a apoiar, democraticamente, os candidatos liberais ou minoritários. Além disso, os próprios políticos reformistas eram muitas vezes os profissionais que surgiam na sequência do ativismo de bairro no centro da cidade.
21No seu trabalho de 1994, David Ley demonstrou que os distritos principais nobilitados nas três maiores cidades do Canadá – Toronto, Montreal e Vancouver – tinham um eleitorado que era predominantemente liberal, acreditava nas medidas socialmente inclusivas, em política reformistas para a equidade e a multiculturalidade. Para o autor, tais políticas exibiam reformas que procuravam conciliar a gestão do crescimento económico com a do desenvolvimento humano, a melhoria dos serviços públicos, nomeadamente de habitação e de transporte, e um governo urbano mais aberto, prevendo diversas formas de empowerment.
22Esta identidade é concomitante com as atitudes demonstradas pelos marginal gentrifiers, até porque o desalojamento não ocorre – porque os recém‑chegados se apropriam frequentemente de uma habitação que está vaga ou parte do volume de negócios normais de mercado de arrendamento ou compra e venda à escala do bairro – logo, as mudanças no parque edificado são insignificantes. Por outro lado, e novamente recorrendo a Rodrigues (2010: 124), “o empreendimento da reabilitação […] é quase exclusivamente protagonizado pelos próprios gentrifiers, com recurso escasso a um setor imobiliário profissional. A natureza ‘faça você mesmo’ (do it yourself) do processo da nobilitação urbana, desta fase inicial, é um atributo inerente da própria identidade do processo e dos estilos de vida dos seus protagonistas”, mormente jovens adultos das profissões intelectuais e artísticas, entre outras atividades criativas no âmbito da reabilitação e cultura urbanas, arquitetura e design). Assim sendo, não é de estranhar que este estágio registe apenas renovações de pequena escala, em que normalmente predomina um trabalho de reabilitação motivado pelo “amor pela primeira casa”.
23Todos estes fatores explicam a apropriação pontual e fragmentada do processo da nobilitação urbana no espaço‑bairro. Tipicamente, a nobilitação é iniciada por algumas famílias em busca de pequenos espaços disponíveis em bairros desvalorizados que oferecem ambientes para estilos de vida alternativos (por exemplo artistas de vanguarda, as comunidades de gays e lésbicas). Esta primeira vaga corresponde a uma nobilitação urbana, de acordo com Mendes (2008), ainda em processo embrionário, de crescimento lento e esporádico, manifestando‑se no espaço urbano de forma pontual e fragmentada, numa pequena escala circunscrita e limitada a apenas alguns fogos ou, quando muito, a alguns quarteirões de bairro. Ela revela o estádio ainda primário em que se encontra a gentrification, semelhante aliás a outras áreas do interior da cidade de Lisboa, bem como a outras cidades da Europa do Sul e que é necessário distinguir dos moldes da gentrification enquanto estratégia urbana global ao serviço da cidade revanchista e da ofensiva neoliberal que a informa, modelo mais generalizado nas cidades do mundo anglo‑saxónico.
24Esta perceção plurifacetada do processo enfatiza a importância do contexto temporal e espacial na compreensão da complexidade e especificidade da geografia da nobilitação nas cidades do Sul da Europa e adverte contra a suposição de que a teoria convencional tem aplicabilidade direta em todos os níveis da hierarquia urbana global. De todas as chamadas de atenção – neste âmbito do estudo da nobilitação urbana – a revelar uma maior sensibilidade à contextualidade, o artigo de Smith e Graves (2005) usa a cidade de Charlotte, na Carolina do Norte, nos EUA, como estudo de caso para ilustrar uma geografia da gentrification pela qual as motivações/os fatores explicativos e as tendências características de cada estágio não se encaixam no enquadramento conceptual das teorias tradicionais do fenómeno. Nesta cidade média norte‑americana, a nobilitação urbana foi introduzida pela primeira vez no início dos anos 70, quando os líderes empresariais reconheceram a importância de revitalizar o espaço central da cidade de uma maneira que reforçasse a sua identidade corporativa e permitisse uma gestão estratégica da imagem urbana a partir de objetivos conducentes àquela. A produção da nobilitação urbana neste contexto caracterizou‑se, ao invés do que seria de esperar, por uma total ausência de marginal gentrifiers e dos tradicionais grupos urbanos pioneiros, levando alguns teóricos a questionar a validade da linearidade do modelo tradicional das fases, tal como defendido por Clay (1979). Além de fornecer uma análise de gentrification ao nível da hierarquia urbana (e à escala regional) que há muito era negligenciada, o artigo contribuiu para introduzir uma perspetiva crítica, mais flexível e contextual para a compreensão da causalidade da nobilitação urbana enquanto processo.
25Coletivamente, a pesquisa tradicional sobre a gentrification produziu dois princípios que estão no cerne dos mais importantes estudos urbanos sobre este processo. Primeiro, que o processo evolui por uma série de fases temporal e espacialmente específicas, à medida que avança através do espaço urbano (estudo pioneiro de Clay, 1979). Segundo, que a sua causalidade deriva em grande parte dos fatores associados tanto às explicações do lado da oferta (teorias da produção) como do da procura (teorias do consumo) (Ley, 1996; Smith, 1996; Lees, 1994; Lees, Slater e Wyly, 2008). As explicações tenderam a dicotomizar‑se, procurando, cada uma delas, privilegiar a supremacia de uma esfera em relação à outra no estudo do processo de gentrification.
26As primeiras teorias, de influência marcadamente marxista, procuraram enfatizar a importância do capital e dos diversos agentes institucionais (Estado, Poder Local, Bancos e outras instituições financeiras) no processo de reestruturação do espaço urbano, enquanto as segundas privilegiaram a esfera do consumo relativamente à da produção, no mercado da habitação e do solo urbano. De forma sucinta, as teorias que sustentam a primazia da produção fazem derivar o processo de nobilitação urbana do movimento e circulação de capital nas áreas urbanas, procurando explicar este mesmo processo através da desvalorização que sofre o solo urbano, face ao rendimento que um novo investimento poderia ter. São sobretudo encabeçadas pelos trabalhos dos anos 70 e 80 de Neil Smith e David Harvey.
27Por seu turno, as teorias que privilegiam o consumo entendem a nobilitação urbana como consequência direta das mudanças verificadas na estrutura demográfica e social da população e no estilo de vida de certos sectores da classe média, nos valores e padrões de consumo a ele associados. Defendem que estas mudanças se enquadram na emergência de uma condição social e urbana pós‑moderna, cujos indícios e manifestações são difíceis de ignorar como evidentes, como demonstram os trabalhos Chris Hamnett, David Ley e Tim Butler.
28Enquanto uma considerável atenção tem sido dada à análise das etapas mais recentes do processo (Hackworth e Smith, 2001) e à exploração da interseção e da complementaridade entre as teorias da produção e do consumo, a verdade é que muito raramente se tem dado atenção explícita à tese de que os estágios/fases da gentrification e respetiva dinâmica causal são diferencialmente moldados pela escala espacial e pelo contexto urbano onde ocorrem. Mais, continua a haver uma tendência para assumir que as motivações, os mecanismos, os atores e as fases da nobilitação urbana identificados nas cidades globais vão ter paralelo nas cidades de nível inferior da rede urbana. Uma literatura ainda incipiente, no entanto, sugere que há uma necessidade premente de análises geograficamente mais sensíveis que demonstrem que a “gentrification is not the same everywhere” e que, em alguns casos, as diferenças podem ser suficientes para problematizar amplamente os modelos teóricos aceites (Lees, 2000).
29A persistência da natureza caótica do conceito gentrification é particularmente problemático à luz da perspetiva geográfica. De facto, os diversos processos comumente referidos como nobilitação urbana na literatura são muito profícuos para demonstrar geografias contrastantes (Van Criekingen e Decroly, 2003). Existe a visão revanchista dos sucessivos fluxos e avanços violentos e contestados da fronteira da nobilitação urbana no centro da cidade norte‑americana como manifestações de antiurbanismo, e que se predispõe para uma interpretação de causa e efeito que se inclina para observar os conflitos socioespaciais e o desenvolvimento urbano desigual e fragmentado, ambos gerados pelos circuitos globais e movimentos cíclicos de capital. Em contraste, as análises canadianas e europeias têm‑se centrado mais na contribuição da gentrification para a criação de ambientes urbanos de emancipação, de tolerância e de diversidade social na cidade centro. As análises de causalidade neste último caso inclinam‑se para as ações e escolhas dos indivíduos (agência) no contexto de preocupação das políticas públicas e de compromissos municipais para criar espaço urbano de qualidade para todos (na leitura lefebvriana de direito à cidade e da revolução urbana). São contrastantes os argumentos e as políticas públicas que promovem e reconhecem a gentrification como um processo positivo para o bairro, com aqueles que nela reconhecem um fenómeno socioespacial que acarreta efeitos nefastos para o ambiente social destas unidades de vida urbana. Estes dois discursos que dominam a literatura científica da gentrification sobre os efeitos do processo são referenciados por Lees (2000, 2004) como a “tese da cidade emancipatória” versus a “tese da cidade revanchista”, respetivamente.
30A tese da cidade emancipatória está implícita em grande parte na literatura da gentrification quando incide sobre os gentrifiers e nas suas formas de agência enquanto atores sociais protagonistas do processo, como, por exemplo, no caso dos escritos de David Ley (1994, 1996) e Tim Butler (1997). Mas é no trabalho de Jon Caulfield (1994) que esta tese é efetivamente reconhecida por ser explicitamente declarada. Ela recupera uma antiga tese em que a cidade tem sido retratada como um espaço emancipatório ou libertador. A análise de Caulfield (1994) centra‑se na nobilitação urbana registada em Toronto, no Canadá, e retrata o desenrolar deste complexo processo no interior da cidade como um movimento social emancipatório e a própria gentrification como uma prática social crítica e emancipatória. Nesta tese, a nobilitação é vista como um processo que une as pessoas no centro da cidade, e cria oportunidades de interação social, de tolerância e de diversidade cultural. A nobilitação urbana é vista como uma experiência libertadora quer para os gentrifiers como para aqueles que entram em contacto com eles. Caulfield argumenta que os encontros entre pessoas “diferentes” na cidade são inerentemente libertadores, mobilizando oportunidades de subversão da cultura de consumo dominante e criação de atividades sociais que ponham em evidência as contradições do espaço capitalista, abrindo oportunidades para o desenvolvimento de projetos urbanos alternativos.
31A nobilitação urbana tem sido associada a movimentos sociais no centro que apelam à diversidade, à diferença e à mistura social. De acordo com uma tradição de longa data de pesquisa do processo, os desejos “liberais” das novas classes médias pela diferença e pela diversidade (n)da cidade assumem‑se como a chave explicativa para o processo de nobilitação e para a criação de uma cidade mais diversa e tolerante, e chamam a atenção para como os benefícios da miscigenação social em comunidades urbanas se tornaram numa temática de inquestionável importância no discurso político urbano. A diversidade sociocultural sempre foi um leitmotiv para as novas procuras de habitação nos bairros históricos e tradicionais da cidade centro. Uma das excelentes amenidades da vida na cidade densa é sabido ser a exposição à diversidade social, cultural e étnica. O ambiente urbano de diversidade é uma fonte contínua de estímulo, renovação e um lembrete da relatividade cultural de que se constroem as identidades e os próprios estilos de vida (Lees, 2008).
32De algum modo, este “espírito da diversidade” tem sido associado, até historicamente, à capacidade particular das cidades para serem criativas e gerarem inovação (Hall, 2000). Inquestionavelmente, e alavancada pelo discurso da cidade criativa, a problemática da mistura social migrou recentemente para a vanguarda do debate da gentrification (Bridge et al., 2012). Em parte, isso tem sido estimulado por políticas urbanas neoliberais promovendo a mistura social. No entanto, pesquisas recentes mostram a incapacidade dos bairros nobilitados em permanecer socialmente mistos, tendo levado teóricos, técnicos e especialistas a repensar a associação entre a nobilitação urbana, o desalojamento e a segregação residencial. Não existe na atualidade uma base de evidência para a suposição generalizada de que a política de nobilitação (marginal) ajudará a aumentar e promover a mistura social e, assim, incrementar o capital social e a coesão social das comunidades urbanas. Especialmente os trabalhos de Rose (2004) e Davidson (2010) demonstram que pouca evidência foi encontrada para comprovar as interações significativas entre as populações, tendo sido muito escassas as perceções compartilhadas de comunidade entre gentrifiers e população autóctone dos bairros entretanto nobilitados. O último autor, por exemplo, afirma que o carácter particular das novas formas de nobilitação urbana (por exemplo condomínios privados de luxo) têm desempenhado um papel importante na emergência daquilo a que o autor se refere como “tectónica social”, influenciando, consequentemente, a organização espacial urbana em direção a uma crescente segregação a uma microescala e também a uma fragmentação do espaço urbano contemporâneo. Até porque a apropriação social pelo gentrifier e a geografia das suas sociabilidades tende a realizar‑se sob a forma de enclaves e de clara descontinuidade socioespacial com os tecidos sociais envolventes ou que se encontram em contiguidade física/territorial.
33Têm surgido uma série de estudos sobre interação social nesses bairros nobilitados que apontam para o facto de que as redes sociais entre vizinhos tendem a ser socialmente segregadas, especialmente em termos de estatuto socioeconómico e etnia. Um influxo de residentes endinheirados num bairro de classe média desfavorecida pode não aumentar a coesão social, uma vez que os contactos entre indivíduos/agregados familiares de baixo e os de elevado rendimento tendem a ser superficiais na melhor das hipóteses, e francamente hostis na pior delas (Osman, 2011). As novas classes médias revelam no discurso um desejo de diversidade e diferença, mas inclinam‑se para uma prática quotidiana de apropriação social do espaço de autossegregação. As noções de diversidade residem apenas nas representações socioespaciais dos gentrifiers – no autoconceito de cidadãos cosmopolitas – ao invés de residirem nas suas ações práticas, refletindo mais uma forma de se definirem e distinguirem enquanto fação específica de classe, do que de efetiva apropriação social do espaço de forma tolerante, aberta e plural. Não houve transferência de capital social dos grupos de maior estatuto socioeconómico para os de menor, nem qualquer um dos outros resultados desejados a partir da introdução de uma população de classe média em bairros desvalorizados mas centrais da cidade. Em parte, isto deveu‑se à natureza transitória dos novos moradores, mas também à natureza espacialmente segregada dos novos produtos imobiliários de redesenvolvimento urbano contíguos a zonas de comunidades desvalorizadas e desprovidas de qualquer continuidade socioespacial. Como Davidson (2010) argumenta, os mundos de vida das duas populações raramente se cruzam. Não trabalham nos mesmos lugares ou usam o mesmo modo de transporte. Não frequentam os mesmos restaurantes ou espaços públicos. Apresentam estruturas familiares diferentes. Revelam, igualmente, distintas expectativas e aspirações face à comunidade e à “suposta” mistura social, indicador que suporta a diversidade e a heterogeneidade essenciais à fixação da classe criativa. De acordo com os dados empíricos recolhidos pelo autor na área de estudo sobre as relações localizadas entre os gentrifiers que entraram no bairro e os residentes de longa duração no mesmo, Davidson (2010) conseguiu apurar que os laços sociais raramente foram transversais à classe e às linhas étnicas, e que as redes sociais nos bairros pareciam impermeáveis às mudanças que ocorriam na envolvente, tendo‑se inclusivamente registado confrontos entre as normas de gentrifiers e as dos residentes de longo prazo. Na mesma linha reflexiva, a autora Loretta Lees (2008) defende de forma muito crítica e corrosiva a revisão das políticas de mistura social assentes na retórica da gentrification e da “efetiva” capacidade destas produzirem ambientes urbanos verdadeiramente inclusivos.
34Em grande medida, a tese emancipatória é o equivalente a uma reflexão das ideologias associadas à nobilitação urbana marginal e pioneira. Existe um corpo significativo de argumentos sobre a nobilitação urbana como libertadora, crítica e processo de uma contracultura. Todavia, há uma dimensão temporal subjacente ao entendimento do avanço do processo. Para a perspetiva que encara a gentrification numa fase pioneira, esta apresenta aspetos mais positivos e tributários de um desenvolvimento urbano alternativo (espaços do centro como liminares), ao invés das fases posteriores mais agressivas do processo.
35A ambiguidade e as contradições entre discurso e prática de uma nobilitação urbana promotora de mistura social, da “diferença”, e tributária de uma postura mais emancipatória no entendimento do espaço urbano espelha as contradições evidentes do programa das cidades criativas lançado pela tese de Florida (2002, 2004). Num sentido simples, a diferença é “incluída” no discurso da cidade criativa, mas de uma maneira muito circunscrita, sem concretização prática e muito frequentemente míope face às reais condições sociohabitacionais das minorias. Tal tratamento contraditório da “diferença” no discurso do planeamento urbano para uma política da criatividade tem duas dimensões. Por um lado, os discursos da dita “diferença” são apropriados pela política cultural urbana, a fim de transformar aquela categoria num ponto a favor do marketing, para vender as cidades como lugares bons para viver, trabalhar e visitar. Uma neoliberalização da diferença, na visão de Catungal (2009), na medida em que o conceito é instrumentalmente manipulado pelas campanhas de marketing territorial para forjar uma ideia de urbanidade multicultural que é atraente para os jovens urbanos profissionais. Por outro lado, os impactos negativos do planeamento da cidade criativa sobre as comunidades e os corpos esquecidos permanecem em grande parte não reconhecidos pelos defensores da ideologia da cidade criativa (Barnes et al., 2006; Zimmerman, 2008).
36Na sua poderosa e frequentemente citada crítica da cidade criativa, Peck (2005) observa que o culto da criatividade na política urbana reproduz as agendas do boosterism, apoiando as formas anteriores de empreendedorismo urbano. O efeito, observa o autor, é reinventar as cidades enquanto máquinas de crescimento e lugares de acumulação de capital e valorizar a atração das novas classes médias como o ingrediente‑chave de economias urbanas mais competitivas, indo de encontro à cultura do novo capitalismo, ou na mesma linha de pensamento mas na expressão de Allen Scott (2006), da economia cultural do capitalismo tardio.
37Um impasse particular para a teoria crítica urbana em geral é que as agendas políticas para a cidade criativa continuam a usar as formas liberais de multiculturalismo como um quadro/cenário para narrar/forjar uma identidade glocal em articulação com novas formas de cidadania transnacional, cosmopolita e criativa, forma comum de construção da hegemonia num período de domínio do capitalismo transnacional. Existe um reconhecimento crescente de que, a nível urbano, o multiculturalismo e a diversidade devem ser potenciados para atrair talentos e promover a criatividade e a inovação. A diferença é mercantilizada, reduzida a uma comodidade que pode ser mobilizada para atrair capital humano, turistas, investimentos e promover uma economia urbana vibrante (Okano e Samson, 2010). A ênfase é colocada na criação de bairros boémios e na comercialização e celebração da diferença através de manifestações públicas, tais como festivais e arte pública (McGuigan, 2009; Vivant, 2010). Neste campo, é importante explorar se as paisagens culturais que são vitais para a cidade criativa servem realmente para privilegiar determinadas memórias em detrimento de outras e, em caso afirmativo, de que forma o fazem. Mais, tanto as formas de arte pública urbana, como o aproveitamento do património construído, como ainda outras manifestações que inundam as paisagens urbanas neste quadro, não podem ser perspetivadas apenas na sua função puramente económica como meras comodidades para uma classe criativa, ao serviço dos interesses neoliberais e mercantis da cidade‑empresa. Na verdade, constituem espaços incrivelmente políticos, propícios para a negociação da diferença num contexto de cidades crescentemente multiculturais (Scott, 2006; Pratt, 2008, 2010, 2011).
38Em muitos casos, a apropriação da diversidade étnica e cultural para vender a cidade criativa serve como uma expressão de poder e privilégio, esvaziando as práticas da “diferença” e da “tolerância” da sua integridade política e do seu significado cultural. No entanto, esta tendência sugere também que a mercantilização da diferença pode potencialmente proporcionar uma introdução na produção, apropriação, vivência e governação do espaço urbano contemporâneo, de formas mais críticas do multiculturalismo, reconhecendo nelas não apenas espaços de controlo, mas sítios de resistência. Este é, a nosso ver, um primeiro passo para contestar e reclamar a diversidade na sociedade urbana contemporânea da cidade criativa. Para reinventar os códigos narrativos e para que as teorias convencionais da cidade possam ser desestabilizadas, ao mesmo tempo que se possibilita a criação de novos modos de olhar que permitem a produção de um espaço urbano mais plural, aberto, democrático e crítico.