1A investigação sociológica sobre violência doméstica em Portugal remonta aos anos 1990 (Lourenço et al., 1997; Casimiro, 1998; Pais, 1998). Como resultado parcial destes estudos, e também influenciada pelas prioridades entretanto estabelecidas a nível da União Europeia (UE), a agenda governamental nacional começou a incluir preocupações relativas à prevenção e combate da violência doméstica, com a criação do Plano Nacional para a Igualdade (desde 1997), do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (desde 1999) e da Estrutura de Missão Contra a Violência Doméstica (em 2005). A este propósito assume particular relevo a lei n.º 7/2000, que, pela primeira vez, considerou a violência doméstica um crime público. Durante a década de 2000 assistiu‑se a uma expansão da rede de abrigos para mulheres vítimas de violência: entre 1993 e 2011, registou‑se um aumento de 9 para 35 neste tipo de estrutura de apoio (Coutinho e Sani, 2011). Por iniciativa pública e de organizações não‑governamentais (ONGs), realizaram‑se durante este período diversas campanhas contra a violência doméstica tendo como população‑alvo os escalões etários mais jovens. São disso exemplo a campanha “Amor Verdadeiro”, lançada pela CIG – Comissão pela Cidadania e Igualdade de Género em 2008,1 e a campanha “Love Hurts?”, levada a cabo pela associação não te prives – Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais, também no mesmo ano, ambas incluindo um enfoque especial no tema da violência no namoro.2 Refira‑se também a relevância do Observatório de Mulheres Assassinadas, coordenado pela UMAR, responsável pela recolha e denúncia de mortes por violência doméstica com base nos casos noticiados pelos média.3
2Na sequência da revisão do Código Penal em 2007, o crime de violência doméstica foi redefinido, desta feita abrangendo “pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação” (artigo 152, n.º 1, alínea b). Todavia, no que se reporta explicitamente à violência conjugal lésbica, entendida enquanto atos de violência física, psicológica, simbólica e/ou sexual não consensual perpetrados no contexto de uma relação íntima, não são conhecidas medidas específicas de prevenção e combate a este tipo de violência.
3No que se reporta à violência que vitima pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgénero (LGBT) em geral, regista‑se algum trabalho associativo de relevo. A este respeito destaca‑se a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), cuja campanha em 2008 tratou especificamente o tema da violência entre casais do mesmo sexo, bem como a Associação ILGA Portugal, cujo investimento nesta área inclui formação junto das autoridades policiais bem como a Linha LGBT, um serviço telefónico de apoio e de informação LGBT em funcionamento desde 2011, responsável pela receção de diversas denúncias de violência.4 Refira‑se também a existência de um número verde a funcionar desde 2004 por iniciativa do PortugalGay.PT, igualmente responsável pelo reencaminhamento de denúncias de violência. No entanto, nenhuma destas iniciativas visou exclusiva ou diretamente a violência conjugal entre mulheres.
4O défice de trabalho de prevenção e combate à violência conjugal lésbica não constitui uma característica própria da realidade portuguesa, sendo, pelo contrário, assinalada a nível internacional. Na verdade, as intervenções institucionais e políticas em torno do tema da violência doméstica refletem uma visão heteronormativa, resultante, de resto, da tradição dos estudos sobre família e sexualidade que, até à década de 1990, se ancoravam sobretudo nas relações entre pessoas de sexo diferente. Como resultado, constata‑se a invisibilidade de outras violências de género – incluindo a violência transfóbica e bifóbica –, bem como da violência doméstica entre pessoas do mesmo sexo. Para esta invisibilidade contribui também, seguramente, o receio de patologizar comunidades já de si fragilizadas devido ao contexto de homofobia social e institucional dominante, no qual a conquista de direitos enfrenta obstáculos e representa riscos (Hester e Donovan, 2009). Neste contexto, as associações LGBT também não têm priorizado o tema da violência, seja por estratégia política – i.e., pelo medo do efeito de ricochete face a conquistas jurídicas e sociais previamente adquiridas –, seja por ausência de recursos humanos e financeiros (Knauer, 1999; Scherzer, 1998; Topa, 2010).
5Não obstante os fatores que justificam o défice de intervenção política e institucional nesta área, constata‑se que, em Portugal, também a investigação sobre violência doméstica entre casais do mesmo sexo é escassa, com as poucas exceções – algumas das quais em material não publicado – a incidirem no campo da psicologia (Antunes e Machado, 2005; Costa, 2008; Costa et al., 2011; Rodrigues et al., 2010; Topa, 2009). No que respeita ao tema da violência doméstica entre mulheres, o défice de reflexão científica torna‑se ainda mais gritante, consolidando, também em meio académico, não só a dupla discriminação que afeta as mulheres lésbicas, mas também o ‘duplo armário’ de que são vítimas as mulheres lésbicas em situação de violência (Vickers, 1996; Topa, 2010). A ausência de uma ampla base de dados coloca questões importantes ao nível das políticas e dos serviços disponíveis para mulheres vítimas de violência conjugal lésbica.
6Este artigo tem um objetivo triplo. Em primeiro lugar, trata‑se de proceder a uma revisão dos principais contributos teóricos sobre violência conjugal entre mulheres a nível internacional. Segue‑se uma análise temática com base num estudo empírico de carácter exploratório realizado no contexto português, visando identificar experiências, representações e necessidades por parte da comunidade lésbica relativamente ao tema da violência doméstica. Por fim, apresentam‑se propostas de intervenção teórica, institucional e política tendo como pontos de partida os aspetos levantados nas secções precedentes.
7A maior parte dos estudos realizados conclui que a incidência de violência conjugal é semelhante em casais de sexo diferente e do mesmo sexo (Matthews et al., 2002), contribuindo para este fenómeno um conjunto de fatores de risco que incluem assimetrias de poder, dependência económica, experiência passada de abuso, stress e consumo de substâncias como álcool e drogas (Farley, 1996; Lie et al., 1991; Goglucci, 2000).
- 5 Outing pode ser definido como a revelação não consentida da orientação sexual de terceiros.
8No caso particular da violência conjugal entre mulheres, acrescem fatores especificamente associados à condição lésbica num contexto heterossexista, heteronormativo e lesbofóbico dominante. Tal contexto é propiciador de condições favoráveis à acumulação de fatores de opressão, colocando as vítimas de violência conjugal lésbica numa situação de particular vulnerabilidade, decorrente do estatuto invisível da sua biografia íntima. Incluem‑se nestes fatores de opressão o isolamento, a falta de redes sociais de apoio (família, amigas/os, vizinhança, etc.), a homofobia internalizada, a falta de formação de agentes institucionais e as ameaças de outing5 em contexto familiar e profissional (Elliot, 1996). Esta conjunção de elementos amplifica a gravidade dos processos de violência conjugal lésbica, remetendo a vítima para uma vivência particularmente isolada e silenciada (Matthews et al., 2002; Scherzer, 1998).
9A montante da invisibilidade da violência entre mulheres estão razões de ordem cultural. Com efeito, os dicotómicos papéis de género associados à construção sociocultural da mulher (e do homem) tendem a descurar a possibilidade de as mulheres serem agressoras no contexto de uma relação íntima (Rose, 2003; Little e Terrance, 2010). Tal fator contribui para o défice de informação sobre violência conjugal lésbica.
10Contrariamente ao que o sistema binário de género procura reproduzir, a incidência de violência doméstica entre mulheres é uma evidência. Se alguns estudos falam de 11 a 12% de violência conjugal entre lésbicas (Tjaden & Thoennes, 2000; Rose, 2003), para outros estes números são mais elevados, de 22 a 46% (Elliot, 1996; Waldner‑Haugrud et al., 1997). A maior parte dos comportamentos violentos caracterizava‑se por destruição de propriedade (10%), seguindo‑se‑lhe espancamento (9%), perseguição (7%) e violência sexual (menos de 3%) (Rose, 2003: 129).
11Paralelamente à variância estatística encontrada, o enquadramento teórico das questões de violência doméstica entre mulheres é também diverso. Algumas interpretações, influenciadas por correntes feministas e foucaultianas acerca de dinâmicas de género e poder, leem a violência segundo um paradigma dicotómico de desigualdade de género (Hester, 2004), que faz coincidir a agressora com um modelo masculinizante de sexualidade, segundo o qual não há lugar para a negociação, a partilha ou a cedência (Gimeno, 2008; Platero, 2008; Little e Terrance, 2010). Neste paradigma hermenêutico, a vítima tem pouca agência, estando remetida para um papel reativo de dependência face a redes de ajuda que lhe são externas.
12Outros contributos criticam o paradigma anterior por alegadamente reproduzir uma ótica heteronormativa e binária pouco adequada para a análise da violência entre pessoas do mesmo sexo (Ristock, 2002). Outros sugerem uma abordagem de género mais neutra e individual, que valoriza a interpretação psicológica do fenómeno (Island e Letellier, 1991). Há ainda quem defenda que a violência conjugal lésbica e gay apresenta características distintas, designadamente a sua bidirecionalidade, configurando alegadamente situações de violência recíproca, mais do que unidirecional (Johnson, 2006; Lie e Gentlewarrior, 1991).
- 6 A decisão de incluir ativistas neste estudo decorre do seu carácter intencionalmente exploratório, (...)
- 7 O projeto de pós‑doutoramento intitulava‑se “A micropolítica da intimidade: um estudo comparativo s (...)
13Apesar da invisibilidade estatística ou mediática, a violência conjugal lésbica exerce‑se de forma tão agressiva quanto qualquer outra forma de violência doméstica. Foi no intuito de proceder a um levantamento inicial das experiências, representações e necessidades em torno da violência conjugal lésbica que, no terceiro trimestre de 2011, foram recolhidos os testemunhos que analiso seguidamente. Os dados empíricos analisados neste texto reportam‑se a vinte e três respondentes, entre os 20 e 64 anos, vivendo em meio urbano e maioritariamente envolvidas do ativismo LGBT.6 As entrevistas foram realizadas em 2011, inserindo‑se num projeto de pós‑doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia,7 bem como no projeto de investigação “Cidadania Sexual das (Mulheres) Lésbicas em Portugal. Experiências de Discriminação e Possibilidades de Mudança”, também financiado pela FCT.
14Tendo‑se procedido a uma análise temática das entrevistas, sobressaíram três dimensões principais. Em primeiro lugar, no discurso das participantes neste estudo está presente alguma menorização face à importância do tema, seja através da sua alegada insignificância estatística, seja pela reprodução do mito da não‑violência entre mulheres.
A violência conjugal entre lésbicas apresenta diferenças face à violência entre casais heterossexuais ou gays na medida em que as mulheres são menos violentas fisicamente do que os homens. (Entrevista 02, 35‑39 anos)
Há aquela ideia de que a mulher é sempre a vítima e é fragilzinha e é passiva, não há agressora, no caso das mulheres. […] E depois também há aquele, um bocado… que a relação é uma coisa assim perfeita, que vivem muito bem, e portanto negam‑se muito essas questões, não se fala, não se nomeia o assunto, não são identificadas como sendo violência doméstica, não são identificadas como violência, sequer. (Entrevista 11, 45‑49 anos)
Talvez não existam, talvez […] sejam muito poucos casos. Porque as relações homossexuais são mais saudáveis e não geram tanta violência. […] Para já, não há o domínio de um género sobre o outro, normalmente o masculino, não é? […] Portanto, num casal hetero, há sempre a força do masculino sobre o feminino, isso é inevitável. Dois homens medem forças; duas mulheres, isso não acontece. (Entrevista 12, 40‑44 anos)
15Apesar do conteúdo destas respostas tipificar de forma evidente uma das dificuldades reconhecidas pela literatura internacional quando se trata o tema da violência conjugal lésbica – a recusa em admitir que as mulheres possam ser agressoras –, importa sublinhar que esta tendência de recusa não reflete a atitude maioritariamente presente entre as participantes deste estudo. Ainda assim, apenas uma minoria das entrevistadas (9 num total de 23) admitiu conhecer pessoalmente casos de violência entre lésbicas, registando‑se apenas três situações em que a experiência de violência foi descrita na primeira pessoa.
16Quando questionadas acerca das razões subjacentes à invisibilidade do tema em Portugal, são várias as vozes apontadas no sentido do estigma associado à condição de mulher batida e lésbica:
É o duplo preconceito, dupla vergonha. Estar a assumir que é maltratado, as mulheres da violência doméstica também têm essa vergonha, esse estigma, acresce a esse estigma seres homossexual e estares a ser agredido. Não haver denúncias tem a ver com isso, com medo: do agressor e da própria pessoa que vai receber a denúncia. (Entrevista 14, 30‑34 anos)
17É através deste duplo armário que opera a armadilha em que frequentemente se enredam as vítimas de violência conjugal lésbica, remetendo estas mulheres para um silêncio difícil de romper:
As vítimas, lésbicas neste caso, não identificam de imediato a acção exercida sobre elas como violência. Dão outro nome – chamam‑lhe “outra coisa qualquer”. […] Não passa de um puxão de cabelos, soco nos braços, pontapés, empurrões. Mas como não “sovam” a outra pessoa até à exaustão, estes casos ficam na fronteira do ser‑se violento. Lá está, a violência entre duas mulheres é complicada. É identificada, mas não classificada como tal. (Entrevista 04, 30‑34 anos)
18No caso das mulheres lésbicas batidas, assume particular relevo a sua dupla pertença identitária enquanto ‘elo mais fraco’ de um sistema de género binário, patriarcal e heteronormativo, propício à emergência de situações de homofobia internalizada, com baixa autoestima associada. Alguns testemunhos dão também conta da ausência de redes sociais de apoio, descrevendo uma situação de isolamento para a qual são frequentemente remetidas as vítimas de violência conjugal lésbica:
Uma amiga minha teve uma companheira que a agredia sobretudo verbal e psicologicamente. Ela escondeu a situação e só quando chegou ao limite e à agressão física é que procurou ajuda na família e amigos. […] A companheira fazia chantagem psicológica e ameaçava expô‑la no local de trabalho, o que a faria perder o emprego. Manteve‑a afastada da família e dos amigos durante vários anos, evitando todo o contacto social, vigiando‑a quase 24 horas por dia e destruindo‑lhe a autoestima, fazendo‑a crer que ninguém queria saber dela e que ela não valia nada e por isso nem pensasse em deixá‑la. […]. A situação só acabou quando a namorada da minha amiga foi ter com a agressora e ameaçou denunciá‑la à polícia. (Entrevista 10, 45‑49 anos)
19São ainda apontadas razões de natureza socioeconómica, associadas designadamente à acumulação de fatores de discriminação:
Penso que os casais de duas mulheres estarem sujeitos a uma maior probabilidade de pobreza (via disparidades de género na remuneração, tipos de emprego e progressão na carreira em detrimento das mulheres) poderá criar situações de maior tensão, pelas dificuldades do dia‑a‑dia, no casal. (Entrevista 08, 30‑34 anos)
E eu sempre a esquivar‑me: ‘eu não tenho solução, não vou viver para a rua’, ‘isto é muito complicado’. […] O que me afastou de pedir ajuda à polícia foi que eu não tinha para onde morar, não tinha para onde ir. (Entrevista 23, 60‑64 anos)
20Independentemente das justificações encontradas, os testemunhos recolhidos reforçam a hipótese de que as mulheres batidas se tornam invisíveis e as mulheres agressoras são, invariavelmente, as ‘outras’. Neste processo de alterização, verifica‑se a prevalência de um paradigma binário de género que associa violência a comportamentos masculinos, bem como uma ênfase na diferença geracional:
Porque é que eu associo isto sempre às mais antigas e mais retrógradas? Porque são as que escolheram os modelos mais estereotipados de homem e de mulher, portanto também absorvem os modelos da violência. São as que…aquelas do Memorial, que uma ia de smoking e outra ia de vestidinho e punha‑lhe a mãozinha assim nas costas para dançar. Por acaso olhavas para o bar, olhavas para a namorada dela e era logo ‘Estás a olhar para quê?’ – horrível. (Entrevista 15, 40‑44 anos)
21Outras pessoas fazem incidir as causas da violência em características pessoais, o que decorre de um entendimento individual, mais do que social, da violência. O excerto que se segue é disto um bom exemplo:
Ela não faz queixa, tem medo, tem pânico… […] Ela é uma rapariga […] insegura, indecisa, hoje quer isto, amanhã quer aquilo, não sabe ser uma pessoa direta. […] Pronto, e essas pessoas [ex‑companheira e atual namorada desta] já sabem que esse é um dos calcanhares de Aquiles e é por aí que elas entram, pela parte das ameaças, ‘nós vimos e acontecemos’, ‘fazemos‑te e acontecemos’ e ela é pachachona [sic] e não faz queixa e se for preciso volta a ser agredida e, pronto, acomoda‑se. (Entrevista 16, 20‑24 anos)
22As razões subjacentes à invisibilidade da violência conjugal entre mulheres são várias, convocando níveis distintos de responsabilização individual e coletiva. Destes excertos resulta claro que a transversalidade da violência doméstica no que respeita ao capital escolar, à classe social e à origem étnica (Renzetti, 1992; Crenshaw, 1994; Dias, 2004; Duarte et al., 2011) exige análises de incidência micro, centradas na especificidade de cada fator que contribui para processos de exclusão.
23Em segundo lugar, uma análise temática dos discursos produzidos pelas entrevistadas revelou uma maior incidência da avaliação negativa face ao papel do Estado e serviços. Ao nível da alteração jurídica e da inclusão deste tema da agenda político‑partidária, a intervenção estatal é considerada insuficiente, sendo várias as críticas levantadas que suportam este argumento. Quando questionada acerca do papel do Estado na prevenção da violência conjugal lésbica, uma das entrevistadas respondeu: “As lésbicas existem?”, enquanto outra entrevistada respondeu simplesmente “NADA feito”. Outros depoimentos colocam sérias dúvidas face à qualidade dos (poucos) serviços disponíveis. As críticas relativamente aos apoios existentes vão ao encontro das conclusões avançadas no estudo desenvolvido por Helena Topa em 2010:
As entrevistadas referem não ter recorrido a qualquer tipo de pedido de ajuda para enfrentar ou resolver as situações de violência conjugal vividas. Os apoios solicitados foram de índole particular e provisória. Não houve recurso à denúncia por motivo de falta de confiança na eficácia das autoridades e por medo de revitimação. (2010: 17)
24Não obstante o peso da avaliação negativa face às respostas públicas, há um reconhecimento generalizado acerca da importância que o Estado pode ou deve assumir na resolução de problemas associados à violência doméstica.
25A revisão do Código Penal em 2007, que veio reformular o conceito de violência doméstica independentemente da orientação sexual, é identificada como uma mudança positiva por diversas entrevistadas. Por exemplo,
Penso ser muito importante. Reconheceu a existência de relações conjugais (e de namoro) entre pessoas do mesmo sexo e que a violência doméstica pode também ocorrer no seu seio. Passou a mensagem que o Estado sabe e que é suposto as pessoas cidadãs nessa situações recorrerem à lei para se protegerem. (Entrevista 08, 30‑34 anos)
26Foram ainda identificadas áreas em que se reconhece a urgência de um maior empenho público, nomeadamente associações da sociedade civil, polícias, profissionais de saúde e agentes educativos.
27Por fim, a análise das entrevistas realizadas revela uma avaliação negativa face ao papel do movimento LGBT. Com efeito, domina a ideia de que o associativismo LGBT em geral e, lésbico, em particular, se caracteriza pela falta de investimento na área da prevenção e combate à violência conjugal lésbica. Este défice de intervenção associativa é interpretado de várias formas. Por um lado, coloca‑se a tónica na necessidade de priorizar algumas lutas em detrimento de outras, na sequência de recursos limitados. Por outro lado, para algumas participantes a invisibilidade social do tema plasma‑se numa certa alienação por parte do ativismo:
Ainda que já tenha sido referido algumas vezes, a violência conjugal entre mulheres ainda não faz parte do “imaginário” da população. (Entrevista 09, 35‑39 anos)
28Há ainda quem interprete a ausência de maior intervenção por parte do movimento LGBT nesta área como sinal da falta de interesse político em refletir sobre – e agir contra – a violência conjugal lésbica:
Pouco trabalho específico sobre este tema, por vezes até parece ser tabu abordar estas questões e romper com o mito da “relação perfeita”. (Entrevista 05, 45‑49 anos)
- 8 O artigo em questão, “Violência entre casais homossexuais é maior do que nos heterossexuais”, foi p (...)
Por exemplo eu lembro‑me da primeira sessão de debate em que eu estive presente depois de entrar para a associação, […] foi a partir de um filme, mas por acaso na semana anterior tinha saído num jornal – já não sei qual – um artigo relacionado com a violência dentro das relações homossexuais8 e na altura do debate haver alguém que comentou que […] nas relações lésbicas isso nunca poderia acontecer, e eu disse ‘Nunca pode acontecer?’, e depois apresentei o estudo que tinha acabado de sair e as pessoas… Eu era a primeira vez que estava ali, e as pessoas quase acharem que eu ia ali para boicotar o trabalho, porque isso de certeza que era alguém heterossexual que estava a fazer esse estudo e que queria mostrar que nas relações homossexuais, e nas lésbicas em particular que isso existia. Isso foi para mim… Eu disse “não, mas… vocês… mas isso é uma ilusão porque todos nós, sejamos homossexuais ou não, nascemos todos do mesmo caldo, não é por sermos lésbicas que temos aqui um botãozinho ‘olha eu agora vou ser perfeita’, porque não somos”. E isto não é para nós nos martirizarmos, não, é porque em todos nós existe também um lado que não é só brilhante. Não é para nos martirizarmos, mas é para nós também assumirmos que estes lados também existem e que também têm que ser trabalhados. (Entrevista 18, 55‑59 anos)
29Num contexto dominante desfavorável ao reconhecimento da diversidade sexual, a estratégia de idealização dos relacionamentos tem sido seguida por parte do ativismo LGBT. Assim se compreende, por exemplo, o investimento na chamada normalização do queer, cuja face mais visível tem sido as campanhas em torno do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (Santos, 2013b).
30A resistência política por parte do movimento LGBT em trabalhar o tema da violência está associada a razões amplamente tratadas por outros estudos internacionais e que decorrem, em larga medida, do receio de efeito de ricochete jurídico, mas também cultural, face a direitos previamente conquistados. Ainda assim, foi visível o desconforto da maioria das participantes deste estudo relativamente ao défice de trabalho associativo nesta área específica:
[O movimento LGBT] tanto quanto sei, não tem aparecido muito em prol desta questão. Acho que está tudo por fazer, mas é óbvio que as associações LGBT (e não especificamente as lésbicas, mas tod@s, porque é um assunto que diz respeito a tod@s) têm de começar a sair das “guerrinhas” internas e do politicamente correto e começarem a trabalhar especificamente no assunto da violência doméstica, pois é um problema importante que atinge muitos LGBT. (Entrevista 10, 45‑49 anos)
31Não deixa de ser também notório o desconhecimento face às iniciativas, ainda que escassas, levadas a cabo pelo associativismo na área da violência LGBT. Por exemplo, apenas uma em 23 entrevistadas referiu a Linha LGBT – linha telefónica de apoio, da responsabilidade da Associação ILGA Portugal – e nenhuma entrevistada se referiu ao número verde facultado pelo PortugalGay.PT desde 2004, apesar de a necessidade deste tipo de serviço ter sido identificada por várias entrevistadas.9 De modo semelhante, somente um outro testemunho mencionou a iniciativa do Clube Safo quando, em 2006, emitiu um comunicado de imprensa contestando a recusa da Associação Sindical de Juízes em admitir a existência de violência doméstica entre pessoas do mesmo sexo.10
32Como vimos, uma característica da violência conjugal lésbica é a sua ancoragem em processos múltiplos de opressão e exclusão, para os quais contribuem o isolamento, a homofobia (internalizada e externa) e a dependência (emocional, financeira, etc.). Tal realidade torna particularmente significativa uma análise intersecional do fenómeno da violência conjugal entre mulheres.
- 11 Para uma reflexão sobre intersecionalidade e sexualidade, ver Taylor et al. (2010).
33O conceito intersecionalidade, inicialmente avançado por Kimberlé Crenshaw (1994) e Patricia Hill Collins (1998) para sublinhar a dupla opressão experienciada por mulheres negras nos Estados Unidos da América, tem vindo a ser desenvolvido enquanto metodologia feminista que tem em conta a ação simultânea de uma multiplicidade de eixos de identidade e opressão que constituem cada sujeito. Neste caso, socorro‑me da Association for Women’s Rights in Development, que define intersecionalidade enquanto “ferramenta de análise, militância e desenvolvimento de políticas que considera a discriminação múltipla e que nos ajuda a compreender o impacto de diferentes eixos identitários no acesso a direitos e oportunidades” (AWID, 2004: 1‑2).11
- 12 Duas importantes exceções a este propósito constituem os trabalhos de Crenshaw (1994) e Kanhua (200 (...)
34Uma análise intersecional da violência conjugal lésbica parte do princípio de que a violência é situada e multifacetada, exigindo um entendimento holístico do fenómeno. Tal como assinalava Renzetti, já na década de 1990, a investigação sobre violência doméstica entre mulheres necessita considerar os impactos da experiência situada e da discriminação associada à sexualidade, à ‘raça’ e à etnia (Renzetti, 1992). Com efeito, mesmo a nível internacional, os estudos têm tendência para reproduzir uma imagem monocromática – i.e., apenas sobre mulheres brancas – da violência conjugal lésbica, descurando sectores minoritários.12 Um modelo analítico intersecional, que considere o género apenas como uma variável entre outras, apresenta, de resto, vantagens no estudo e tratamento do fenómeno da violência doméstica independentemente da orientação sexual, facto que já havia sido ressalvado na análise desenvolvida por Duarte et al. (2011).
35Por outro lado, importa considerar o fenómeno da violência desde um ponto de vista caleidoscópico, que englobe as suas múltiplas facetas e nuances. Verifica‑se ainda um excessivo enfoque analítico em questões de violência física, descurando processos porventura igualmente corrosivos de violência emocional, psicológica e simbólica, identificados como frequentes entre as participantes lésbicas deste estudo exploratório. Nesta mesma linha, também as causas da violência devem ser entendidas na sua multiplicidade. Como referem Duarte et al. (2011: 11), “se é fundamental que o género não seja esquecido na violência nas relações de intimidade, é imprescindível que não se caia num essencialismo que entenda as mulheres como categoria homogénea. Até porque se as causas são homogeneizadas, também facilmente o serão as soluções.”. Propondo um modelo analítico atento à variedade de facetas e nuances, afasto‑me, portanto, de outros entendimentos teóricos propostos para a análise da violência conjugal, incluindo os paradigmas de género binário e individual, referidos anteriormente.
36Para além dos aspetos mencionados, também os modelos de intervenção institucional e política requerem a convocação de um conjunto de conhecimentos situados, emergentes a partir de diferentes locais de violência e resistência. A articulação de diferentes abordagens, que maximize a experiência acumulada proveniente das organizações de imigrantes, antirracistas, de deficiência, feministas e lésbicas, para citar apenas alguns exemplos, poderá revestir a intervenção institucional e política neste tema da necessária complexidade de resposta em tempo útil, aproximando, finalmente, a lei formal dos usos quotidianos do direito. Neste mesmo sentido seguiam, de resto, algumas das propostas avançadas por Rodrigues et al. (2010: 248) quando diziam que a colaboração “entre as associações de mulheres maltratadas e as comunidades gays e lésbicas tem de ser facilitada para fornecer recursos mais eficazes”.
37Com o intuito de robustecer a prevenção e combate à violência conjugal lésbica, identifica‑se seguidamente um conjunto de medidas de intervenção.
- 13 A necessidade de estudar mecanismos de resolução de conflitos por parte de casais lésbicos foi de r (...)
- 14 Como exemplos de boas práticas de envolvimento académico no campo da violência conjugal (ainda que (...)
38Envolvimento da academia. O conhecimento acerca da violência conjugal entre mulheres é escasso. Importa obter dados estatísticos fiáveis, investigar o perfil das vítimas e das agressoras, proceder a uma tipificação da violência, aferir da hipótese da violência multilateral, identificar os catalisadores da violência e conhecer mecanismos de resolução do conflito conjugal utilizados pelas mulheres.13 Para tal, torna‑se fundamental o desenvolvimento de uma área de estudos lésbicos, claramente deficitária num contexto em que os Estudos Lésbicos, Gays e Queer, de uma forma geral, ainda se debatem com fortes resistências institucionais (Cascais, 2004; Nogueira e Oliveira, 2010; Santos, 2006).14
39Consolidação do trabalho associativo. Um fator importante para a prevenção e combate à violência conjugal entre pessoas do mesmo sexo é o investimento por parte das associações LGBT no tema. Tal investimento está por sua vez dependente da existência de recursos humanos e financeiros que permitam a diversificação de valências, bem como a inclusão do tema na agenda política do movimento. A este respeito, importa salientar o trabalho realizado pela Associação ILGA Portugal junto das forças de segurança pública, no sentido de capacitar os/as agentes para a receção e encaminhamento de denúncias por parte de pessoas LGBT. No que respeita ao campo específico da violência conjugal entre mulheres, a consolidação do trabalho associativo está ainda diretamente relacionada com o fortalecimento do associativismo lésbico, sector que se tem debatido com fortes problemas de afirmação, desenvolvimento e reconhecimento em Portugal (Brandão, 2011; Coelho e Pena, 2009; Nogueira e Oliveira, 2010; Santos, 2007; Santos, 2009). Importa a este propósito sensibilizar também as associações feministas, em especial as que trabalham diretamente o tema da violência, para que desenvolvam iniciativas específicas visando prevenir e construir respostas para esta problemática.
40Formação de agentes institucionais. Três grandes áreas de intervenção institucional assumem uma importância incontornável a este propósito: agentes educativos, profissionais de saúde e profissionais das áreas de justiça e direito. No primeiro caso, trata‑se de desenvolver uma política educativa que assuma a preocupação contra o bullying em meio escolar, alargando‑a ao conceito de violência conjugal independente da orientação sexual, sem deixar de referir os fatores diversos associados a cada forma de violência. Uma comunidade escolar que investe inequivocamente na luta contra a violência estará seguramente mais apta para denunciar e combater essa mesma violência em todos os contextos. Um exemplo de boas práticas a este respeito é a Campanha “Amor Verdadeiro”, lançada pela CIG – Comissão pela Cidadania e Igualdade de Género, em 2008,15que se dirige maioritariamente a um público em idade escolar.
- 16 De acordo com o que foi noticiado pelo jornal Público, as declarações foram as seguintes: “Se um in (...)
41Uma outra área de intervenção institucional significativa é a dos/as profissionais de saúde, incluindo‑se aqui médicos/as, enfermeiros/as, psicólogos/as e demais técnicos/as responsáveis pelo acesso aos cuidados de saúde. A homossexualidade deixou de constar da lista de transtornos mentais em 1973, por iniciativa da Associação Americana de Psiquiatria e, em 1991, foi a Organização Mundial de Saúde que a retirou da sua lista de patologias. No entanto, constata‑se que a homofobia, bifobia e transfobia são ainda preconceitos insidiosos em meio clínico (Carneiro, 2009; Gato et al., 2011; Moita, 2001; Moita, 2006; Moleiro e Pinto, 2009), sendo conhecidos entre nós diversos incidentes a este respeito. Basta recordar que, em 1999, a Classificação Nacional de Deficiências incluiu a expressão “deficiência da função heterossexual”, classificando como pessoa deficiente qualquer pessoa não‑heterossexual, e que, ainda na atualidade, persistem os episódios de discriminação por homofobia no ato de doação de sangue (Nogueira e Oliveira, 2010; Santos, 2005; Santos, 2013a). Um outro exemplo flagrante de homofobia em meio clínico registou‑se em 2009 e incidiu sobre as chamadas terapias de reconversão da orientação sexual e, mais especificamente, sobre declarações de Adriano Vaz Serra, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e de Saúde Mental (SPPSM), e de João Marques Teixeira, presidente do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos,16 cujo conteúdo demonstra como, para alguns/mas médicos/as portugueses/as, a homossexualidade ainda é interpretada como um distúrbio, à revelia das evidências científicas de sentido contrário (Moita, 2001; Moita, 2006; Moleiro e Pinto, 2009).
42Também nesta área se registam já alguns exemplos de boas práticas, entre os quais se destaca o Observatório da Homofobia e Transfobia na Saúde desenvolvido pela associação Médicos pela Escolha,17 bem como tomadas de posição públicas por parte de profissionais de saúde denunciando situações de discriminação.18 É fundamental que os bons exemplos passem a regra, em vez de exceção, sobretudo num contexto em que a discriminação contribui para o agravamento de situações de saúde das pessoas LGBT (Alves, 2010; Pereira e Leal, 2004; Rodrigues, 2010).19
- 20 Este facto foi amplamente noticiado pelos órgãos de comunicação social. Ver, entre outros exemplos, (...)
43No que se reporta aos profissionais a trabalhar nas áreas da justiça e direito, importa recordar que, ainda em 2006, a Associação Sindical de Juízes se recusava a reconhecer a possibilidade de crime de violência doméstica quando o casal era composto por duas pessoas do mesmo sexo. Num parecer redigido por Pedro Albergaria e Mouraz Lopes, a Associação Sindical de Juízes justificava a sua tomada de posição face à alegada inexistência de uma “relação de superioridade física do agente em relação à vítima” no caso de relações gays ou lésbicas (sem, no entanto, referir jamais as palavras ‘gay’ ou ‘lésbica’.20 Este incidente é revelador do trabalho que urge realizar junto de profissionais da justiça, um sector reconhecidamente conservador e estagnado (B. S. Santos, 2010), mas cujo papel no desenvolvimento e implementação do progresso jurídico é fundamental. Importa também consolidar o trabalho junto de associações profissionais responsáveis pela implementação da lei e da segurança, nomeadamente as forças policiais. Recorde‑se, entre outros exemplos, que, em 2006, o Gabinete de Relações Públicas da PSP fez as seguintes declarações:
Do ponto de vista jurídico, violência doméstica entre casais homossexuais não existe. […] Na lei portuguesa, casais são homem e mulher, por isso, do ponto de vista jurídico, não se trata de violência doméstica. Não existem casais homossexuais. […] Um homossexual quando se dirige a uma esquadra vítima de violência pelo companheiro é tratado da mesma forma como é tratado um cidadão vítima de agressão. (Correio da Manhã, 30.03.2006)21
44Este exemplo recente reforça a necessidade de incluir as forças policiais entre os públicos‑alvo do trabalho associativo (à semelhança do que vem sendo feito pela associação ILGA Portugal), bem como de medidas específicas por parte do Estado visando o respeito integral pelos direitos humanos e constitucionais de cada cidadão e cidadã.
45Responsabilização do Estado. O papel do Estado na prevenção e combate à violência conjugal lésbica deve ser fortalecido através da formulação de políticas inclusivas que tratem, de forma direta, este tema. Com efeito, até ao momento o Estado tem sido cúmplice da invisibilidade das mulheres lésbicas vítimas de violência conjugal, ao assumir uma atitude alegadamente neutra face à orientação sexual em matéria de violência – poder‑se‑ia dizer ‘sex‑blind’ –, que, ao invés de proteger as vítimas, as empurra para uma terra de ninguém.
46Como referem Duarte et al. (2011: 10) reportando ao caso específico das mulheres imigrantes vítimas de violência doméstica, o atual enquadramento político e cultural da violência corre o risco de
- 22 Para uma argumentação semelhante, referindo‑se à ‘vítima ideal de violência íntima’ e à tipologia d (...)
estabelecer uma hierarquia entre aquelas mulheres que merecem mais ajuda: a mulher branca, mãe de família, que se sujeita a uma violência. Isto cria uma barreira entre a “boa vítima” e a “má vítima”, ou, na verdade, entre a “boa mulher” e a “má mulher”, ou a mulher ‘Maria’ e a mulher ‘Eva’. O risco é, portanto, o de se obter uma definição de vítima que estabeleça hierarquias informadas por valores morais, que acabem por se traduzir em barreiras legais e/ou práticas, entre as mulheres que merecem mais ajuda, as que merecem uma ajuda relativa e as que não merecem qualquer tipo de ajuda. As políticas sociais destinadas às mulheres brancas nacionais de classe média são, obviamente, estruturadas com base numa invisibilidade de todas as outras vítimas que não encaixam nessa categoria.22
- 23 “Assim, e no âmbito do IV PNCVD, o conceito de violência doméstica abrange todos os atos de violênc (...)
47O mesmo excerto poder‑se‑ia seguramente aplicar ao caso das mulheres vítimas de violência conjugal lésbica, particularmente invisíveis, por exemplo, nos Planos Nacionais Contra a Violência Doméstica (PNCVD), pese embora, no IV PNCVD (2011‑2013), a menção en passant da atual definição inclusiva de violência doméstica.23
48A ausência de medidas específicas de prevenção e combate à violência conjugal lésbica em Portugal contrasta com o que vem sendo feito noutros contextos geográficos desde a década de 1990. Por exemplo, em São Francisco, EUA, diversas organizações que trabalham na área da luta contra a violência doméstica implementaram serviços de proximidade para lidar com vítimas lésbicas em particular. Intervenções nesta área incluem artigos em órgãos de comunicação locais, campanhas publicitárias acerca dos serviços disponíveis e sessões de debate sobre o tema levadas a cabo em bairros e escolas (Scherzer, 1998). Este tipo de intervenção contribui não só para a dignificação do estatuto da vítima, como para a desmistificação de uma realidade frequentemente invisível.
49Para que medidas políticas e jurídicas inclusivas possam ter uma boa recetividade social, é imperioso investir publicamente em campanhas específicas que deem nome, rosto e voz ao tema da violência conjugal lésbica. Estas campanhas podem estar voltadas para um conjunto de intervenientes sociais, entre os quais se incluem os órgãos de comunicação social, as escolas, as associações de moradores, os clubes desportivos, as associações de imigrantes e as comunidades religiosas, entre outras.
50Este artigo procurou refletir acerca da violência conjugal entre lésbicas, partindo das vozes nem sempre ouvidas das mulheres. Se, a nível internacional, este continua a ser um tema pouco desenvolvido, no contexto português constitui, seguramente, uma das áreas mais marginais dos, já de si minoritários, Estudos de Género ou dos Estudos LGBT e Queer. Não se fala, não se denuncia, não existe – é com este muro de silêncio que as mulheres lésbicas batidas pelas suas companheiras se debatem quotidianamente, enfrentando um duplo estigma: enquanto lésbicas e enquanto vítimas de violência. Acresce a este ‘duplo armário’ a sua condição de género num sistema dominado pelo patriarcado e pelo sexismo, que remete as mulheres para situações agravadas de pobreza e exclusão. Neste sentido, podemos mesmo falar de uma discriminação tripla que afeta de forma insidiosa mulheres lésbicas batidas.
51Com base num estudo empírico de carácter exploratório incluindo vinte e três participantes lésbicas, resultou clara a necessidade de incluir maior reflexão em meio académico, bem como um maior investimento político por parte do Estado, movimentos sociais e demais instituições no desenhar de respostas públicas eficazes na prevenção e combate à violência conjugal lésbica.