Robert McRuer; Anna Mollow (orgs.) (2012), Sex and Disability
Robert McRuer; Anna Mollow (orgs.) (2012), Sex and Disability. London: Duke University Press, 418 pp.
Texto integral
1Raros são os textos, tanto no campo da sexualidade como no campo dos estudos da deficiência, que tratam das práticas sexuais na deficiência. Conscientes desse défice, Robert McRuer e Anna Mollow editaram recentemente a primeira antologia que relaciona sexo e deficiência. Esta coletânea reúne dezassete capítulos que propõem desvelar a sexualidade neste âmbito. Os capítulos dispõem‑se por cinco secções que tratam do acesso, das histórias, dos espaços, das vidas e dos desejos.
2A capa do livro é uma janela aberta ao que se vai passar a seguir: um soutien cobre dois pictogramas vermelhos de cadeirantes, voltados um para o outro; um esqueleto vestido com uns boxers de onde, pela braguilha, sai uma muleta axilar; e um título prometedor e aparentemente contraditório, Sex and Disability.
3Do sexo à deficiência, do desejo ao fétiche, esta obra perturba o imaginário popular de categorias até agora amplamente reservadas, imaginário no qual perdura a inextricável ligação entre sexo e corpo ‘são’ – apenas o “corpo são em mente sã” é dotado de sex appeal, capaz de provocar desejo e de fazer sexo. Os corpos deficientes são tendencialmente considerados feios, incapacitados, assexuados ou hipersexuados, e contrariamente aos corpos sãos, permanecem fora do controle das próprias pessoas que os habitam. Ao longo das páginas confundem‑se os termos queer, crip e deficiente. De certa forma, McRuer dá aqui continuidade ao seu projeto da teoria crip (Crip Theory, NYU Press, 2006) que relaciona deficiência e queerness.
4Quando pensamos na relação entre os conceitos “acesso” e “deficiência”, a tendência é para um enfoque nas barreiras físicas ou atitudinais que as pessoas deficientes enfrentam no acesso à vida social e profissional – ou seja, a vida pública. Contudo, num livro que trata de sexo e deficiência, quando se fala em acesso trata‑se de uma outra dimensão: o acesso às experiências sexuais, sejam elas partilhadas ou não. O acesso à sexualidade pressupõe antes de mais o acesso ao próprio corpo. Partindo deste pressuposto, o livro começa pertinentemente por tratar daquilo que que Kenneth Plummer designa por “cidadania íntima”. De acordo com o sociólogo, a cidadania íntima diz respeito ao poder de controlo sobre o próprio corpo, os sentimentos e as relações, assim como ao acesso ao exterior e às escolhas. É um conceito que relaciona esfera privada com esfera pública, particularmente útil à sexualidade deficiente uma vez que esta transgride a fronteira entre aquelas duas esferas. Na primeira secção, “Access”, o primeiro capítulo, “A Sexual Culture for Disabled People”, de Tobin Siebers, contrapõe as noções de “vida sexual” e de “cultura sexual” para lembrar a importância da sexualidade na vida quotidiana, que extravasa o privado. O autor adverte para a necessidade de reconhecer a sexualidade de pessoas deficientes enquanto sexualidade minoritária e recorre à ativista e escritora Anne Finger para demonstrar que a opressão sexual é a mais profunda das opressões que as pessoas deficientes sofrem. Este contributo é particularmente importante porque encara as dificuldades de acesso a locais de sexo por que passam as pessoas deficientes, levando‑nos a pensar de que forma o capacitismo – ideologia sobre o elogio da capacidade, do corpo ‘capaz’ – molda o nosso pensar acerca do sexo. Por outro lado, celebra a sexualidade das pessoas deficientes que, em virtude da sua diferente geografia sexual, podem fazer sexo em público sem que ninguém se aperceba. Siebers dialoga ainda com as questões da reprodução, da eugenia e dos custos do direito à privacidade. Ao deslocar o sexo na deficiência para fora da cama e do quarto, para locais improváveis, subverte‑se a tradicional ideia de tragédia e assexualidade na deficiência. O sexo está para além das zonas eróticas. Sexo é mais do que uma relação genital. A deficiência desafia as conceções de identidade sexual que conhecemos e desmantela a identidade de assexuado que a cultura lhe imprime. De resto, toda esta secção se desenrola em torno de um novo entendimento do conceito de acessibilidade – relacionado com a intimidade sexual – e apela a uma mudança cultural. Alerta‑nos para a importância de se criarem novos modos de acesso ao sexo e novos modos de fazer sexo.
5Segundo Mollow e Robert (p. 7), “A identidade deficiente […] nunca é um simples facto natural; é antes feita e refeita em circunstâncias históricas e por agentes históricos”. Daí a necessidade de seguir em frente com uma série de artigos que dão conta da história, não da deficiência ou dos movimentos da deficiência, mas da história individual, de uma determinada história num determinado contexto, uma história que perturba a tradição dos trabalhos académicos. A secção “Histories” trata de histórias fictícias e reais, desde Billy Ray Johnson, um afro‑americano com deficiência mental que foi brutalmente espancado por quatro jovens brancos, ao protagonista deficiente do bestseller vitoriano The History of Sir Richard Calmandy, ou aos homens grávidos, protagonistas de romances ou da vida real como Thomas Beatie, transexual que desde a sua transição já concebeu quatro crianças.
6Tão importante quanto o acesso aos locais de sexo são os espaços geográficos e discursivos de materialização do sexo e da deficiência. No capítulo “Leading with Your Head: On the Borders of Disability, Sexuality and the Nation” da secção “Spaces”, Markotic e McRuer analisam o discurso de atletas no documentário Murderball (2005) e desvelam o seu sentido ora subversivo, ora hegemónico, patriarcal e heteronormativo. Desde o terceiro género ‑ fa’afafine – reconhecido na Polinésia, passando pela intersexualidade ou pela experiência do VIH contado na primeira pessoa, esta secção, para além da atenção dedicada aos espaços do sexo e suas limitações, é uma crítica à privatização da sexualidade, incluindo aquela que é veiculada pela academia.
7Na secção “Lives”, no decurso de várias autobiografias saem do silêncio vozes de pessoas deficientes que falam das suas experiências com a sexualidade, ilustrando pontos de cruzamento entre a vida destas pessoas e das pessoas queer, na medida em que ambas são alvo de disciplina e impelidas a agir com “normalidade”.
8Os últimos capítulos do livro constituem igualmente marcos teóricos e políticos significativos. Se em toda a obra somos confrontadas/os com os nossos próprios preconceitos, em “Desire and Disgust”, de Alison Kafer, e em “Hearing Aid Lovers, Pretenders, and Deaf Wannabes”, de Kristen Harmon, a ideologia capacitista do sexo, da identidade sexual e do desejo são radicalmente desafiadas. Devotees, pretenders, wannabes: estas são as personagens fetichistas que perturbam os/as mais sensíveis. Devotee – pessoa não deficiente que se sente sexualmente atraída por pessoas com deficiências, especialmente de mobilidade, como amputações; pretender – pessoa não deficiente que se comporta como se tivesse deficiências (uso de cadeira de rodas, aparelho ortodôntico, etc.), em privado e/ou em público; wannabe – pessoa que deseja tornar‑se deficiente, podendo, inclusive, mutilar partes do corpo. Falar destes tópicos é um dos vários caminhos para contrariar a des‑sexualização das pessoas com deficiência. O desejo por um corpo fora da norma levanta questões acerca da corporalidade, da autenticidade, dos aspetos sociopolíticos da identidade e das deficiências.
9Este é um livro que se revela de grande importância não só para os estudos da deficiência como também para os estudos queer e estudos sobre sexualidade devido à intersecionalidade dos temas e ao arrojo reflexivo com que estes são tratados. Não obstante, esta utilidade não se limita ao contexto académico. Se estes temas permanecem subestudados e acantonados na academia, o mesmo se passa na sociedade em geral, o que reforça a relevância desta obra para públicos diversos, com a ressalva de que é provocante e desafiadora, capaz de surpreender até as/os mais insurgentes. Seria impossível reunir em 400 páginas todo o reportório de vivências em torno da sexualidade na deficiência, mas este é sem dúvida um contributo incontornável para quem se interessa pelo tema, abrindo ainda pistas preciosas face ao que está por fazer neste campo.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Ana Lúcia Santos, «Robert McRuer; Anna Mollow (orgs.) (2012), Sex and Disability», Revista Crítica de Ciências Sociais, 97 | 2012, 155-157.
Referência eletrónica
Ana Lúcia Santos, «Robert McRuer; Anna Mollow (orgs.) (2012), Sex and Disability», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 97 | 2012, publicado a 19 abril 2013, consultado a 13 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/4976; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.4976
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