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Recensões

Teyssot, Georges, Da Teoria de Arquitectura: doze ensaios

Luís Quintais
p. 276-279
Referência(s):

Teyssot, Georges (2010), Da Teoria de Arquitectura: doze ensaios. Lisboa: Edições 70; Coimbra: Edarq, 295 pp.

Texto integral

1O volume de ensaios do historiador e crítico da arquitectura Georges Teyssot perfaz um arco temporal de mais de trinta anos. Um modo de aceder globalmente ao desenho que este percurso vai fazendo será, talvez, o de definir com clareza as figuras‑chave que o alimentam e o tipo de utensilagens metafóricas e conceptuais de que se serve ao longo da sua viagem pelos territórios da crítica.

2Convirá então dizer que o pensamento de Teyssot se define tendo em conta três vértices maiores: Michel Foucault, Walter Benjamin, e Gilles Deleuze.

3Georges Teyssot desenvolve o seu trabalho através de uma estratégia que implícita e explicitamente depende de três elementos vocabulares que podemos colher, justamente, em Foucault, Benjamin e Deleuze: “heterotopia”, “passagem” e “multiplicidade”. Podemos, desde já, assinalar em Da teoria de arquitectura uma espécie de generatividade constitutiva que tem por parâmetros iniciais uma redescrição de “heterotopia”, uma redescrição de “passagem”, e uma redescrição de “multiplicidade”. Redescrições que são assumidas no estudo introdutório que é “Por uma topologia de constelações do quotidiano” (17‑28), onde escreve uma belíssima diatribe às pretensões metodológicas (e instrumentais também) que se fazem ou podem fazer inscrever na crítica da arquitectura:

[E]sta colectânea de textos é apresentada de uma forma não‑metodológica; quer dizer, não tanto uma ‘meta odos’ (já que em grego meta significa através dos meios e odos a estrada, método é a super‑auto‑estrada do pensamento), mas muito mais uma série de caminhos, atalhos que atravessam a espessura da vida quotidiana, com as suas infelicidades oprimentes, perpétuos maus hábitos, irreprimíveis depressões, desejos reprimidos, anseios inefáveis, melancolias não confessadas. No entanto, esta obscuridade é desanuviada pela animada cavaqueira da má‑língua, a segurança aconchegante do lugar comum, e o estranho conforto da familiaridade. (17)

4Em 1977, Teyssot fazia publicar na colectânea Il dispositivo Foucault um dos seus textos inaugurais. Refiro‑me a “Eterotopia e storia degli spazi” (31‑44). Perante as topologias da descontinuidade que o conceito de heterotopia reclama, onde fica o projecto disciplinador ou normalizador que parece ter obcecado os modernos? Dir‑se‑ia que todos os sistemas de regras a partir dos quais se pretendeu edificar a pólis moderna estavam votados ao ilegislável da prática e da excepção, ou seja, a diuturnidade (a fluidez do real, a sua continuidade pautada pelo hábito e pela ausência de excepção) é afinal constantemente tomada de assalto pela descontinuidade e ausência de linearidade. Ao “consolo” prometido pela “utopia” parece contrapor‑se o rosto irónico das figurações – espacializadas – da heterotopia, figurações que consagram, assim, os contra‑arranjos da pólis. A descontinuidade é, em Foucault e em Teyssot, uma marca da história e da sua turbulência, uma inscrição que fractura irremediavelmente o vidro da história, e as ilusões normativas e os nativismos da crítica e da sua tradução prática só podem ser amplamente recusados, porque, de um modo ou de outro, estão condenados ao fracasso da incorrecta apreciação da historicidade que atravessa desenho e matéria.

5A “teratologia do saber” (39) que Foucault torna visível, envia‑nos para uma concepção da crítica que se recusa a diluir a presença da complexidade. Teyssot diz‑nos explicitamente que a história se define pela sua ausência de linearidade, sendo toda a ambição tipológica equívoca já que se compraz numa tarefa destinada à mera reescrita:

O trabalho dos demógrafos e dos historiadores – como Philippe Ariès e Louis Chevalier –, e do próprio Foucault, demonstra que não há linearidade no que diz respeito à história do ‘habitat’. Quando isso se tornou uma questão de reunir uma morfologia histórica da cidade transmitindo uma ‘evolução’ de ‘tipologias’ residenciais, houve que fazer deduções a posteriori com base em diagramas reconstrutivos do século XIX, bem como em arquivos civis, incluindo registos de impostos e tributação, que na melhor das hipóteses forneceram um levantamento do desenvolvimento da habitação baseada num estudo da subdivisão de lotes e funções dos compartimentos. (40)

6Teyssot parece assim mostrar‑nos, através da sua incursão em território foucauldiano, que é com extrema reserva e enorme parcimónia que devemos encarar a investigação histórica do fenómeno urbano e da arquitectura. Em particular, não há em Teyssot o menor interesse pelas soluções salvacionistas ou nativistas que reivindicam uma morfologia de grafismo exemplar. Trata‑se de um crítico desassombrado de um tema caro à modernidade. Refiro‑me àquele que se prende com a pureza e resgate da “origem” (o que marca a emergência das ciências humanas, e que terá interpelado Foucault ao longo de uma parte apreciável do seu percurso). Não são apenas as suas observações sobre Heidegger que aqui se tornam relevantes, mas antes, e sobretudo, o modo como, em Da teoria, Teyssot empreende uma singular viagem em torno da noção de “tipo”, chamando‑nos a atenção, por exemplo, para a centralidade que aí assumem os estudos de Franz Gall em torno da fisiologia e craniologia.

7Georges Teyssot é alguém que recorrentemente promove um regresso à complexidade e à multidimensionalidade da experiência quotidiana e dos seus fluxos, revelando um interesse acentuado por preposições e verbos (ligações e processos). Dá preferência aos limiares e às regiões de contágio entre objectos, uma preferência que se poderá assimilar à experiência das “passagens” que Benjamin terá interrogado de forma magistral no seu Passagen‑Werke. Estamos face a um registo que espacializa a fluidez dos abertos e dos fechados, dos interiores e dos exteriores, das transparências e das opacidades. A grande metrópole moderna pode assim ser pensada como um espaço consagrado à liminaridade, ou seja, a experiências que são em simultâneo interiores e exteriores. Não é por acaso que Teyssot apela, logo de início, à noção de heterotopia e à centralidade desses “espaços outros” na cidade. E não é ainda por acaso que, ao longo de Da teoria, irá fazer uma analítica das condições materiais e simbólicas em que se desdobram as passagens e os fluxos da urbanidade. O betwixt and between poderá ser aqui assimilado a um conjunto de apreciações que põem em relação a materialidade dos espaços e dos objectos com a experiência das passagens que aí se anuncia constantemente. Dos móveis às janelas, passando pelas construções em vidro e metal, tudo parece estar destinado à recursiva experiência liminar em que se alicerça a vida quotidiana na grande metrópole, onde o público e o privado se metamorfoseiam reciprocamente, revelando a instabilidade mercurial do moderno:

Esses ‘espaços de passagem’ flutuantes, percorridos por toda a espécie de fluidos, atravessados por ventos e por feixes luminosos, ‘onde já não mora ninguém’, como diz Ernst Bloch, constituem a morada ideal do trabalhador moderno e nómada. O ‘alojamento de passagem’ esvazia‑se também de móveis. É, de resto, a imobilidade do móvel a consentir a mobilidade do habitante e a condicionar o seu nomadismo. (104)

8Estamos face a uma constante remissão para espaços, habitações, corpos, onde se desenham percursos, derivas, flutuações, dissonâncias, multiplicidades. E este vocábulo (“multiplicidades”, precisamente) ganha em Teyssot um sabor acentuadamente deleuziano.

9Dir‑se‑ia que o habitar de Teyssot trai constantemente uma cartografia aberta e dobrada que Deleuze e Guattari souberam identificar em Franz Kafka através da leitura que lhe dedicaram no extraordinário Kafka. Pour une littérature mineur publicado em 1975. Descobre‑se em Kafka uma arquitectura descontínua, permanentemente fluida. Esta arquitectura das descontinuidades poderá ser assimilada à narrativa dos anos vinte Der Bau. Nesse conto inacabado (e é sintomática a natureza inacabada do conto, como, aliás, de parte considerável do trabalho de Kafka quando a confrontamos com a leitura deleuziana), um animal assimilável a uma toupeira constrói um elaboradíssimo complexo de túneis que se revelam, na sua complexidade e proliferação, um dispositivo cuja configuração acentrada poderá ser a melhor resposta aos dilemas da fragilidade desta criatura ameaçada (da qual pouco sabemos) que se interroga sobre a “máquina” kafkiana/deleuziana que construiu e a qual percorre incessantemente. O espaço deleuziano (rizomático, proliferante, e múltiplo) encontra‑se amplamente ilustrado em Der Bau.

10Teyssot poderia subscrever no seu texto este regime de experimentação e de transgressão criativa que se anuncia no Kafka de Deleuze e Guattari. Toda a regularidade é feita de um regime de multiplicidades onde a “repetição” e a “diferença” se afiguram como instrumentais para o “devir‑teórico” do crítico e para a experimentação que ele deve promover. Um crítico que não se encontrasse devorado pela tentação hermenêutica seria, certamente, um melhor crítico, parece querer dizer‑nos Teyssot. Daí a importância que aufere no percurso de Teyssot a conceptualização de multiplicidades deleuzianas que explicitamente convoca no seu ensaio “Arquitectura híbrida: um ambiente para o corpo prostético” (259‑275) onde são destacados os conceitos de “máquinas desejantes” e “corpo sem órgãos”. Neste contexto, poder‑se‑á afirmar que Teyssot hibridiza as práticas crítica e construtiva de maneira radical, ao restablecer constantemente a recursividade múltipla entre a arquitectura, tomada como uma arte que faz conexões, ligações, assemblamentos, e o corpo onde as inscrições técnicas se tornaram amplamente codificadas no presente.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Luís Quintais, «Teyssot, Georges, Da Teoria de Arquitectura: doze ensaios»Revista Crítica de Ciências Sociais, 91 | 2010, 276-279.

Referência eletrónica

Luís Quintais, «Teyssot, Georges, Da Teoria de Arquitectura: doze ensaios»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 91 | 2010, publicado a 03 dezembro 2012, consultado a 09 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/4464; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.4464

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Autor

Luís Quintais

É antropólogo e professor auxiliar no Departamento de Ciências da Vida da FCTUC. Como investigador está associado ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA). Desenvolveu etnografia sobre guerra e memória traumática junto de ex‑combatentes das guerras coloniais portuguesas e investigação de arquivo sobre a emergência e a consolidação da psiquiatria forense portuguesa. Trabalha actualmente sobre as relações entre arte e ciência, sobre as implicações das ciências cognitivas na antropologia contemporânea, e sobre acidentes e modernidade. O seu trabalho encontra‑se publicado em revistas portuguesas e estrangeiras. Destaque para os livros Franz Piechowski ou a analítica do arquivo: ensaio sobre o visível e o invisível na psiquiatria forense portuguesa (Lisboa, Livros Cotovia, 2006), e As guerras coloniais portuguesas e a invenção da história (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2000).
luisquintais@gmail.com

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