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Recensões

Mais do que um road book

Nuno Grande
p. 275-276
Referência(s):

Campos Costa, Pedro; Louro, Nuno (2009), Duas Linhas. Edição dos autores, 224 pp.

Texto integral

1O livro Duas Linhas é uma edição dos autores, bilingue, publicada no âmbito dos denominados “Projectos Tangenciais” promovidos pela Bienal ExperimentaDesign em 2009. A sua concepção resulta de um projecto pessoal traçado por Pedro Campos Costa e Nuno Louro, e materializado numa dupla viagem que realizaram, em Julho desse ano, ao longo do território português, de Norte para Sul – uma pelo litoral; outra pelo interior – registando, em suporte fotográfico, momentos dessas duas aparentes “linearidades” paisagísticas.

2Formados, ambos, em arquitectura, em finais da década de 1990, com posteriores experiências de estudo e de trabalho fora de Portugal, os dois autores encontraram, neste projecto, uma forma de “regressar” simbolicamente ao seu território, ou, tal como afirmam, um modo de fazer uma “TAC” ao seu próprio país (7). Para o efeito, estabeleceram 118 referenciais geográficos (59 pontos × 2 linhas) sobre um mapa de Portugal, ao longo dos quais realizaram 59 pares de fotografias, captadas à mesma latitude (litoral e interior), nos mesmos dias, e, sempre que possível, em horas coincidentes.

3Pelo seu carácter assumidamente empirista, este projecto não pretendeu competir com outras análises territoriais, de índole científica, aproximando‑se mais, na verdade, de uma deriva conceptual ou de uma “performance” artística, passível de ser documentada sob a forma de uma exposição‑instalação ou de um livro, como veio a acontecer. No entanto, e ainda que as suas fotografias de viagem constituam o centro desta espécie de road map, ou de road book, a verdade é que Pedro Campos Costa e Nuno Louro tiveram a inteligência de o tornar em algo mais do que um registo impressivo, circunstancial e auto‑centrado.

4Neste sentido, convidaram dois artistas – os fotógrafos Daniel Malhão e Nuno Cera – a completar o seu olhar subjectivo sobre as cinco regiões portuguesas, mas também, e numa perspectiva interdisciplinar, cinco autores ligados à investigação urbanística e paisagística, a discorrer, mais objectivamente, sobre temas despoletados por essa deriva geográfica. São eles: Mário Alves, especialista em Ordenamento do Território e Mobilidade; Álvaro Domingues, geógrafo do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto; João Nunes, paisagista e docente do Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa; Samuel Rego, historiador ligado ao Instituto Camões; e João Seixas, economista e geógrafo urbano do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Évora.

5Com esta inclusão, o projecto ganhou maior densidade crítica, como atestam os textos preambulares que debatem e enriquecem o imaginário documentado pelas 118 imagens captadas pelos arquitectos‑autores, mas também pelos 10 retratos regionais propostos pelos artistas‑fotógrafos convidados.

6Mário Alves escreve ironicamente sobre a “dromologia da rotunda”, caracterizando as novas e rápidas infraestruturas viárias que se sobrepõem a um país de velhos e morosos costumes, mas que “quis ser rico, depressa”. Como diz o especialista: “Este projecto obriga‑nos a reflectir estas contradições – pede‑nos para parar e observar, num tempo em que, dizem‑nos, não se pode parar” (22‑23).

7Álvaro Domingues aprofunda, no ensaio mais longo do livro, a tensão entre as polaridades que povoam a paisagem urbana portuguesa: cidade/campo; rua/estrada; litoral/interior; centro histórico/cidade genérica. Em jeito de síntese, o geógrafo deixa um aviso: “O zapping paisagístico que as imagens registam é o sismograma do país que muda, mas o que verdadeiramente tem que mudar é a forma de olhar e avaliar essa mudança. […] A paisagem continua a ser um conceito‑esponja de uma tal porosidade que é capaz de tudo absorver e de tudo expulsar, em apertando. Pergunte‑se mais para que serve e o que transporta o discurso e a representação sobre a paisagem” (56).

8Indagando sobre essa mesma utilidade futura, João Nunes afirma que este projecto pode servir de base a um desejável “Observatório da Paisagem”, algo que, segundo o autor, constituiria “um instrumento capaz de estabelecer métodos de observação e registo das transformações da paisagem, capaz de implementar esse registo no terreno, e de gerir a sua utilização para a produção de estudos sobre o passado e sobre o futuro do território” (61).

9Já Samuel Rego desmistifica muitos clichés estabelecidos em torno das assimetrias entre as “duas linhas”. Como diz, “ocorre vulgarmente a tentação simplista de identificar problemas por oposição, do género – o grande problema do litoral é a mobilidade versus o imobilismo do interior. Nada mais erróneo. Ambas as linhas sofreram metamorfoses deveras significativas a nível social, económico e cultural ao longo dos séculos” (67).

10Por fim, João Seixas escreve sobre o sentido desta viagem deambulatória entre dois tempos de um mesmo Portugal. Nota que “a pós‑modernidade portuguesa, tão disléxica e metaforicamente tão expressa nas novas estradas, parece vir bem espelhada nas paisagens destas duas linhas, e nas diferentes escalas de olhar que elas nos evocam. […] Mas por detrás do Portugal pós‑moderno, em cada canto das telas, ainda tanto do Portugal pré‑moderno: uma paisagem de descompasso, ainda bem portuguesa. […] Acaso faltaria escrever, por todo o território: Mind the gap” (72‑73).

11Como se depreende, este é um livro sobre a paisagem portuguesa, embora já não no seu sentido estático, bucólico ou catártico de outrora. Essa “outra” paisagem revelada pelas sucessivas fotografias de viagem, assim como pelas diferentes reflexões que as referenciam, corporiza o mapa de um país em acelerada mutação, sempre hesitante entre essas “duas linhas” de desenvolvimento. O mesmo mapa que “embrulha”, em jeito de sobrecapa, esta bela edição composta graficamente pelo atelier de design R2. Um road map que, enfim, pode ler‑se como um roteiro da nossa própria identidade nacional.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Nuno Grande, «Mais do que um road book»Revista Crítica de Ciências Sociais, 91 | 2010, 275-276.

Referência eletrónica

Nuno Grande, «Mais do que um road book»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 91 | 2010, publicado a 29 novembro 2012, consultado a 14 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/4460; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.4460

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Autor

Nuno Grande

Arquitecto, doutorado pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra, onde lecciona desde 1993. Docente, por extensão, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde se licenciou em 1992. Exerce as actividades de programador cultural (Porto 2001, Capital Europeia da Cultura), de curador (Trienal de Arquitectura de Lisboa, 2007 e Bienal de São Paulo, 2007) e de crítico de arquitectura, com textos publicados em Portugal e no estrangeiro.
ac44@netcabo.pt

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