1Este artigo reflecte sobre a democracia participativa ao nível local, justificando a sua emergência em função da complexidade crescente da sociedade e da necessidade de aproximar as decisões dos contextos locais de onde emergem as novas necessidades sociais. Dando conta do distanciamento dos eleitos municipais dos exercícios da democracia directa, interroga‑se a relação entre esse recuo e o proclamado e insistente discurso sobre parcerias, redes sociais, contratos locais, etc. Contradições que decorrem de uma visão administrativa da gestão da coisa pública que se identifica mais facilmente com a lógica de “discussão interna” entre serviços públicos do que com a relação entre estes e os cidadãos. O artigo desenvolve‑se em torno de um conjunto de interrogações que decorrem daqui.
2As novas formas de governança e de participação têm tornado a administração mais eficiente? Estas formas de participação têm sido acessíveis a grupos sociais de mais baixa renda ou a portadores de interesses menos poderosos? A discussão colectiva tem trazido dimensões deliberativas e introduzido transformações/inovações nas políticas públicas? Há uma participação alargada a pessoas fora das esferas de clientelas político‑partidárias?
3Atribui‑se frequentemente a necessidade da democracia participativa a três factores fundamentais: complexidade crescente da sociedade, exigência de clareza e de informação por parte dos cidadãos, necessidade funcional de aumentar a eficácia da democracia.
4De facto, a complexidade crescente das formas de organização social, a pulverização dos interesses e corporações, a multiculturalidade contraditória dos modos de vida aliada à fragmentação e divisão crescente dos poderes decisórios do Estado, transformam profundamente as formas de acção colectiva.
5Estes processos estão ligados à complexidade crescente da sociedade e à necessidade de fazer frente a um ambiente mutável mas também, e muito especialmente, à necessidade de garantir equilíbrios no interior de sistemas sujeitos a contínuas mudanças, de grande instabilidade e em larga medida de “alto risco”, como nos alertaram Giddens (1998) e Beck (1992). A diferenciação dos sistemas e subsistemas sociais, não detendo todos a mesma importância e estando sujeitos a conflitualidades várias, impõe a necessidade de novos equilíbrios face a conflitos que se desenvolvem nas diferentes áreas do sistema com fortes pressões nas problemáticas mais centrais, quer ao nível da produção e distribuição dos bens e serviços, quer nos níveis simbólicos mais estruturantes. Mas, e sobretudo, a diversidade de interesses leva à crítica ao “one best way” e exige a procura de soluções, se não consensuais, pelo menos de menor conflitualidade. As relações políticas tornaram‑se cada vez mais importantes e os agentes públicos introduzem sistemas de intercâmbio de informações, de negociações, que, através do confronto e da mediação de interesses, produzem decisões onde anteriormente funcionavam mecanismos autoritários de normas e de poder.
6Para além do aumento da complexidade do funcionamento do mercado e da sociedade civil, assiste‑se a um processo de divisão, multiplicação e difusão das instâncias políticas que, transformando as regras de gestão autoritárias de outrora, tentam administrar a complexidade por meio de decisões, de escolhas, de políticas capazes de reduzir a incerteza dos sistemas que mudam rapidamente o que afecta de forma pouco controlável a vida dos cidadãos. Mas esta complexidade torna menos transparentes os critérios de decisão sobre a alocação dos recursos e é cada vez mais difícil contentar a diversidade de actores intervenientes. Assiste‑se pois a uma crescente exigência de clarificação das regras da administração e de participação nas decisões por parte de actores vários que frequentemente questionam os critérios e as propostas da administração.
- 1 Governança é uma palavra que decorre da tradução directa do francês “gouvernance” (expressão retom (...)
7Estas formas de gestão surgem também, em larga medida, como fruto da incapacidade pública em arcar com os custos crescentes da demanda de bens e serviços. A nova problemática da governança,1 entendida como co‑gestão participada da coisa pública, emerge assim de uma dupla vontade: a de questionar a inépcia das políticas tradicionais e aproximar os mecanismos de gestão da rapidez e da flexibilidade exigível pelos processos de mudança, mas também a de apelar a novos recursos detidos por entidades privadas e indispensáveis à concretização dos desígnios públicos.
8De facto, a participação dos actores económicos e sociais nas políticas de desenvolvimento advém também do reconhecimento de que cada projecto de mudança social exige recursos e energias positivas para a mudança, que são detidos pelos vários actores envolvidos. São formas de apelo a parceiros que ambicionam instalar na administração novas categorias de pensar e de agir que derivam do reconhecimento da complexidade crescente e da incerteza das dinâmicas económicas, sociais e territoriais. Pretendendo aliar pragmatismo à clareza das decisões, critica‑se uma administração enleada em regras burocráticas confusas, que nem os próprios administradores e o seu séquito de funcionários conseguem explicar.
9Estas novas abordagens advêm, em larga medida, da percepção da pouca efectividade das administrações e do reconhecimento de que o espaço público é construído – e apropriado – por uma miríade de actores, de interesses e de lógicas de acção diferentes, cujos recursos são indispensáveis à orientação da mudança social. A exploração dos métodos de planeamento e de gestão estratégica que acompanham este raciocínio corresponde a um movimento de racionalização instrumental da acção pública que utiliza utensílios e procedimentos mais ou menos formalizados, invocando procedimentos científicos e técnicos com vista à melhoria das formas de trabalho da acção pública.
10Governança parece ser assim um conceito que adquiriu o papel de conceito‑síntese respeitante às formas de evolução da acção pública nos sistemas políticos ditos de democracia madura, significando “uma mudança no significado de governo e referindo‑se ao novo processo de governação... ou aos novos métodos através dos quais a sociedade é governada” (Rhodes apud Gualini, 2001).
11Em Portugal, o conceito de governança está muito difundido, mas está sobretudo colado à articulação entre instâncias públicas de diversos níveis geográficos. É o caso das Redes Sociais com actores regionais ou municipais, onde estão sobretudo representados os serviços desconcentrados da administração pública, ou serviços que exigem a presença de vários ministérios, como as Comissões de Protecção de Menores, etc. Mas raramente estas estruturas têm representações directas de associações do terceiro sector. Frequentemente a “representação da população” é atribuída aos eleitos das Juntas de Freguesias que, apesar de tudo, são os elementos mais próximos dos interesses das populações locais.
12Claro que a generalização destes conceitos de parceria, partenariado, participação, etc., incorre em certos riscos e é preciso concordar que vem acompanhada de popularidade, mas também de muita imprecisão. Mas o conceito comporta a resposta aos três desafios que se identificaram anteriormente e cuja valorização pode ser diferenciada quer entre países quer no interior dos países, em função do tipo de governo ou do jogo de forças: a gestão da complexidade na procura da equidade social como função suprema do Estado, a procura do reforço da legitimidade das decisões e a necessidade da eficácia.
13No fundo, estas três dimensões são o conteúdo prático do que se chama democracia local, isto é, um tentativa de alargamento da base democrática da sociedade, de forma a que todos tenham a consciência explícita de que participam na racionalização da acção pública. Refere Padioleau “a última modalidade de racionalização consiste em envolver a acção pública nas problemáticas e nas práticas ditas estratégicas permitindo dar novos rostos às actividades de planeamento e às políticas urbanas” (Padioleau, 1989: 158).
14Em Portugal, as autarquias não desenvolvem o discurso da participação, mas em seu lugar estão na agenda política os conceitos de parceria, redes sociais, contratualização, etc., significando para muitos a renovação da acção pública local sob o conceito global de “governança”. Defende‑se uma gestão não hierárquica, mais flexível, transversal e integrada, orientada para uma “política de cidade” muito próxima dos ideais da “politique de la ville” francesa, onde se vão beber os princípios ideológicos mas, infelizmente, não as práticas. Muito consensual, este movimento do “Estado animador” das redes de parceria é suficientemente ambíguo para não se entender exactamente de que se trata quer do ponto de vista da forma, quer, sobretudo, do ponto de vista do conteúdo.
15Assim, emergem espaços de acção e de organização colectiva que se afirmam, cada vez mais, como terrenos privilegiados de mudanças que se cumprem com o beneplácito dos poderes públicos e fazem emergir um novo rosto de um Estado em plena mutação. É o caso da animação de muitas redes locais de parceiros sobre múltiplas questões sociais: a intervenção em bairros; a protecção de crianças e jovens; o apoio a famílias, onde estão presentes organismos públicos centrais e regionais, IPSS, autarquias, associações, etc. Poderemos interrogar se a acção colectiva que decorre nesses novos “espaços públicos” é um espaço próprio ou é o alargamento do próprio espaço do Estado e dos seus aparelhos político‑administrativos. Não pertencendo ao Estado nem ao mercado, esses espaços de intervenção na coisa pública são espaços alargados em termos da variedade de actores, de problemáticas de formas organizativas e de temporalidades de acção.
16Como podem estas noções renovar o pensamento sobre as políticas públicas e ultrapassar a análise das relações entre o Estado e as colectividades territoriais em termos de dependência e autonomia? Em que medida são úteis para clarificar novas formas de produção de acção colectiva? Em que medida clarificam novas formas de viver em conjunto e de negociação da mudança social num sistema de acção concreto?
17Infelizmente são questões ainda largamente por responder, por falta de pesquisa empírica concreta em Portugal. Mas, adaptando as interrogações de Sintomer (2004), interessaria responder a 4 questões centrais: i) as novas formas de governança e de participação têm tornado a administração mais eficiente? ii) estas formas de participação têm sido acessíveis a grupos sociais de mais baixa renda ou a portadores de interesses menos poderosos? iii) a discussão colectiva tem trazido dimensões deliberativas e introduzido transformações/inovações nas políticas públicas? iv) há uma participação alargada a pessoas fora das esferas de clientelas político‑partidárias?
18Para responder a estas questões, seria necessário recorrer a dimensões teóricas e empíricas, dando particular realce à distância potencial entre discursos e práticas. Sociologicamente, seria interessante entender como se processam os conflitos e os consensos em termos das relações de poder que atravessam uma sociedade ou uma situação concreta, quais as posições de concertação, como foram redistribuídos os recursos societais, a favor de que grupos e de que princípios de justiça social. No contexto destas dinâmicas, seria importante elucidar as formas de construção da acção colectiva, clarificando os papéis dos diferentes actores intervenientes e muito particularmente do agente público
19O princípio orientador de qualquer análise de base científica é o de acautelar pressupostos de partida que enviesem as capacidades de recolha de informação e predestinem os resultados. Uma primeira postura a afastar é a que considera o discurso público sobre a participação como um discurso ideológico de manipulação dos cidadãos através de um pretenso envolvimento em decisões há muito tomadas e frequentemente referindo‑se a interesses menores face aos seus reais interesses. A posição contrária, também a afastar, é a que considera que a democracia participativa é um bem em si mesmo, assente em cidadãos encarados todos como iguais face a direitos e deveres, o que traria consigo um aumento da justiça e equidade social.
20Aproximando‑nos agora das dimensões mais operacionais que decorrem de uma certa leitura da acção colectiva, poder‑se‑á sintetizar os principais resultados que decorrem de algumas pesquisas que têm sido feitas quer pela autora deste artigo, quer por Granado (2009) ou Dias (2008).
21Cristina Granado (2009), que aprofunda a participação em torno do orçamento participativo em Belo Horizonte (no Brasil) e em Palmela (Portugal), enfatiza sobretudo os ganhos políticos que decorrem da democracia local. A autora considera que neste processo, politicamente falando, todos saem a ganhar, pois se por um lado há uma aprendizagem dos processos de discussão e de decisão colectiva pelos habitantes (a este nível sobretudo no Brasil), também a legitimidade política dos eleitos sai reforçada. Granado, tendo acompanhado durante cerca de três anos o município de Palmela, referencia a evolução dos debates, inicialmente muito centrados em reivindicações individuais e em críticas à autarquia, para uma discussão colectiva mais madura e descentrada dos interesses particulares. Também neste caso considera que a proximidade e a interacção pessoal entre a vereação, e sobretudo os presidentes da câmara, e os munícipes gera laços que vão para além das dimensões meramente funcionais, estabelecendo emocionalidades e trocas identitárias que reforçam a legitimidade do poder eleitoral e geram energia para a intervenção colectiva.
22Os vários estudos têm vindo a demonstrar essa capacidade de gerar vida colectiva. Referindo‑se ao Brasil e ao orçamento participativo, Dias escreve
A implicação das pessoas no processo de identificação dos problemas e na decisão sobre as prioridades de investimento cria um compromisso cívico e uma identificação com os destinos do desenvolvimento do município. A dinâmica gerada contribui para uma maior consciencialização sobre a importância da comunidade e da interdependência entre os seus elementos, quebrando, de certa forma, o individualismo e a competição, próprios de uma concepção democrática mais liberal. (2008: 195)
23Num certo sentido, a democracia participativa local não parece ser apenas tributária da política no seu sentido mais reduzido mas de uma capacidade comunicacional (Habermas, 1979) que através da discussão pública expande a cultura cívica e o sentido colectivo de pertença a uma comunidade. Frequentemente a legitimidade da acção vem menos da acção em si mesmo mas deste processo comunicativo.
24Frequentemente os partidários da democracia local enfatizam o processo participativo em detrimento do conteúdo, mas a questão central do ponto de vista da coesão social é averiguar se estes processos, no seu impacto, diminuíram as desigualdades e aumentaram a equidade social através da redistribuição dos recursos.
25Considera‑se que essas formas de participação estão no coração da mudança social e das novas formas de regulação, mas fazem‑se no contexto de relações sociais e de poder. Estas relações sociais não são meras interacções, mas relações de poder e quando envolvem decisões sobre recursos estes são um meio de troca, de negociação, de contratualização, mas também de hierarquização, de manipulação e de conflitualidades várias. Nesse sentido, também a democracia local é mediatizada por relações de poder, isto é, por relações de troca desigual que comportam sempre uma base de negociação potencial, podendo pois perguntar‑se quem ganha e quem perde neste jogo de actores. Questão difícil de responder e que obriga a dar conta da importância de: o que foi discutido? quem discutiu? qual a capacidade de decisão dos actores sem poder? qual o impacto na redistribuição local dos recursos?
26A este nível, os estudos realizados mostram a fragilidade da situação em Portugal, essencialmente porque: i) os assuntos colocados à discussão são de carácter menor face ao investimento em bens e serviços camarários; ii) esses assuntos e obras não têm verdadeiramente impacto na transformação das dimensões de redistribuição social; iii) a presença de populações de mais baixa renda não está suficientemente representada.
27Dias e Allegretti (2009), analisando os orçamentos participativos em Portugal, concluem a este nível que:
… os OP’s em Portugal inserem‑se maioritariamente na perspectiva de criação de uma democracia de proximidade (geográfica e comunicativa), sem grandes preocupações do ponto de vista da incentivação de justiça distributiva e coesão socioterritorial. Eles são primariamente considerados como instrumentos importantes no restabelecimento do diálogo entre eleitos e eleitores na criação de uma nova fonte de legitimidade política. (2009: 74)
28No entanto, Granado (2009) chama a atenção para o facto de que em Belo Horizonte a negociação é realizada frequentemente entre “bairros” de composição social muito diferente e que a hierarquia das necessidades se torna um assunto central. Nesse confronto, realizado com visitas aos locais de todas as partes, são frequentemente os interesses dos mais pobres que vencem, pois as “classes médias” cedem perante as óbvias e visíveis necessidades dos mais frágeis socialmente. Granado escreve
A inversão de prioridades que o OP propicia é consequência de medidas político‑administrativas, sobretudo o aumento de recursos financeiros para as zonas mais carentes e a prioridade que é dada às comunidades que participam mais. Estas medidas têm reflexos na dimensão económico‑social: diminuição das desigualdades sociais e melhoria das condições de vida para os mais pobres. (2009: 199)
29Dias é da mesma opinião : “O OP possui, assim, um potencial significativo de promoção de uma democracia com maior capacidade redistributiva” (2008 : 196).
30Nesse sentido, algumas das formas de democracia directa estão claramente ancoradas na construção da acção colectiva e no aprofundamento da democracia com objectivos de uma maior equidade social. Mas também se conhecem muitos casos onde o processo apenas reforça a legitimidade de decisões pré‑formatadas bem longe dos interesses dos que apresentam maiores necessidades.
31Um dos objectivos da democracia local é o reforço da eficácia da administração, entendido por via de três níveis de argumentação: i) uma decisão de proximidade tem mais capacidade de análise dos problemas e de acerto em soluções integradas; ii) os mecanismos de participação envolvem recursos de uma miríade alargada de actores, aumentando os recursos da administração; iii) há uma “fiscalização” sobre os desperdícios dos verdadeiramente interessados na resolução dos problemas.
32Mas as conclusões sobre os resultados práticos das experiências de democracia local não são unânimes. Muitos criticam estas formas de funcionamento em rede, de “parceria”, pela sua excessiva burocratização, ressaltando que frequentemente: i) aumentam a opacidade das decisões, agora diluídas num colectivo sem formas precisas e sem rosto; ii) a representação é fundamentalmente de organismos institucionalizados, frequentemente com predomínio dos interesses públicos; iii) a contradição entre as intenções de uma gestão não hierárquica, mais flexível, transversal e integrada e que ainda hoje se confronta com a excessiva hierarquização da cadeia de decisão, horizontalidade dos programas e decisões dos vários serviços públicos, falta de capacidade de decisão e de autonomia técnica ao nível local dos participantes.
33Granado (2009: 335) a partir da experiência de Belo Horizonte, chama a atenção para o facto de que a sustentabilidade da participação exige o recurso a normas e regras e que a participação democrática ao nível local não é um projecto espontâneo, exigindo “o recurso a uma metodologia que motive a população e a existência de um conjunto de normas e regras que sustente a complexidade do processo participativo e garanta transparência ao nível dos resultados”.
34Seria necessária uma análise dos processos e das formas concretas da acção, bem como dos seus efeitos, para ter uma noção da eficácia instrumental destes processos; mas frequentemente estes processos de “participação” fazem‑se à margem e com o desconhecimento de toda a aparelhagem administrativa da autarquia. Assim, nem a máquina administrativa participa nos processos de debate e reestrutura novas culturas organizacionais, tornando‑as mais próximas das necessidades, como tende a não privilegiar esses momentos, considerando‑os puro folclore dos eleitos.
35A democracia participativa encara os cidadãos não como consumidores mas como produtores da sociedade, o que é uma inversão de lógica cheia de sentido e de impactos práticos. O movimento de participação aumenta o poder dos membros da sociedade enquanto produtores, incluindo‑os na esfera pública da partilha de informação e de poderes com eleitos, decisores e técnicos. Esta partilha de poder não se faz sem conflitos, quer entre as visões do mundo, quer na partilha das competências técnicas, quer ainda nas negociações de interesses entre os vários actores.
36Se por vezes se torna difícil convencer os eleitos sobre as virtualidades desta partilha de poderes, não é menor a resistência dos técnicos, que tendem a ver estes processos de participação cidadã como “bricolage” do sistema e manipulação política dos eleitos.
37Nelson Dias escreve que:
O OP permite o equilíbrio de poderes por via de um espaço de comunicação que procura integrar o conhecimento técnico com as necessidades sentidas pela população, sem que algum se sobreponha ao outro. A este nível é curiosa a observação de Sérgio Azevedo ao referir que o OP ajudou a ampliar a visibilidade do processo orçamental, anteriormente pouco conhecido e entendido como um assunto específico de especialistas. (2008: 195)
38Uma verdadeira postura de pedagogia participativa exige capacidade de lidar com os incessantes obstáculos e aventuras de um processo participativo, competências que não decorrem de si nem estão geralmente disponíveis numa concepção tecnocrática do “poder local”. Desencadear um processo de participação exige necessidade de lidar com sistemas complexos e imponderáveis. Todos sabem como se iniciam esses processos mas ninguém sabe como vão terminar na multiplicidade das posturas, conflitos e possibilidades de consenso. A capacidade de negociação, de convencimento e até de sedução para a causa pública não é compatível com uma postura manipulativa ou tecnocrática.
39Também é de dar conta que a visão idílica de que a democracia participativa vai de si num mundo de utopia socialista é de afastar. São vários os factores que se atravessam e que tornam mais complexa a interacção entre os vários interesses em presença. Em primeiro lugar, os que se aproximam da arena da participação vão motivados pelos seus interesses individuais que, frequentemente, contrariam dimensões mais vastas de igualdade na redistribuição dos recursos. Estas posturas, que não são de criticar pois assentam na defesa de interesses muitas vezes legítimos embora restritos, podem chocar de frente com interesses de grupos com menores recursos. São frequentemente as classes médias as que se encontram mais preparadas para defender os seus interesses pelo conhecimento, recursos e visões do mundo que detêm e muitas vezes a posição NIMBY, de “sim, mas não no meu quintal”, domina.
40Mas também, em muitos contextos, a extrema partidarização da vida social local faz com que muitos processos de participação se esgotem na agitação das clientelas partidárias e se tornem arenas desinteressantes de luta, não pela satisfação das necessidades sociais reais, mas pelo poder partidário ou político no sentido mais restrito do termo.
41O domínio da democracia local é bem mais complexo do que parece e do que por vezes as boas intenções assinalam. Essa complexidade aumenta à medida que avança o conhecimento e que há consciência crescente dos impactos das decisões.
42O crescimento das competências dos participantes, o domínio das áreas de uns e outros, faz da participação um processo também cognitivo sobre as dinâmicas do desenvolvimento urbano e humano das sociedades locais… e não só.
43Envolver o público nas decisões significa transformar as práticas tradicionais da administração e obriga ao dispêndio de recursos e de tempo. Nem todos consideram que esse investimento vale a pena e, sobretudo, se os autarcas e eleitos não valorizarem a participação local jamais se disporão a passar horas longas a ouvir reivindicações por vezes sem alcance, acusações frequentemente sem fundamento, conflitos entre interesses difíceis de gerir pois em “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. A exigência de tempo, de pedagogia democrática, de paciência pessoal e de capacidade de sedução e de negociação são qualidades que não estão disponíveis em todos os eleitos.
44Os processos participativos têm um preço e uma temporalidade que são custos acrescidos e quanto maior for a proximidade, maiores os níveis de negociação exigidos.
45A democracia local é uma actividade que só dá frutos a longo prazo e é pouco compatível com urgências e metas de curto prazo mas, em contrapartida, os seus efeitos perduram no tempo bem mais do que uma geração. Sobretudo, não dispomos de momento de outras formas de aumentar a capacidade de treinar a capacidade reflexiva e de decisão local, bem como de aumentar as dimensões de gestão colectiva de uma sociedade.
46Não há metodologias mais adequadas do que outras para a democracia local, tudo depende do contexto e do que se quiser colocar à discussão. Mas sabemos pelo menos que a democracia participativa ao nível local é um processo longo, continuado, sistemático de feedback permanente e não é compatível com actos isolados e pontuais, desenraizados de toda uma cultura organizacional camarária.
47A democracia participativa é indispensável à sociedade actual por razões técnicas, políticas e sociológicas. Não se visualiza outra forma de resolução dos conflitos de interesses, na diversidade e na complexidade da vida social, sem confrontar directamente os que são protagonistas desses interesses, negociando soluções e inventando novos rumos onde todos possam viver juntos. Também não se visualiza o aumento da capacidade de conhecimento e de gestão dos eleitos sem contacto directo com a complexidade social, confrontando as decisões com os seus efeitos benéficos e perversos e gerindo em contínuo uma sociedade em mudança acelerada.
48Também não se concebe uma sociedade “bunker”, onde cada um se fecha num condomínio fechado e onde a capacidade de viver a urbanidade e a cidade se faz de forma virtual ou não se faz mesmo.
49Infelizmente, a cultura democrática aprofundada que valoriza – e não teme – as formas de construção da acção colectiva, numa profunda articulação entre a democracia eleitoral e a democracia participativa, não está ainda difundida em Portugal. Frequentemente o discurso da democracia participativa obedece mais a necessidades do marketing político, e poucas cidades foram capazes de estabelecer uma estratégia de desenvolvimento que assumisse a participação como uma forma integrada e normal de funcionamento das máquinas camarárias e como um processo circular e contínuo (Sintomer, 2009).
50Nelson e Allegretti são particularmente duros na apreciação do tipo de democracia ainda muito difundida no país quando escrevem que os eleitos detêm
uma concepção ligeiramente mística do interesse geral – que se supõe estar automaticamente defendido pelos eleitos, “santificados pelo milagre da eleição”, ou pelos representantes de um Estado que, por natureza, seria o seu garante – desempenha, provavelmente um papel nesta situação. Remete para uma versão de inspiração francesa do republicanismo, particularmente paternalista para com os cidadãos. E explica também, em parte, a resistência de muitos dos responsáveis políticos (especialmente no âmbito das redes e das instituições representativas nacionais das autarquias: nomeadamente ANMP e ANAFRE) em relação a dinâmicas participativas, muito superior em Portugal quando comparado com países do Norte da Europa ou com a vizinha Espanha. (2009: 77)
51As metodologias participativas têm tido dificuldade em estruturar‑se pois são demasiado fluidas, as responsabilidades demasiado vagas e não há formas de monitorização e de avaliação da concretização dos resultados.
52O Brasil, com o vigor de uma sociedade civil desperta e exigente, é um bom exemplo a seguir e mostra bem que a participação local é cada vez menos um folclore de alguns bem‑intencionados, mas uma necessidade de concertação quotidiana numa sociedade de fortes contrastes sociais que mantém no entanto a utopia da procura de justiça social.