- 1 Se o veraneante, “esse estranho personagem moderno [,] se desloca anualmente do seu território fam (...)
1Na História de Portugal de José Mattoso, Fernando Rosas diz que “olhar para o país na década de 60 é enfrentar um mundo completamente diferente” (Rosas, 1994: 441). Sob o ponto de vista do turismo, esta afirmação ganha especial pertinência. A uma oferta dedicada quase exclusivamente à procura interna, centrada na propaganda dos “Valores Turísticos Nacionais” e estruturada a partir de uma rede de pousadas espalhadas pelos principais itinerários turísticos do país, sobrepõe‑se, então, a necessidade de dar resposta à crescente entrada de estrangeiros que atravessam as nossas fronteiras à descoberta do sul. O “veraneante” dá, assim, lugar ao “turista”.1 Evolução tipológica que iria revolucionar o mapa do turismo português, fomentando o aparecimento de novas geografias do lazer que seria preciso planear e equipar. O litoral, principal cenário da construção de um “tempo de férias”, será o território de eleição para a experimentação de outras formas de produção turística, em que arquitectos e urbanistas se aliam aos grandes investimentos privados, nacionais e, a partir desta década, internacionais, para criar as novas paisagens do ócio.
- 2 O direito a férias pagas é introduzido em Portugal em 1937, apenas um ano depois de França, ainda (...)
2A recuperação económica conseguida no pós II Guerra Mundial, com as ajudas Marshall e a criação da OCDE, teria as suas repercussões na melhoria das condições de vida na Europa, assistindo‑se à consolidação de conquistas sociais importantes, como o direito a férias pagas, conceito introduzido já nos anos trinta,2 mas que agora ganha outra dimensão, e a democratização do acesso a meios de transporte particulares e colectivos, como o automóvel, a camioneta e o avião, surgindo, nesta altura, as primeiras companhias de voos charter internacionais. A liberdade associada a estas conquistas, na possibilidade de escolha de como e onde ocupar o tempo livre de cada um, iria desencadear um movimento de massas sem precedentes na história do turismo. A atracção pela costa, como espaço de lazer privilegiado, e o exotismo das culturas do sul, associado à apologia do sol e da praia, alimentam toda uma procura que fomenta a deslocação sazonal das populações do centro e norte da Europa rumo à bacia mediterrânica, na qual Portugal se inscreve, por extensão, como destino turístico apetecível.
3Necessariamente, às formas de sociabilidade associadas à moda da praia correspondem novas condutas e códigos de expressão individual. O biquíni é o símbolo máximo desta nova maneira de estar. Ainda que apresentado em Paris, pela primeira vez, em 1946, criação polémica do engenheiro mecânico Louis Réard, é só com o impulso dado pela produção cinematográfica da época que o uso do biquíni se vulgariza. Quem não se lembra de Brigitte Bardot em “Et Dieu... créa la femme”, de 1956, realizado por Roger Vadim, ou de uma desafiante Ursula Andress, numa das mais emblemáticas cenas do primeiro filme da série James Bond, “Dr. No”, de 1962?
- 3 Iniciado em 1955, o “Inquérito” seria publicado, em 1961, sob o título Arquitectura popular em Por (...)
- 4 Concurso promovido pelo SPN – Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, que (...)
4Mas às imagens sensuais que nos chegavam lá de fora no grande ecrã, o “Inquérito à arquitectura popular em Portugal”3 contrapunha uma realidade bem menos “glamorosa”. “Uma iniciativa necessária” lançada por Francisco Keil do Amaral, em 1947, nas páginas da revista Arquitectura, o “Inquérito” revelava uma população predominantemente agrária, envelhecida e (sobre)vivendo em condições de quase miséria. Era o Portugal rural apadrinhado pelo regime salazarista e já cristalizado no “Concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal”.4
5Esta situação vinha agravada pelo espoletar, em três frentes quase simultâneas, da Guerra Colonial, exigindo ao país um esforço financeiro extraordinário, que se iria prolongar ao longo de mais de uma década. Esse esforço só é contrabalançado pela entrada de divisas provenientes, por um lado, da crescente massa de emigrantes que abandonam o país por motivos essencialmente económicos, mas também políticos, e, por outro, do crescente número de entradas de turistas nas fronteiras portuguesas.
6Pelas estatísticas do INE, para uma população residente que ronda em média os 8 milhões de habitantes no período de 1960 a 1970, assistimos a um pico de emigração em 1966, com 232 000 emigrantes estimados, e à afirmação de Portugal no roteiro dos destinos turísticos internacionais, atingindo‑se o milhão de turistas em 1964, os 2 milhões em 1967 e, em 1970, os 3 milhões, representando as receitas turísticas conseguidas deste fluxo migratório uma importante fatia no saldo da dívida externa do país. É neste contexto que se percebe a aparente abertura ao investimento exterior promovida pelo governo no final dos anos sessenta.
- 5 Tal como pela primeira vez se integra, também, um capítulo referente à habitação, sinal de uma mai (...)
7Naturalmente, estes números teriam o seu reflexo no delinear dos Planos de Fomento. Inicialmente centrados na consolidação dos sectores agrícola (I Plano de Fomento, 1953‑1958) e industrial (II Plano de Fomento, 1959‑1964), mas sempre atentos à necessidade da infraestruturação do território, acusam, a partir do pico de entradas observado em 1964, a importância que a actividade turística começa a ter para a balança de pagamentos nacional. No Plano Intercalar de Fomento, para o período de 1965‑1967, é criado pela primeira vez um capítulo dedicado exclusivamente ao turismo, atribuindo prioridade aos investimentos a realizar nesta área.5 Com a chegada do segundo milhão de turistas em 1967, o III Plano de Fomento, para 1968‑1973, considera já este sector como estratégico para o crescimento económico do país, quer como mecanismo de exportação de serviços, quer como catalisador de efeitos noutras áreas de produção. Nos objectivos do Plano de Fomento de 1974‑1979, cuja execução é interrompida com a Revolução de Abril, é ainda evidente o peso que se atribuía ao turismo no equilíbrio das finanças internas e das assimetrias regionais e, mesmo, sociais do país.
8Já não é de um turismo idealista que se trata, mas de um turismo de massas, “no sentido de multidão e também no sentido de dinheiro e de proveitos”, “cuja exploração pode trazer ao País apreciáveis rendimentos” (Amaral, 1962). À Fonte de riqueza e poesia de António Ferro sucediam‑se as “Nuvens negras” profetizadas por Keil do Amaral.
- 6 Dean MacCannell define uma atracção turística como “uma relação empírica entre um turista, uma vis (...)
- 7 Conceitos que serão centrais para o questionamento da ortodoxia do Movimento Moderno dentro da pró (...)
9A expansão de uma cultura dos tempos livres a partir da década de sessenta, no que Joffre Dumazedier (1962) designa por “civilização do lazer”, iria ter as suas repercussões na prática da arquitectura. O lazer, entendido enquanto “valor” e enquanto “actividade”, é agora assumido como elemento central na definição de um “estilo de vida”, “substituindo a “ocupação” como a base de fundação das relações sociais, do status social e da interacção social” (MacCannell, 1999: 6). Deslocação de perspectiva que vinha colocar novos desafios programáticos aos arquitectos e, sobretudo, contribuir para o debate contemporâneo da revisão do Movimento Moderno. Porque se, na sua essência, o turismo pode ser entendido como uma procura do que é único e singular, ou seja, do extraordinário, a arquitectura, para participar deste processo, tem de ser capaz, ou de se constituir ela própria como atracção turística,6 isto é, de se revestir de significado simbólico, ou de transmitir um sentido de lugar, criar um ambiente suficientemente distinto para atrair potenciais turistas. Ideia que nos reporta para conceitos como “monumento”, “memória” e “identidade”, que o discurso moderno rejeita, à partida, enquanto projecto a‑histórico, universal e uniformizador.7
- 8 “Ser turista é uma das caracetrísticas da experiência ‘moderna’. Não ‘ir para fora’ é como não ter (...)
- 9 “O turismo é prefigurativamente pós‑moderno pela sua combinação particular do visual, do estético, (...)
10E aqui reside uma das mais interessantes contradições estruturais do fenómeno turístico. Se, por um lado, é um produto indissociável da sociedade moderna,8 por outro é uma construção cultural de carácter intrinsecamente pós‑moderno.9 Nesse sentido, também a arquitectura, enquanto mecanismo de espacialização da experiência turística, depende deste cruzamento entre “diferenciação” e “representação”.
- 10 Para Kenneth Frampton “Regionalismo crítico é menos um estilo do que uma categoria crítica voltada (...)
- 11 John Urry define o “pós‑modernismo vernacular” como uma variante da arquitectura pós‑moderna, em q (...)
11É precisamente neste confronto que opõe “modernidade” e “identidade”, que a produção arquitectónica dos anos sessenta se vai balizar, definindo uma “terceira via” de pensamento, que Kenneth Frampton viria a designar por “regionalismo crítico”10 (Frampton, 1997: 381) e John Urry de “pós‑modernismo vernacular”11 (Urry, 2002: 114).
12Não é, no entanto, exclusivamente ao nível da sua capacidade de “comunicação” que se estabelece a relação entre a arquitectura e o turismo. É, também, na dimensão mais prática da sua utilidade, da sua função. O turismo, entendido como “viagem” ou “deslocação”, implica, necessariamente, a construção de equipamentos que o suportem, fixando esta actividade num tempo e num lugar concretos. Assim, às novas formas de organização do lazer resultantes da generalização da experiência turística vão corresponder novos programas e tipologias arquitectónicas que tentam dar resposta à crescente massificação e diversidade de procuras que se esboçam a partir desta década. Esse aumento de escala vai-se reflectir no tipo de encomendas que dominam a prática profissional deste período, favorecendo o ensaio de novos modelos formais, espaciais e, mesmo, de produção, associados a uma arquitectura do turismo.
- 12 Das outras duas equipas constituídas para participar no concurso faziam parte, numa, os arquitecto (...)
- 13 Curiosamente, a primeira finalizada e a segunda lançada em 1959, ano em que são extintos os CIAM.
- 14 Empreendimento só equiparado, vinte anos mais tarde, à construção do Centro Cultural de Belém, pro (...)
13Em Portugal, a balizar a década, assistimos à inauguração de dois importantes equipamentos turísticos na capital: o Hotel Ritz (1952‑1959), obra de Porfírio Pardal Monteiro para a SODIM – Sociedade de Investimentos Imobiliários, e a Fundação Calouste Gulbenkian (1959‑1969), da equipa vencedora do concurso restrito por convites, Alberto José Pessoa, Pedro Cid e Ruy Jervis d’Athouguia, com a colaboração dos arquitectos paisagistas António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles.12 São duas obras que testemunham, por um lado, a conjuntura disciplinar internacional,13 e, por outro, o momento de experimentação tipológica que se vive, avançando com um novo conceito de hotel e com o programa inédito, no nosso país, da construção de um centro cultural.14
14Mas é na costa que vamos encontrar as intervenções mais emblemáticas desta nova fase de infraestruturação do lazer. País de situação geográfica periférica, Portugal destaca‑se nos roteiros internacionais pela oferta de “sol, areia e praia”, trilogia que vem reforçar a sua condição de “limite” e, por isso, a sua atractividade aos olhos do turista.
- 15 Com contrato de construção assinado em 1957, a obra seria adjudicada, em 1960, à empresa norte‑ame (...)
- 16 Inaugurado a 11 de Julho de 1965.
- 17 Ainda que, na sequência da institucionalização, em 1934, dos “Planos gerais de urbanização”, se te (...)
15No início dos anos sessenta, o anúncio da construção de uma nova travessia rodoviária sobre o Tejo,15 que vinha ligar, directamente, Lisboa a Almada, e a perspectiva da localização de um aeroporto internacional em Faro16 determinariam uma escalada dos grandes investimentos turísticos rumo ao sul. O Algarve, território há muito esquecido pelo poder centralizador do regime,17 cobre‑se de “Nuvens negras” sob a ameaça de especuladores imobiliários que procuram “grandes lucros e rápidos” (Amaral, 1961: 1). É o arquitecto Francisco Keil do Amaral quem dá o alerta, na primeira página do Diário de Lisboa, de 23 de Fevereiro de 1961. Atento à crescente descaracterização da costa algarvia, face a uma liberalização tendenciosa da iniciativa privada, Keil do Amaral defende a urgência de se proceder ao planeamento turístico da região. Preocupações que seriam sedimentadas nas “Bases para o desenvolvimento turístico do Algarve”, relatório que lhe é encomendado pelo então Ministro das Obras Públicas, Eduardo Arantes e Oliveira, e finalizado em 1962.
- 18 Frederico George, no Sector 3; Conceição Silva e Maurício de Vasconcellos, no Sector 4; António Ro (...)
- 19 Destes, em 1972, apenas três estavam completos (Sector 3 – Lagos; Sector 4 – Portimão; e Sector 11 (...)
16Pelo seu rigor e profundidade, este estudo viria a servir de base para a elaboração, quatro anos depois, de um “Plano regional do Algarve”, coordenado pelo urbanista italiano Luigi Dodi, professor da Universidade de Milão, que havia participado no Colóquio sobre Urbanismo, realizado em Lisboa em 1961. O “Plano regional” seria, por sua vez, segmentado em planos parciais, desenvolvidos, cada um deles, por diferentes equipas de arquitectos,18 dividindo‑se a costa algarvia em onze sectores.19 Procurava‑se, desta forma, criar um instrumento prático de ordenamento urbano e territorial que orientasse o surto turístico em grande escala que se adivinhava no Algarve, atendendo, por um lado, às consequências deste fenómeno na estrutura social e económica local e prevendo, por outro, a evolução da capacidade turística da região.
- 20 É só com o Decreto‑Lei 560/71 que se estabelece, finalmente, uma base legal para que este tipo de (...)
17Mas, apesar de todo o esforço técnico envolvido neste processo, a verdade é que este plano apenas se viria a constituir como instrumento de orientação e coordenação geral, sem obrigatoriedade de ser implementado, uma vez que o planeamento regional não se encontrava ainda contemplado sob qualquer forma de regulamentação específica.20 A conflitualidade dos interesses implicados, desde o poder central, aos municípios e aos proprietários privados, e o desfasamento que se verifica entre o modelo urbanístico preconizado e a realidade dos mecanismos de urbanização, dependentes da organização cadastral do solo, levaria a sucessivos desvios ao instrumento regulador, pondo em causa a sua capacidade de gerir a transformação do território.
- 21 Organismo, do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, criado em 1944 e que passa a centraliz (...)
18Mesmo assim, em 1967, a Direcção‑Geral dos Serviços de Urbanização21 encarrega os arquitectos paisagistas António Viana Barreto, Duarte Frazão Castello‑Branco e Álvaro Ponce Dentinho da realização de um “Estudo preliminar do ordenamento paisagístico do Algarve”. Estudo, também ele, sem repercussões reais para o desenvolvimento da região.
- 22 Os diversos estudos encomendados pelo governo português, ao longo da década de sessenta, para o pl (...)
- 23 Tal como já haviam estado envolvidos, cerca de vinte anos antes, na elaboração dos “Planos gerais (...)
19Embora inconsequentes, estes dois exemplos testemunham a actualidade da planificação do turismo no nosso país, em relação ao contexto internacional,22 e o envolvimento dos arquitectos portugueses, ao lado dos urbanistas, na discussão e resolução dos problemas de desenho do território introduzidos, nos anos sessenta, com a explosão do fenómeno turístico.23 Esse envolvimento ia revelar-se bem mais profícuo ao nível da encomenda privada.
- 24 Pela Lei N.º 2082, de 4 de Junho de 1956, que cria, no Secretariado Nacional da Informação, o Fund (...)
20Na costa, os anos sessenta vão dar continuidade aos grandes programas turísticos da década anterior: o hotel de praia e as piscinas de mar. Com o surto de construção hoteleira que se verifica nesta altura, em muito favorecido pela criação, em 1956, de um Fundo de Turismo,24 podemos perceber uma evolução tipo‑morfológica neste tipo de equipamentos. As piscinas de mar, de certa forma, desaparecem para passar a estar integradas nos complexos hoteleiros e os hotéis de praia ganham crescente independência em relação aos aglomerados urbanos que lhes dão origem, para construir o seu próprio território, a sua própria paisagem, anunciando as megaestruturas hoteleiras do final da década. Estas estruturas auto‑referenciáveis e auto‑suficientes, em que o hóspede encontra à sua disposição uma série de programas complementares – piscina, “boîte”, casino, golfe – que procuram responder às suas necessidades recreativas e ancorar a actividade turística no interior da unidade de alojamento.
21Ainda neste período, surgem os primeiros ensaios em torno de novas formas de organização turística, como é o caso dos aldeamentos. Procura‑se, neste caso, resgatar relações ancestrais de ocupação humana, recriando ambientes e traços do povoamento tradicional, centrados na vivência da rua e da praça, e recuperando elementos identitários da arquitectura local. Paradoxalmente, a sua condição de empreendimentos privados nega, logo à partida, a pretendida unidade territorial e a necessária descontinuidade física que estabelecem com a envolvente próxima transforma‑os em comunidades fechadas sobre si mesmas, verdadeiros condomínios privados.
22Estas propostas iriam evoluir para um outro nível, o das cidades de lazer ou de turismo. Intervenções à grande escala e a longo prazo, que vão implicar uma crítica às formas tradicionais de organização da cidade, pensando‑a, agora, a partir da perspectiva, ainda que monofuncionalista, do lazer. Implicam também o reequacionamento do papel do arquitecto no processo de produção da arquitectura, de projectista a coordenador de uma vasta equipa de técnicos de diferentes áreas. Esse reposicionamento iria ter as suas repercussões nas metodologias de trabalho, até então, defendidas no seio da disciplina, fomentando o aparecimento de grandes empresas multidisciplinares em concorrência com os pequenos ateliers.
23A esta evolução tipológica e metodológica iria corresponder, ainda, uma evolução no carácter dos investimentos envolvidos na promoção de uma arquitectura do turismo. Se, numa primeira fase, são estritamente capitais portugueses que estão por detrás da construção de equipamentos turísticos no nosso país, a partir da liberalização económica promovida pela “primavera marcelista” são essencialmente investimentos estrangeiros que vão alimentar os grandes empreendimentos do turismo em Portugal. O próprio arquitecto Keil do Amaral dá‑nos conta dessa tendência logo no seu artigo de 1961:
Só porque um holandês rico ou um nababo inglês compraram por bom preço umas quintas, inúmeros proprietários de terrenos agrícolas convenceram‑se de que iriam chegar diariamente ricaços de todo o Mundo com montes de dinheiro fácil para comprar todo o Algarve em quintas ou talhões. (Amaral, 1961: 11)
24Mas a verdade é que chegaram. E compraram os melhores terrenos da nossa linha de costa, no que Mario Gaviria apelida de “neocolonialismo do espaço de qualidade” (Gaviria, 1974: 275). E não foi só no Algarve.
25Se em As praias de Portugal, de 1876, Ramalho Ortigão percorria toda a costa atlântica, de norte para sul, e se ficava por Tróia, cem anos depois o mapa do turismo português podia desenhar‑se, quase exclusivamente, daí para baixo.
26Falar da relação entre arquitectura e turismo em Portugal e, em particular, nos anos sessenta, é falar da obra do arquitecto Francisco Conceição Silva. Projectos como o Hotel do Mar (1960‑1963/1964‑1966), em Sesimbra, o Hotel da Balaia (1964‑1968), de que resultaria o “Plano de expansão turística da Praia Maria Luiza” (1964‑1966),25 ou o “Plano de urbanização da Ponta do Adoxe” (1970‑1973), parte integrante de um estudo mais vasto para a ocupação turística de toda a Península de Tróia (1962‑1974), são fundamentais para perceber a transformação de conceitos e a evolução tipológica que caracteriza a produção turística deste período. Do hotel de praia, à megaestrutura hoteleira e à cidade do ócio, Conceição Silva trabalha diferentes programas e diferentes escalas num percurso que reflecte o desenvolvimento da indústria do turismo, nacional e internacional, no contexto de uma sociedade de consumo de massas.
- 26 Numa primeira fase, com a construção de um novo restaurante por cima do corpo dos quartos (1963‑19 (...)
27Na periferia do pequeno aglomerado piscatório que lhe dá origem, Sesimbra, o Hotel do Mar marca um importante ponto de viragem na concepção dos hotéis de praia, afastando‑se da rigidez tipológica dos primeiros modelos, verdadeiras frentes construídas agarradas à marginal atlântica, para encontrar a sua forma na adaptação orgânica do programa à topografia do terreno. Encomenda da Casa Jalco, do decorador João Alcobia, o hotel seria inaugurado em 1963 e objecto de diversas ampliações nos três anos seguintes.26 Foi um processo indicativo da forma, ainda experimental, como esta obra é entendida, quer da parte do cliente, quer da parte do projectista, avançando à medida das necessidades e disponibilidades de cada um.
- 27 Parceria que é formada em 1965 e que se iria manter até 1967.
- 28 A Sociedade Hoteleira da Balaia, composta pela Orey & Antunes Sociedade Comercial e pela Könningkl (...)
28Já o Hotel da Balaia, no Algarve, define a fronteira entre o “Conceição Silva Arquitecto” e o “Atelier Conceição Silva”, inicialmente em parceria com Maurício de Vasconcellos.27 É este projecto, realizado para uma sociedade com a participação de capitais holandeses,28 que vai proporcionar o “salto para a frente” do arquitecto e, com ele, da indústria hoteleira em Portugal. Trata-se de um salto com implicações inevitáveis, e inadiáveis, para a cultura arquitectónica portuguesa.
- 29 Com um programa próprio no Rádio Clube Português, intitulado “Vector”, e que seria transformada, e (...)
29Conceito inédito no país, o contrato “chave‑na‑mão” da Balaia equacionava a actuação profissional sob uma nova perspectiva: para além da concepção do edifício, cabia pela primeira vez ao arquitecto criar as condições materiais para a sua concretização, controlando desde o investimento, aos processos e meios de construção, ao design de mobiliário e de equipamento, até à decoração e ao desenho do logótipo. “Deixou de ser [...] o ‘arquitecto de bengala’, [...] e passou a ser um elemento de uma grande engrenagem” (Silva, 1971: 46). Essa engrenagem compreendia diferentes áreas de intervenção. Entre 1967 e 1969, são criadas a AC – Trabalhos de Arquitectura e Construção; a ARP – Agência de Realizações Publicitárias;29 e a SIURBE – Sociedade de Investimentos Imobiliários. Todas operavam sob a administração directa do arquitecto, funcionando em estreita colaboração com o seu atelier. A convicção de Conceição Silva era a de que o arquitecto devia assumir um papel mais activo na produção da arquitectura, tomando as rédeas de todo o processo.
- 30 No Encontro Nacional de Arquitectos de 1969, Keil do Amaral reconhecia uma divisão na classe profi (...)
- 31 No número de Março‑Abril de 1969.
- 32 No Encontro foram apresentados à discussão seis temas: Tema 1 – Sindicalismo; Tema 2 – Política do (...)
30Esta colagem da prática profissional aos mecanismos do desenvolvimento capitalista – o arquitecto tornado promotor e empresário construtor – não é bem recebida numa classe que se identificava com ideais de esquerda e se apresentava ideologicamente empenhada na defesa da função social do arquitecto. Isso é evidente nas cisões que se esboçam no Encontro Nacional de Arquitectos de 1969, entre os que advogam uma “comercialização” da arquitectura, perspectivando “uma convergência das estruturas da produção e da realização” (Taveira, 1969: 53), e os que defendem a isenção ética do arquitecto, enquanto agente social e cultural independente dos interesses do capital30. O Encontro é realizado oito meses depois de o Hotel da Balaia fazer a capa da revista Arquitectura.31 Coincidência? Interessante é o facto de, apesar de ser uma “arquitectura do turismo” a desencadear todo este debate, o tema do turismo e das suas implicações no exercício da arquitectura estar completamente ausente das preocupações dos profissionais portugueses.32
31Tróia fixa a deslocação de escalas verificada no Encontro Nacional. Já não se trata apenas de equipar o lazer, mas de desenhar, de raiz, o território do turismo. Da “arquitectura total” da Balaia evolui‑se para o conceito de “paisagem total” de Tróia, onde, mais do que de megaestruturas arquitectónicas, se fala de cidades e de complexos de cidades de férias. A paisagem deixa de ser entendida como objecto de contemplação para ser consumida como um bem imediato.
- 33 A Soltroia – Sociedade Imobiliária de Urbanização e Turismo, de capitais predominantemente brasile (...)
- 34 As “Bases Urbanísticas para a criação de um Centro Turístico em Tróia” (1962‑1964), da equipa coor (...)
32Processo longo, de 1962 a 1974 cruzam‑se nesta língua de areia três sociedades de investimento turístico,33 que promovem quatro planos diferentes, coordenados por três arquitectos distintos.34 De Francisco Keil do Amaral a Francisco Conceição Silva, passando por João Andresen, a Península de Tróia vai ser pensada e desenhada para responder às solicitações de uma classe trabalhadora que vê reconhecido o direito a 22 dias anuais de férias remuneradas, com a promulgação do Decreto‑Lei N.º 49:408, de 24 de Novembro de 1969. Mas, se Keil defende a dispersão da construção segundo um modelo de urbanização de baixa densidade e altura, Andresen e Conceição Silva, em resposta às exigências da Soltroia de uma melhor adequação da proposta ao que entendia ser as solicitações do moderno turismo internacional, optam por uma ocupação concentrada favorecendo o desenvolvimento vertical – solução que aliava a rentabilização do investimento a uma optimização dos recursos naturais do território.
33Com base nesses pressupostos, Conceição Silva desenvolve, inicialmente apenas para a Ponta do Adoxe, um vasto programa de oferta turística que compreendia várias tipologias de alojamento, permanente e temporário, apoiadas por uma extensa rede de equipamentos culturais, comerciais e desportivos que ia ao encontro da perspectiva de que “um turismo de qualidade define‑se pelo que oferece e não pela capacidade económica do turista dito de qualidade” (Silva, 1972: 6). Simultaneamente, procurou‑se garantir a coerência formal e espacial do conjunto, conferindo‑lhe uma identidade própria, pela linguagem arquitectónica e pela solução urbanística adoptadas. “Imagem” e “ambiente” estão na base da relação entre turismo e arquitectura.
- 35 Em 1965, Cupertino de Miranda, principal accionista da LUSOTUR ‑ Sociedade Financeira de Turismo, (...)
34O sucesso desta primeira fase de construção levaria ao estudo do alargamento da intervenção para a zona da caldeira, centrado no projecto da marina. Para a concretização da proposta são postos no mercado títulos de participação com taxas de juro acima das praticadas pela banca, abrindo a possibilidade de lucro a um número alargado de pequenos investidores. É um esquema de financiamento inovador que vinha antecipar as operações de “time‑sharing” popularizadas nos anos oitenta. No entanto, a crise do petróleo, em 1973, e o 25 de Abril, de 1974, levariam à suspensão de todo o projecto, obrigando à intervenção estatal no processo de falência da Torralta. O sonho de construir uma cidade dedicada exclusivamente ao turismo ficava, assim, por concretizar em Tróia. Seria preciso ir ao Algarve, mais precisamente a Vilamoura,35 para perceber as verdadeiras implicações desta utopia.
35Com o agravamento da situação, internacional e nacional, do início da década de 1970, o sector do turismo entra em estagnação. O planeamento da costa, como o de todo o país, parece ter sido esquecido e só, em 1986, com um “Plano nacional de turismo”, volta a ser tema de discussão. As décadas seguintes são de saturação do território e a afirmação de Fernando Rosas encontra, agora, um significado ainda mais profundo. Em Cidade e democracia, de Álvaro Domingues, ou Portugal visto do céu, de Filipe Jorge, as imagens construídas do desenvolvimento económico e social das décadas de 1980 e 1990, com a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, testemunham o desequilíbrio do “cimento armado” sobre a paisagem natural, em especial na orla costeira. Mas, se é neste tempo de democracia que encontramos, de forma mais consensual, os maiores erros urbanísticos e arquitectónicos perpetrados no contexto português, temos vindo a optar por ignorar e, mesmo, demolir algumas das experiências mais interessantes dos “anos de ruptura” da década de 1960. São experiências que marcaram um ponto sem retorno para a classe profissional e que testemunham o impacto do turismo no seio da disciplina. E apesar do tema do turismo estar ausente, ainda hoje, das reflexões críticas dos arquitectos portugueses, a verdade é que aquelas obras foram um contributo fundamental para o “acertar de agulhas” da arquitectura portuguesa com o panorama da produção internacional.
36“Arquitecturas descartáveis”, até que ponto são tão diferentes ou menos interessantes que as mais recentes propostas para a Península de Tróia, para o Estoril ou para Óbidos? Não constituem elas a própria lição que, esquecida, é agora recuperada com “roupagem” nova e apresentada como inovação – “Troiaresort”, “Estoril Residence” e “Bom Sucesso – Design Resort, Leisure, Golf & SPA”? São perguntas que devíamos aprofundar.
37“A questão não é se devemos ou não preservar o passado, mas que tipo de passado escolhemos preservar” (Urry, 2002: 99).