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Debate social e construção do território
1. Intervir - Arquitectura e território em Portugal, uma leitura crítica

Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceição Silva: Sobressaltos em Lisboa, anos 1960

Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceição Silva: Turbulence in Lisbon in the 1960s
Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceição Silva : sursauts à Lisbonne, années 60
Jorge Figueira
p. 77-89

Resumos

Nos anos 1960, a arquitectura portuguesa vai disseminar‑se em várias experiências antagónicas. Nuno Portas, Hestnes Ferreira e Conceição Silva demonstram que o projecto de arquitectura não decorre de uma doutrina, e que a cultura arquitectónica é um campo crescentemente complexo. Portas rompe com a tradição Beaux Arts, que em Portugal é também a da arquitectura moderna, em nome de uma proficiência da análise e do sistemático; Hestnes Ferreira integra uma história poetizada na arquitectura moderna, seguindo a porta aberta por Louis Kahn, com quem trabalha; Conceição Silva reflecte uma relação permeável e inclusiva com o mercado, também das imagens, que a partir dos anos 1980 será comum na prática da arquitectura. A resposta “científica”, a exigência “poética” e o diálogo “comércio/arte” que as três experiências denotam, respectivamente, constituem, ainda hoje, uma aspiração particular para a jovem arquitectura portuguesa.

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1Na arquitectura portuguesa dos anos 1960 alguma coisa começa a acontecer. Não é de rompante, nem com manifestos. Se o Porto segue o seu caminho íntimo, e de África e Macau pouco se sabe, em Lisboa, a placa outrora compacta do Movimento Moderno, conforme consagrada no “Congresso de 48”, começa a mover‑se. Nuno Portas, Hestnes Ferreira e Conceição Silva representam três movimentos distintos, até antagónicos, em muitos aspectos. Mas têm em comum a procura de alternativas à inatingível perfeição e centro‑europeia racionalidade da arquitectura moderna, que está, aliás, na Europa e na América a ser contestada em muitos ângulos, em nome da História, do senso comum, ou da avassaladora “Segunda Era da Máquina”.

2Nas suas diferenças, nas suas diversas coreografias, Portas, Hestnes e Conceição Silva demonstram que o campo está aberto, e que mesmo num país periférico e de cara amarrada como Portugal, alguma coisa tem que acontecer. Porque não é à superfície que a crise do moderno surge, mas estrutural e implacavelmente. Representam, por isso, três importantes etapas para a arquitectura portuguesa, cuja acção e efeito ainda hoje se fazem sentir. Como veremos, Portas rompe com a tradição Beaux Arts, que em Portugal é também a da arquitectura moderna, em nome de uma proficiência da análise e do sistemático; Hestnes Ferreira integra uma história poetizada na arquitectura moderna, seguindo a porta aberta por Louis Kahn, com quem trabalha; Conceição Silva reflecte uma relação permeável e inclusiva com o mercado, também das imagens, que a partir dos anos 1980 será comum na prática da arquitectura. Paradoxalmente, embora cada uma destas abordagens tenha referentes muito claros no contexto internacional, demonstram uma capacidade de emancipação, isto é, de reflexão teórica e de adaptação contextual de que ainda hoje a arquitectura portuguesa é devedora.

Nuno Portas (1969), A cidade como arquitectura.

Nuno Portas (1969), A cidade como arquitectura.

Lisboa, Livros Horizonte

Nuno Portas – o “metaprojecto” na passagem da arquitectura para a cidade

3Numa extraordinária antecipação, Nuno Portas anuncia já em 1959 (Portas, 1959: 13‑14) aquilo que se torna claro em A arquitectura para hoje, o livro que publica em 1964, e que será o seu eixo central de actuação: a importância da demanda metodológica e a promoção de uma abordagem científica, em detrimento da intuição e da artisticidade como modelos para a arquitectura.

  • 1  A obra de Fernando Távora e Álvaro Siza é publicada em 1964 na World Architecture One (org. John D (...)

4Portas pretende então investigar a hipótese de um “metaprojecto” capaz de superar o impasse que decorre da ruína do racionalismo e da eclosão de novos formalismos, visionários ou não. À semelhança do que acontecia na arquitectura moderna antes do Estilo Internacional se impor como cultura de projecto, esta abordagem sistémica pretende evitar a discussão estilística tida como frívola e circunstancial. De qualquer modo, a superação do estilo não passa agora pela canonização de um estilo último como culminar da história, mas a atenção dada ao processo, seguindo a investigação da “Escola/Laboratório da Universidade de Cambridge”. O trabalho deste núcleo de investigação, como escreverá Portas mais tarde, produziu uma “verdadeira inovação nos métodos [...] alargando e aprofundando a racionalidade de que o modernismo se reclamava – abrindo então as janelas da teoria aos domínios da lógica e da matemática, da biofísica e das ciências humanas” (Portas apud Krüger, 2005: 11) O “metaprograma” e o “metaprojecto” de que Portas fala, por reflexo destas experiências, significava a formulação do problema arquitectónico como uma equação com todas as necessárias variantes colocadas em jogo. O resultado, nesse caso, seria o mais correcto, desde logo porque não dependia da falível intuição do arquitecto. Embora a matriz da aportação portuguesa seja então claramente centrada no manuseamento formal de elementos modernos e tradicionais, na linha da crítica de Bruno Zevi a Ernesto Rogers, começando a haver sinais de um certo reconhecimento internacional,1 o trabalho de Portas no LNEC, onde ingressa em 1962, dá o passo em frente no sentido da ruptura com a tradição artística da arquitectura em Portugal. Portas passa do antirracionalismo zeviano para o culturalismo de Rogers, e avança no sentido da assunção dos princípios da “Escola de Cambridge” e das propostas de Christopher Alexander.

5Já em 1963, a “propósito de uma experiência pedagógica na ESBA [Escola Superior de Belas Artes] do Porto”, Portas defende a necessidade de uma “reflexão antropológica sobre o conteúdo das formas espontâneas” se for feita “sem ilusões” (Portas, 1963: 17), dir‑se‑ia, sem arquitectura, e é crítico dos modelos em voga: um regionalismo “falso até às entranhas” e um moderno “retomado do estilo internacional por via brasileira” (Portas, 1963: 16‑17). Já nesta altura, Portas tem consciência precoce de uma eminente apropriação “banal” dos conteúdos do “Inquérito”:

Sobretudo após a publicação da Arquitectura Popular em Portugal, cremos encontrar, com frequência crescente, uma propensão ao rústico, uma espécie de estética de tradicionalismo e bom senso [...] mas que não tem sequer o suporte de uma ideologia populista como o experimentaram os italianos do famoso Triburtino. (Portas, 1963: 17)

6O problema é também que, para Portas, o “Inquérito” não tem um registo suficientemente científico e interdisciplinar para ser utilizado segundo as exigentes premissas que se querem adoptar. Portas defende o “estudo” mais do que o “desenho” e as suas “ilusões”: “as sociedades que se organizam não poderão, cremos, aceitar que a criação dos seus próprios espaços seja mais feita de instinto ou ao sabor do sentimento, sobre um rápido organograma distributivo” (Portas, 1963: 18). O processo tem que ser racionalizado, o que evitará o racionalismo; a sistematização da informação torna “possível a sua interpretação em forma; forma que tende assim a ser estrutural, isto é, a objectivar as necessidades vitais do homem” (Portas, 1963: 18).

  • 2  É essa alteração que Portas refere no posfácio que escreveu para A cidade como arquitectura [1969] (...)

7O livro que publica em 1969, A cidade como arquitectura, traduz a evolução do seu pensamento, como resultado das investigações no LNEC e também da sua experiência pedagógica na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, na segunda metade da década. A progressão que se sugeria no livro de 1964, no sentido da pesquisa do aprofundamento dos mecanismos do projecto mais do que a discussão da semântica das obras,2 é agora assumida. O que significará, na prática, um distanciamento das questões da arquitectura no sentido de um aprofundamento da questão urbana.

8Com a passagem da crítica para as questões metodológicas do projecto ocorre também uma mudança de objecto de estudo: do edifício, como artefacto, para a cidade, como território. A chave zeviana mantém‑se porém como referência cultural, no antagonismo face ao “esquema rígido de Brasília […] que sofre neste momento a contestação de tendências de expansão” (Portas, 1963: 24), a que agora se pode acrescentar a crítica às derivas “visionárias” a Oriente (“os Metabolistas) e a Ocidente (“Archigram”) (Portas, 1963: 24), que se fazem sentir nesses anos. Portas reitera a crítica ao moderno, recorrendo a uma expressão rossiana (Rossi, 1995: 35‑39) – “superar relações determinísticas de ingénuo funcionalismo” (Portas, 2007: 122) – e recusa a “arbitrariedade não‑relacional dos formalismos contemporâneos” (idem), ou seja, a objectualidade “fantástica” das propostas visionárias.

9Na prática, Portas quer superar tout court o formalismo estilístico na arquitectura, que afirma tratar‑se de “um campo quase desprovido de feed‑back” (Portas, 2007: 122). Como consequência, o arquitecto é uma figura socialmente pouco responsável, “desobrigando‑se da prestação de contas à sociedade” e com tendência a “isolar‑se perigosamente de outros caminhos pelos quais os homens avançam” (idem). Daí também a importância da “sociologia” enquanto forma de análise sistematizada das consequências da arquitectura. Para sair da esfera artística que tende a isentar o arquitecto de compromissos sociais e de uma aferição sistemática do que produz, é preciso encontrar um sistema que organize o projecto, viabilizando, nesse sentido, a accountability das suas premissas e resultados. A ênfase é colocada na concepção de um “processo de projectar”, “em vez de um projecto” (Portas, 2007: 34), de acordo com “o considerável esforço de clarificação metodológica comummente conhecido pela designação de métodos sistemáticos de projecto” (Portas, 2007: 43). Para Portas, esse tipo de investigação significa uma descontinuidade vital com a “teoria da arquitectura, sempre polarizada na descrição de intenções e linguagens – funcionalismo, empirismo, racionalismo” – permitindo sair da discussão do resultado para a avaliação do “processo de organização de um objecto” (idem). Assim se abriria uma “nova fronteira”, superando “de vez o obscurantismo de tendências formalistas de escolas” (idem). De acordo com as premissas do “estruturalismo”, então em voga, Portas visa encontrar aquilo que é decisivo no interior daquilo que é aparente, fixar uma estrutura que possa ser conhecida, dominada e comunicada. Para que haja o feedback, que permite a construção de um processo “cibernético”, é necessária “a consciência de uma língua comum que assegure coerentes estruturas de signos, ou uma base de sintaxe arquitectural” (Portas, 2007: 32) A ideia de um “metaprojecto” ou de um “metaprograma” (Portas, 2007: 33) significa então a fixação dessa sintaxe como instrumento que permite a avaliação e resposta dos casos em questão antes ainda ou para lá das preocupações formais convencionalmente arquitectónicas.

10Em qualquer dos casos, a démarche de inspiração “estruturalista” de Portas é acompanhada pela refutação clara de qualquer fundamento demiúrgico na acção do arquitecto ou possibilidade redentora por efeito da arquitectura. Isto mesmo é deixado claro na referência a Chombart de Lauwe, que Portas identifica como tendo posto em causa “o problema da legitimidade do arquitecto impor um estilo de vida, por progressista que fosse o seu projecto social” (Portas, 2007: 137). Embora o título do livro, A arquitectura como cidade, tenha ressonâncias rossianas, de facto, os seus conteúdos são muito diversos. O que interessa a Nuno Portas é, desde então, a matriz do seu posicionamento, é o processo que leva à forma e não a poética da forma, como acontece com Aldo Rossi. Daí a passagem, que será patente nas décadas seguintes, e ainda hoje, para as temáticas do urbanismo em detrimento da “objectualidade” arquitectónica.

Raúl Hestnes Ferreira, “Casa em Queijas”,

Raúl Hestnes Ferreira, “Casa em Queijas”,

Arquitectura, 129, Abril 1974, capa

Hestnes Ferreira – a história através da porta aberta por Louis Kahn

11O trabalho de Raúl Hestnes Ferreira com Louis Kahn, entre 1962 e 1965, alarga o quadro geocultural da arquitectura portuguesa nos anos 1960. Depois de construir a Casa em Albarraque (1960‑1961), de influência aaltiana, e de passar por Helsínquia, onde trabalhou no atelier de Bacckmann, Hestnes vai para a América em 1962, estagiando com Paul Rudolph na Universidade de Yale. Hestnes conta que a “escola funcionava no último andar do Museu de Yale do Kahn” e “um belo dia o curso deslocou‑se a Filadélfia para visitá‑lo” (Ferreira, 1973: 3). Transferindo‑se para lá depois da visita, Hestnes passa um ano no curso de Master da Universidade da Pensilvânia e dois no atelier de Kahn. Esta experiência permitiu‑lhe, como afirma, “conhecer a força moral e a posição profissional” de Kahn, “que embora estando em antagonismo com os valores estereotipados e vulgares do meio americano [...] é também amado pelos seus concidadãos” (idem). Afirma ter reencontrado aí, os “valores da integridade estrutural e construtiva” que tinha observado em Aalto, sendo também marcado pelo interesse de Kahn na “exploração do conhecimento dos grandes exemplos do passado” e em particular “pela construção romana que descrevia em termos maravilhados” (Ferreira, 1973: 3‑4). É também a personalidade de Kahn que o impressiona: “um homem que se preocupava tão pouco com os haveres [...] e estávamos ainda em 1964, longe dos Woodstock”. Naquilo que considera serem os “primeiros sintomas de contestação à sociedade de consumo [...] Kahn era um percursor” (Ferreira, 1973: 4).

12De facto, para lá das experiências que radicalizam o projecto no sentido da análise científica ou das propostas fantásticas, os anos 1960 são também atravessados por Kahn, figura capaz de integrar as conquistas da arquitectura moderna na sensibilidade cultural que emerge no pós‑guerra, interessada também naquilo que não muda, para lá daquilo que está a mudar. Kahn realiza uma improvável mediação americana entre o moderno e a temporalidade mediterrânica da história da arquitectura. Diríamos que regressa ao momento em que Le Corbusier, em Vers une Architecture (1923), coloca os prismas geométricos face ao Coliseu e ao Panteão para demonstrar a sua ancestralidade, que pode agora ser assumida sem a mediação clássica. Abandonando a retórica modernista, Kahn permite‑se abraçar tudo e regressar ao princípio. Como dirá Hestnes: “O Kahn defendia que a Arquitectura é una. Recusava essa coisa de dizer: acabou a arquitectura Moderna começou a não sei o quê...” (Ferreira, 2002: 281). O dictum “o que quer ser um edifício?” significa a negação do determinismo formal da função que é emblemático da arquitectura moderna. Para Kahn, a arquitectura é a conformação de uma “instituição” que preexiste – a “escola”, por exemplo – num determinado lugar e tempo. Num momento de desejo (ou de “silêncio”), o desenho dá expressão à arquitectura que surge como “luz” (Kahn, 1973: 131). Está encontrado aquilo que o edifício quer ser.

13Através de Hestnes e depois de Manuel Vicente, apesar da distância e da diferença cultural, a influência de Kahn faz‑se sentir na cultura arquitectónica portuguesa. Já em 1962, Portas tinha‑o apresentado na revista Arquitectura como uma alternativa viável ao impasse racionalista e às derivas estilísticas italianas, sublinhando o carácter reflexivo, introspectivo e “profundo” da sua abordagem:

Para Kahn a revolta contra uma estagnação da arquitectura não vem, como noutros, de se ter subestimado a arte nova ou de deixar cair a actividade profissional numa repetição monótona de clichés – mas de se não pensar uma obra até ao âmago, de se não lhe procurar a forma de um modo estrutural e significante. (Portas, 1962: 23)

14Depois de regressar da América, Hestnes dá conta da realidade americana em dois artigos: “Algumas reflexões sobre a Cidade Americana” (Ferreira, 1966: 1‑8) e “Aspectos e correntes actuais da arquitectura Americana” (Ferreira, 1967: 148). E a Casa de Queijas (1968‑1973) é já reflexo da lição kahniana, na gravidade telúrica do tijolo, uso de arcos e afirmação doméstica. Tanto os vãos como a cobertura reproduzem a ideia ancestral de “casa”. Os arcos achatados remetem directamente para a construção romana; as chaminés em tijolo para tradições islâmicas ou ibéricas. Mas não se trata de um regresso revivalista ao passado. O que o projecto de Kahn pressupõe, e Hestnes integra, é uma invenção que investe nos temas tradicionais das culturas mediterrânicas. Este relativismo e esta inclusão colocam‑nos no limiar da cultura pós‑moderna. Nada é realmente verdadeiro, mesmo se parece ser. Se os elementos arquétipos remetem para a tradição, o desenho é novo, assegurando a continuidade das conquistas da arquitectura moderna. As técnicas construtivas artesanais são invadidas por uma liberdade formal e gráfica. Numa primeira abordagem, estamos perante a presença de casas comuns, reproduzindo as duas águas do telhado doméstico. Numa abordagem mais próxima, é evidente que cada elemento, cada momento da casa é desenhado com a erudição de arquitecto: as guardas, as chaminés, as janelas, todos os elementos remetem para uma tradição laboriosamente reinventada. Se numa primeira impressão o edifício surge como construção arquétipa, o requinte e a complexidade do desenho coloca‑nos na segunda metade do século XX.

15Como afirmou Alexandre Alves Costa, Hestnes “chegou ao Mediterrâneo por um longo e sinuoso caminho, do Porto à Finlândia, da ordem dos Modernos a Kahn, a Roma, à universalidade da ordem compositiva. Chegou mais tarde a Itália do que muitos outros da sua geração porque nunca lhe interessaram as razões estilísticas que tanto os entusiasmaram” (Costa, 2007: 125). Este complexo itinerário alarga a geografia da arquitectura portuguesa, mesmo se Hestnes se instala num espaço temporal paradoxalmente pouco permeável ao tempo que passa. Hestnes é resolutamente pré‑Robert Venturi, assumindo “que a geração de Kahn estabeleceu a ponte com a grande arquitectura do passado, o que até conduziu às vezes a atitudes estéreis e historicistas” (Ferreira, 1973: 5). A sua abordagem mantém‑se, desde então, firmemente kahniana, poética e fundacional, sem descer, como notoriamente Venturi desceu, à “realidade”. Diz Venturi: “Kahn respeitava a direcção de Las Vegas que Denise e eu tomámos, mas não a podia aceitar para ele próprio” (Venturi, 1991: 98). A arquitectura de Hestnes permanece num tempo à parte, ainda hoje, fazendo justiça à sua filiação e à sua demanda temporal que, por definição, não pode incluir o efémero.

Conceição Silva – primeiras impressões no mercado das imagens

16O trabalho do Atelier de Francisco Conceição Silva, das primeiras lojas de 1954 e 1955 até o projecto de Tróia, interrompido com a Revolução de 1974, enquadra‑se bem no fim da normativa racionalista e da sua exigente ética “heróica”. Multidisciplinar, formalmente permeável, a obra do Atelier Conceição Silva dá lugar a abordagens que reflectem a sensibilidade pop, mas também a aspectos pouco habituais na arquitectura portuguesa, como o organicismo lírico de um último Frank Lloyd Wright no plano do Complexo Turístico do Sal‑Shell, em S. Pedro do Estoril (1967); ou uma sugestão “metabolista” no Plano de Ocupação de Avenida de Roma (1971) e no plano de Urbanização do Vale do Restelo (1973). A sugestão de uma construção aditiva, fetiche dos anos 1960 – o Montreal’ 67 de Safdie, o Nagakin Capsule Tower (1972) de Kurokawa –, será aliás retomada no projecto de Chelas (Zona J, 1975‑1978), de Tomás Taveira.

Atelier Conceição Silva, “Loja Valentim de Carvalho”,

Atelier Conceição Silva, “Loja Valentim de Carvalho”,

Arquitectura, 108, Março/Abril 1969, 70

17O Atelier Conceição Silva, do ponto de vista organizacional como na abordagem do projecto, adopta o clima de prosperidade económica e de usufruto liberal que a passagem dos anos 1950 para 1960 consagra nos países desenvolvidos. Entende as experiências da vanguarda arquitectónica como fontes que permitem desenvolver um produto competitivo, bem informado e up‑to‑date. Faz a mediação entre as necessidades de um mercado que em Portugal é incipiente e um cosmopolitismo a que se aspira. A partir da segunda metade da década de 1960 encontra alguma verosimilhança nas tentativas que o regime faz no sentido da implementação de um capitalismo liberal, de que o surto turístico é sinal prático. A manifesta disposição de ir ao encontro do que a sociedade “quer”, num projecto de mediação e já não de vanguarda, rompe com a tradição politicamente resistente e profissionalmente austera que move a melhor arquitectura portuguesa. Estas duas perspectivas tiveram aliás o seu cisma no Encontro Nacional de Arquitectura de 1969, como está documentado (Fernandez, 1988: 173). A produção do Atelier Conceição Silva traduz uma adesão ao tempo presente, pretendendo introduzir e incentivar no país, a partir da arquitectura, valores emergentes nas “sociedades desenvolvidas”: o design, a moda, o conforto, o lazer, a sedução da imagem e o primado do consumo.

18A abordagem de Francisco Conceição Silva decorre inicialmente da tradição moderna. Em 1971 revê a “grande emoção” que foi visitar as obras modernas no Porto (Silva, 1971: 43). Mas evolui no sentido de considerar o arquitecto como um “gestor”, em detrimento da figura do “artista”: o arquitecto era um “chefe de orquestra. [...] Aquele que dominava a totalidade da concepção do projecto arquitectónico ou da obra. [...] Num campo que eu hoje considero, necessariamente, como completamente ultrapassado. Um campo quase poético […] de eleitos” (Silva, 1971: 43). Nesse sentido, assume uma visão empresarial que lhe permite, a partir do Hotel Balaia (Albufeira, 1965‑1967) – onde foi responsável pelo conjunto da obra –, criar uma “empresa de construções”, com um “sector gráfico [...] que fez surgir mais tarde uma agência de publicidade […] e ainda um sector de engenharia [...] e sector de investimentos” (Silva, 1971: 45). A abordagem tecnocrática não é negada: “são garantidos prazos, são garantidos custos [...] o ser feio ou bonito... pode ser importante mas está assim numa terceira ou quarta importância” (Silva, 1971: 45).

19O Hotel do Mar (Sesimbra, 1956), capa na revista Arquitectura em 1963 (Silva, 1963: 22‑27), tinha revelado esse processo de mediação entre a arquitectura erudita – detalhes italianizantes e aspectos brutalistas – com assumidos pressupostos comerciais. A publicação de “Decoração de três lojas em Lisboa” (Leal, 1966: 83‑87), em 1966, na revista Arquitectura reflecte o investimento na “arquitectura de interiores” e sinaliza o encontro com o gosto do público no sentido da eficácia comercial da imagem arquitectónica. Em 1967, a publicação das “Lojas Rita” e “Maison Louvre” permite a Carlos Duarte reflectir sobre esse tema, em antecipação de questões que se colocaram centralmente mais tarde. O trabalho do arquitecto destina‑se “a um público real e não pode ser uma simples forma de afirmação de conceitos estéticos abstractos” (Duarte, 1967: 262). Carlos Duarte aborda o “gosto do momento” e as “leis do mercado” como elementos que se impõem na reflexão arquitectónica:

Um gosto feito, entre outras coisas, de entusiasmos e adesões pelo vestuário, pela música pop, pelos últimos modelos de automóveis, pelos posters e por mil e uma coisas (incluindo as correntes experimentais na literatura, no cinema e nas artes plásticas) tudo matérias fúteis (evidentemente) que não merecem o favor das pessoas sérias. (Duarte, 1967: 263)

20De facto, Carlos Duarte esboça já nesse artigo um programa de contestação ao minimalismo como estratégia moderna, que decorre de Venturi, mas será retomado repetidamente uma década mais tarde, como consagração da “condição pós‑moderna” na arquitectura:

  • 3  Segundo Carlos Duarte, Conceição Silva nestas obras “abandona um design de rigor moderno [...] par (...)

Com ou sem o seu favor, o design liberta‑se aos poucos das técnicas de rarefacção, das tutelas dos Mies, de Eames e dos escandinavos e surge‑nos agora como um espectáculo, uma festa alegre, colorida, cheia de calor e imaginação, fantasia e juventude. (“less is more”? – “less is less”!). Com grande escândalo dos últimos puritanos, multiplica‑se em descobertas e redescobertas (do fin de siècle) e não despreza também as ninharias que constituem já hoje uma tradição do folclore urbano. (idem)3

21O Atelier Conceição Silva utiliza as várias ramificações estilísticas dos anos 1960, no quadro de uma economia de mercado que esboçava os primeiros passos. Colocando‑se para lá da resistência do atelier de “vão de escada”, vive numa espécie de permanente “primavera marcelista”, perante os atavismos da sociedade portuguesa. De algum modo, nessa mediação – e precário equilíbrio –, entre a “alta cultura” e as preocupações comerciais surge como precursor daquilo que se chamará a “democratização do gosto”, a disponibilização do erudito ao usufruto colectivo. Paulo Martins Barata encontra, sob o espectro da resposta eficaz e empresarialmente correcta, elementos “neo liberty de BBPR [...] da metafórica Torre Velasca” (Barata, 2000: 55) no Hotel do Mar, atravessando a adopção de James Stirling, e descrevendo o Plano de Ocupação da Avenida de Roma “em correspondência histórica com as utopias de mobilidade urbana” de Yona Friedman (L’Architecture Mobile, 1968) e Ron Herron (Walking City, 1964)” (Barata, 2000: 63).

22A faceta multidisciplinar do Atelier Conceição Silva é singular também nos seus resíduos bauhausianos de “controlo total do ambiente”. A perspectiva de uma integração da prática artística numa produção industrial revela essa feição. De facto, a colaboração com artistas – Rolando Sá Nogueira (1921‑2002), entre outros – revela a filiação na prática moderna de “integração das artes”, conceito somente superado, com um resultado muito particular, na Loja Valentim de Carvalho (Tomás Taveira, 1966‑1969). No pós‑25 de Abril, o atelier de “vão de escada” ganhará outra dimensão, tentando integrar também o senso comum e o gosto do “cliente” e encontrar, no mercado das imagens, a sua viabilidade.

23No encerrado espaço português dos anos 1960, estas três experiências demonstram uma sagacidade própria da arquitectura portuguesa. Exemplificam algumas das principais coordenadas da turbulenta cultura arquitectónica dos anos sessenta, no contexto internacional: a procura de uma abordagem científica que permita identificar e enfrentar a complexidade da cidade moderna (Portas); a inclusão da história da arquitectura, abrindo o campo das formas e dos modelos construtivos como saída do impasse da arquitectura moderna (Hestnes); a permeabilidade aos mecanismos do mercado – oferta/procura, publicidade/consumo – no entendimento da arquitectura como produto (Conceição Silva). No entanto, no espaço curto da arquitectura portuguesa estes três pólos não se tocam e até se repelem. Nesse sentido, criam campos magnéticos com graus distintos de assimilação e consequência. Mas, também por isso, mostram como a arquitectura portuguesa responde à crise do moderno, num movimento de reinvenção e emancipação.

24Descentrando‑se e desencontrando‑se, a arquitectura portuguesa contemporânea ganha substância teórica e capacidade experimental e deixa de funcionar em perca face ao “centro”; liberta‑se da fixação no modelo centro‑europeu racionalista e passa a incluir outras nuances geoculturais.

25Desde então, a aproximação científica que Portas reivindica desde os anos sessenta tem sido testada particularmente na área do urbanismo; o principal legado desta abordagem é a importância dada ao desenho e tratamento do “espaço público”, que se viu reflectida na Expo’98 e se tentou replicar no programa Polis. De Hestnes podemos dizer que configura a noção do arquitecto como portador de uma grafia pessoal que interpreta e reconstrói o mundo, através do desenho, da geometria e da construção. Isto é, um arquitecto intemporal, solitário mas interveniente, motivado por questões sociais. Hestnes representa uma certa moralidade da figura do arquitecto. Conceição Silva move‑se nos antípodas de uma poética pessoal, em nome da eficácia do conjunto de acções que se gera no interior ou externamente à arquitectura. A permeabilidade ao mercado significa uma vocação populista que é, no entanto, mediada com a qualidade da resposta projectual. De facto, esta intermediação cultural tende hoje a escapar à prática empresarial da arquitectura. Nesse sentido, a resposta “científica”, a exigência “poética” e o diálogo “comércio/arte” que as três experiências denotam, respectivamente, constituem, ainda hoje, uma aspiração particular para a jovem arquitectura portuguesa.

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Notas

1  A obra de Fernando Távora e Álvaro Siza é publicada em 1964 na World Architecture One (org. John Donat. London: Studio Vista); trata‑se da primeira publicação internacional das suas obras.

2  É essa alteração que Portas refere no posfácio que escreveu para A cidade como arquitectura [1969]: a “sintaxe”, “em vez das semânticas que dominavam o meu livro anterior” (Portas, 2007: 207).

3  Segundo Carlos Duarte, Conceição Silva nestas obras “abandona um design de rigor moderno [...] para aceitar as sugestões de Kings Road e de Saint Germain” (Duarte, 1967: 263).

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Índice das ilustrações

Título Nuno Portas (1969), A cidade como arquitectura.
Créditos Lisboa, Livros Horizonte
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/docannexe/image/4166/img-1.png
Ficheiro image/png, 175k
Título Raúl Hestnes Ferreira, “Casa em Queijas”,
Créditos Arquitectura, 129, Abril 1974, capa
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/docannexe/image/4166/img-2.png
Ficheiro image/png, 186k
Título Atelier Conceição Silva, “Loja Valentim de Carvalho”,
Créditos Arquitectura, 108, Março/Abril 1969, 70
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/docannexe/image/4166/img-3.png
Ficheiro image/png, 226k
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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Jorge Figueira, «Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceição Silva: Sobressaltos em Lisboa, anos 1960»Revista Crítica de Ciências Sociais, 91 | 2010, 77-89.

Referência eletrónica

Jorge Figueira, «Nuno Portas, Hestnes Ferreira, Conceição Silva: Sobressaltos em Lisboa, anos 1960»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 91 | 2010, publicado a 16 outubro 2012, consultado a 19 março 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/4166; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.4166

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Autor

Jorge Figueira

Licenciado em arquitectura pela Universidade do Porto (1992) e doutorado em arquitectura, especialidade Teoria e História, pela Universidade de Coimbra (2009), onde lecciona. É investigador do Centro de Estudos Sociais. É professor convidado no Programa de Doutoramento em Arquitectura no Porto. Foi comissário de exposições como “Álvaro Siza, Modern Redux”, São Paulo, Brasil (2008). Publicou vários livros entre os quais O arquitecto azul (Imprensa da Universidade, 2010) e tem artigos publicados em revistas da especialidade em Portugal e no estrangeiro.
jfigueira.arq@gmail.com

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Direitos de autor

CC-BY-4.0

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