- * Este artigo beneficiou‑se de auxílio concedido pela FAPESP. Gostaria de agradecer aos professores M (...)
1O propósito deste artigo é apresentar um movimento de bairro, nascido no início da década passada, como um caso exemplar de associativismo civil em uma conjuntura de valorização da democracia participativa e de ativismo cidadão. Num momento em que o debate especializado tem variado em torno do tema das ‘cidades globais’ ou ‘cidades mundiais’ (Sassen, 2000; Whitaker Ferreira, 2003; Massey, 2007; Fix, 2007) e se revaloriza a vertente do republicanismo no campo dos estudos de teoria política, a iniciativa espontânea de um grupo de moradores pela preservação das características comunitárias de um bairro contra a tendência de especulação imobiliária constitui uma oportunidade interessante para acompanhar o destino prático de uma forma coletiva de organização de demandas que tem algum potencial de generalização para a cidade (e mesmo para outras cidades), na medida em que os assuntos de que se ocupa são também experimentados por outras populações metropolitanas.
2O movimento em causa é o Mover (Movimento Antiverticalização) e a sua atuação concentra‑se na zona oeste da cidade de São Paulo. A metodologia utilizada para o desenvolvimento do argumento deste artigo é a narrativa histórica do surgimento e estado atual do movimento, intercalada pelo relato etnográfico de alguns momentos‑chave de sua atuação. É de interesse igualmente marcar a diferença entre a auto‑representação que os próprios participantes fazem de sua ação civil (como não ‘política’) e os desdobramentos práticos dessa mesma atuação, que são, de um ponto de vista mais objetivo, inteira e legitimamente políticos. Nesse sentido, o relato do movimento não deixa de lançar uma luz sobre um fenômeno mais geral de relativa apatia democrática na sua forma institucional consagrada, aliada a uma movimentação rica e variada no seu ‘fundo’, isto é, na base da vida civil, fonte da qual deveria partir o ímpeto para vivificar a identidade dos cidadãos como co‑fundantes da comunidade política de pertencimento.
3Um amplo leque de autores (Whitaker Ferreira, 2003; Cymbalista, 2005; Teixeira e Tatagiba, 2005; Grunstein et al., 2007; Goldsmith e Vainer, 2007) faz referência a instrumentos democráticos e participativos como fontes para políticas urbanas duradouras e bem‑sucedidas. Alguns enfatizam o Orçamento Participativo (OP), tendo o caso de Porto Alegre como paradigma (Goldsmith e Vainer, 2007; Grunstein et al., 2007), enquanto outros mencionam o CMH (Conselho Municipal de Habitação de São Paulo) (Santoro et al., 2007). Goldsmith e Vainer (2007) recorrem de maneira explícita aos componentes políticos do OP quando analisam as gestões empreendidas pelo Governo Municipal junto aos agentes privados: quanto mais o primeiro encontra‑se legitimado pelo processo de democracia participativa, mais ganha força para negociar com os últimos.
- 1 De acordo com Goldsmith e Vainer (2007: 348), por exemplo, uma companhia construtora que obteve a (...)
4A ‘pressão de baixo’ oriunda do OP tem resultado em conseqüências práticas e materiais no interior da vida ordinária da cidade: exemplos de redirecionamento de propriedades, da sua utilização privada para propósitos públicos, podem ser encontrados na literatura, assim como a obrigação de compensação1 por parte do agente que tenha se beneficiado da aquisição de largas parcelas do território urbano. Este artigo percorre um caminho bastante próximo ao dos trabalhos citados até aqui, porém com uma diferença: baseado em desenvolvimentos mais recentes, ele descreve uma situação na qual o entusiasmo inicial com a ‘onda’ participativa promovida − e até certo ponto sustentada − pelo poder público parece ter se exaurido em favor de um tipo de participação mais crítica e independente, cujas características sociais estão por explicitar melhor.
5Embora demais exemplos de mobilização por parte de movimentos de vizinhança em áreas metropolitanas no Brasil não tenham deixado de ser detectados na literatura especializada sobre estudos urbanos, aqui o foco será em um único caso, uma vez que uma análise comparativa estende‑se para muito além das intenções deste trabalho.
6A primeira vaga de estudos sobre movimentos sociais no Brasil esteve associada à redemocratização e à saída do regime autoritário (Paoli, 1992; Silva, 1994; Villas‑Boas e Telles, 1995; Paoli e Telles, 1998; Dagnino, 2002). A relação entre demandas populares, Estado e uma promissora esfera pública (Paoli, 1992; Telles, 1994) dominava a problemática em que os pesquisadores modulavam as suas investigações. Em seguida, a incorporação do aporte habermasiano (Habermas, 1989) conferiu à análise um arcabouço sistemático, na medida em que permitia uma explicação que unia os vértices fenomênicos – a crise do Estado Social e do ethos do trabalho, os danos ambientais devidos ao produtivismo e, finalmente, a legitimidade do protesto social pelo reconhecimento dos direitos de cidadania – em uma densa argumentação em favor da ação comunicativa, desembocando, por fim, na política deliberativa baseada em cidadãos esclarecidos e politicamente ativos. Muito do tom do discurso sobre reivindicações civis nos últimos anos tomou essa fonte como baliza para analisar os movimentos sociais, apostando em tais manifestações como parte de um longo trajeto de consolidação democrática tendo como base uma sociedade civil forte e organizada.
7No Brasil, o dado mais interessante é que a força política que sustentou durante muito tempo esse discurso detém hoje a administração do Estado. Por outro lado, a complexidade dos problemas a gerir por parte do poder público só vem aumentando: à diferença dos períodos anteriores do capitalismo (tais como a passagem do século XIX para o século XX e os ‘Trinta Gloriosos’ associados ao fordismo no pós‑Segunda Guerra), a globalização impõe a sobreposição de esferas de regulação nacionais e internacionais, o que traz reflexos, entre outros, para a política urbana do uso do solo e o planejamento. Por conta dos fluxos de serviços, mercadorias, informações, dinheiro e seres humanos (Sassen, 2000), metrópoles ambientalmente saudáveis e sustentáveis tornam‑se uma meta cujo alcance passa a ser, no mínimo, problemático para os gestores urbanos. Nesse cenário, que pode ser situado grosso modo no início do século XXI, o papel dos movimentos sociais parece débil diante de uma escala e dimensão de questões que extravasam em muito a sua capacidade de tematização e formulação de propostas, quanto mais de ação. Uma iniciativa propositiva pressupõe conhecimento dos termos do conflito a fim de sopesar uma decisão, enquanto a informação é justamente um bem escasso ou altamente concentrado em escalões do poder econômico que se apropriam da cidade, como acontece no ramo de construção imobiliária.
8Não é o caso de nos determos aqui, contudo, sobre as políticas de uso e ocupação do solo (para uma análise abrangente desses aspectos, veja‑se Ribeiro, 1995; Rolnik, 1997; Alvarez e Siembieda, 2007). Interessa antes o processo de formação da vontade numa típica chave ‘clássica’ dos estudos sobre movimentos sociais, porém confrontada a uma nova realidade social, econômica e política, em relação ao contexto das décadas anteriores. As características desse novo ambiente são, para o tema em pauta, as seguintes: 1) um esvaziamento da esfera pública pelo enquadramento tecnicista das questões que pautam o debate sobre a cidade (e não pela negação pura e simples do debate, como ocorria no passado); 2) uma concepção tecnocrática da política, mesmo que revestida de uma justificativa progressista; 3) uma aceleração da valorização dos espaços potencialmente incorporáveis pela indústria imobiliária, levando também a uma aceleração da rotação das decisões que tornam o ‘tempo’ da política (discussão, debate, apresentação de visões divergentes sobre o mesmo problema) um entrave para a dinâmica econômica que domina a ocupação dos terrenos vendáveis.
9A ação do movimento de bairro Mover na zona oeste da cidade de São Paulo é um bom contraponto para testar as hipóteses acerca de um certo padrão de relacionamento instrumental entre poder público, movimento social e interesses econômicos.
- 2 O atual distrito da Lapa possui, segundo os dados do Censo de 2010, uma população de 58 924 habita (...)
10O Mover nasceu na Vila Romana, zona oeste do Município de São Paulo. A localização do bairro tem características específicas, o que torna, simultaneamente, a luta pela preservação do seu perfil comunitário num curioso capítulo da preservação de uma parte da história da industrialização do País. A sub‑região da Lapa,2 onde se situa a Vila Romana e muitos outros bairros adjacentes com características semelhantes (Siciliano, Água Branca, Vila Leopoldina, Hamburguesa, Anastácio, Lapa de Baixo, etc.), foi um importante bairro industrial até à sua conversão recente (anos oitenta) em um bairro de serviços. Muitos dos antigos habitantes eram trabalhadores das fábricas da região. Em pelo menos um dos casos, o da vidraria Santa Marina (grupo Saint‑Gobain), havia uma vila operária dentro da própria fábrica.
- 3 Muito do material histórico sobre o bairro em sua feição moderna encontra‑se disperso nos relatos (...)
11É sobre a história e as características gerais do bairro que nos debruçamos a seguir. Tal relato está baseado tanto em fontes históricas disponíveis3 quanto em entrevistas com antigos moradores, o que fornecerá, como se poderá ver, um novo ‘mapeamento’ da região, dificilmente perceptível por meio unicamente dos dados geográficos e estatísticos.
12A Lapa concentrou uma população operária importante na Primeira República. Boa parte dessa população era composta de imigrantes. Além das fábricas que ali se estabeleceram e das estradas de ferro que as serviam, devem mencionar‑se também os deslocamentos das oficinas da São Paulo Railway do bairro da Luz para a Lapa de Baixo, em 1898, devido à proximidade com o Rio Tietê, que desse modo poderia prover com maior prontidão a água necessária para alimentar as caldeiras das oficinas. Tudo isso contribuiu para promover o desenvolvimento local, atraindo o pequeno comércio (armazéns de secos e molhados, açougues, boticas, armarinhos, sapateiros, alfaiates, confeitarias etc.) e possibilitando a ocupação urbana. Esta vai caracterizar o desenho arquitetônico do bairro a partir de então, constituído de pequenos loteamentos e sobrados geminados, além de propriedades mais importantes socialmente, o que em geral variava segundo a posição na hierarquia funcional dos empregados e trabalhadores nas fábricas. Sabe‑se que os engenheiros e técnicos vindos da Inglaterra para trabalhar na São Paulo Railway, por exemplo, ocuparam os terrenos mais altos em casas maiores ou palacetes, todos dotados de jardim e amplo quintal.
13Além desse aspecto, digamos, físico, é digno de nota o desenvolvimento de uma vida associativa igualmente pujante, em função das mesmas causas. Associações de ajuda mútua, cooperativas, clubes de futebol de várzea, sociedades beneficentes, dentre outras, foram criadas como reação ao tipo de industrialização posta em marcha, com seus efeitos humanos decorrentes e amplamente conhecidos já por experiências em outras partes do mundo. Podem‑se citar aqui a Caixa Beneficente São José Popular da Lapa, a Sociedade Operária de Socorros Pecuniários, a Sociedade Beneficente Operários da Lapa, a Sociedade de Mútuo Socorro, a União Fraterna da Água Branca, a Caixa de Socorro Mútuo da Cooperativa Internacional Beneficente da Lapa (na rua 12 de Outubro) – tornada Cooperativa de Consumo da Lapa a partir de 1932 – e a Cooperativa de Operários da Ferrovia São Paulo Railway (também na rua 12 de Outubro). Contam‑se ainda entre as instituições de caráter cultural a Banda da Vidraria Santa Marina e a Banda XV de Novembro. Dentre as atividades sociais espontâneas, devem mencionar‑se os piqueniques, que reuniam por vezes muitas famílias em um mesmo ‘evento’.
14Há indicações nas fontes históricas de que certas levas de imigrantes foram destinadas a determinadas empresas da região em particular: assim, o Frigorífico Armour (localizado na Vila Anastácio) absorveu imigrantes do Leste Europeu (lituanos, russos, poloneses e húngaros), enquanto a Vidraria Santa Marina, por exemplo, empregava franceses e italianos. A São Paulo Railway, por outro lado, atraiu técnicos e operários especializados ingleses, conforme já se fez menção acima. A dinâmica da industrialização e da economia, de modo geral, possibilitou a incorporação de alguns deles em estratos comerciais, fora portanto do mundo laboral stricto sensu, o que configura um processo de mobilidade ocupacional ascendente que, no entanto, manteve‑se geograficamente nos limites da região. Isso torna possível falar de gerações de lapeanos fortemente ligados à história do bairro desde o final do século XIX.
15O movimento social de moradores no bairro também tem história. Em 1903, a população faz um abaixo‑assinado exigindo dos poderes públicos transporte para o bairro. Isso talvez esteja relacionado com uma espécie de cosmopolitismo forçado pela industrialização, pois aqui cruzaram‑se trabalhadores de várias nacionalidades, chegados com o processo imigratório. Muitos desses operários já vinham imbuídos de certas ideologias solidaristas e coletivistas, como o anarquismo, o trabalhismo e o socialismo. O fato é que, graças à mobilização local, os primeiros bondes da Lapa já foram bondes elétricos (1903), enquanto na cidade ainda predominavam aqueles puxados à tração animal. O último bonde na região circulou em 1966.
16Ao conjunto de dados já consolidado deve ser agregada a informação oriunda dos próprios habitantes, que, por meio de depoimento oral, identificam mais elementos do rico mosaico industrial do bairro. Assim como a arqueologia é capaz de recuperar fragmentos materiais de uma época passada, cujos traços de uma mesma camada, ao se juntarem, vão permitindo a construção da inteligibilidade das técnicas utilizadas, das escolhas de material e até dos modos e costumes, o relato de história de vida é uma escavação da memória que vai retirando da experiência íntima as camadas significativas com seus objetos simbólicos misturados a acontecimentos sociais, isto é, que dizem respeito a outras experiências de convívio, quer próximo, quer mais distante (um acontecimento marcante em nível nacional, por exemplo, que mexe com a vida da maior parte do povo). Foi pensando nessa possibilidade que se lançou mão de entrevistas com antigos moradores da região, orientadas contudo para o tema das fábricas e da atmosfera industrial que era característica do bairro. Graças a esse recurso, novos dados afloram.
17A entrevista com um morador local, habitante da mesma casa desde 1950, fez saber que o terreno da ex‑Fábrica de Laticínios Parmalat (antes fábrica de cerâmica e posteriormente fábrica de massas e depois de biscoitos) ocupava na verdade um quarteirão inteiro – e não apenas metade de um quarteirão como até recentemente –, sendo o local que é hoje um modesto prédio de apartamentos com quatro pavimentos o espaço onde ficavam os fornos que faziam o cozimento dos moldes de cerâmica. Ficou‑se sabendo também que a Praça onde hoje está implantado um colégio público era chamada de Praça Romana e dispunha de um campo de futebol (um campo de várzea) com as traves do gol ocupando cada uma um lado do quarteirão. Outro componente do mosaico é a fábrica de lápis que ocupava um quarteirão (ou parte dele) onde hoje um prédio de enorme altura não deixa a menor pista do que havia ali. Não fosse a escavação da memória, essa fábrica jamais teria existido (seria preciso vasculhar os cartórios, uma vez que não consta das fontes históricas consagradas).
18Ficamos sabendo da existência da figura do ‘chamador’, um empregado da Vidraria Santa Marina cuja função era bater de porta em porta, despertando os operários da fábrica para a jornada matinal (o processo de fabricação do vidro, sendo contínuo, exige funcionamento ininterrupto de turnos, bem como a prontidão estrita dos operadores manuais, dado que o ‘ponto’ incandescente da massa de matéria‑prima não pode esfriar, sob pena de perder a produção; isso explica, entre outras coisas, a fixação de parte da força de trabalho morando dentro do terreno da própria fábrica, em uma vila interna). Ficamos sabendo ainda das pequenas oficinas (cerâmica, serralherias, etc.) e da sua localização exata.
19Um outro ponto de relevância que a pesquisa sobre associativismo civil de bairro tem a possibilidade de desenvolver, especialmente no caso do Mover, é o peso que uma prática comunitária trazida do passado pode jogar no presente. Coloca‑se a hipótese de que os italianos que se implantaram na Vila Romana (a maioria da região do Veneto e da Toscana, segundo os informantes) cultivaram uma vida social rica de ajuda mútua que se estendeu ao presente.
20Essa hipótese percorre também outras experiências bem‑sucedidas de participação cidadã em outros pólos metropolitanos, como é o caso de Porto Alegre e da participação popular no Orçamento Participativo local: há indícios históricos de que a experiência do movimento operário – especialmente a sua vertente trabalhista – na cidade solidificou uma prática de intervenção na câmara municipal da capital gaúcha (Fortes, 2009), de tal modo que uma linha invisível de continuidade histórica pode ter sido retomada décadas depois. Isso ajuda a entender o relativo sucesso da empreitada lançada pela Prefeitura de Porto Alegre, que em seguida se espalhou por outras cidades brasileiras sob administração do Partido dos Trabalhadores (PT) como uma inovação institucional de democracia participativa (Santos, 2002).
21Assim, a raiz da rede de contatos e de troca de pontos‑de‑vista entre vizinhos, que é prontamente mobilizada em situações como as da recusa do processo de verticalização e da tentativa de manutenção de certo padrão de convivência local, só pode ser completamente compreendida tendo‑se em conta esse componente, sublimado com o tempo, do comunitarismo trazido pela experiência da imigração. Trata‑se de uma camada – como as camadas de memória dos informantes mais idosos – de experiência social que, conquanto mais e mais dissolvida na medida em que as novas gerações se integram à vida metropolitana mais ampla, permanece no patrimônio dos mitos da ‘comunidade italiana’. Se isso é verdade, trata‑se, no caso da Vila Romana, de uma comunidade de bairro que pode ser pensada como uma comunidade igual a uma cidade pequena: uma comunidade dentro da cidade.
22Romântica, idílica ou imprecisa que seja, a invocação de uma identidade dos italianos do bairro ajuda, contudo, a infundir um sentimento de coesão e compartilhamento que funciona como pólo de aglutinação dos descontentes com os rumos que a transformação urbana vai tomando. Nesse sentido, mesmo quem não tem nenhum vínculo de parentesco com os imigrantes locais vai de bom grado adotando as virtudes associadas ao tipo de ‘comunidade imaginada’ (Anderson, 2008) que eles sustentam e reproduzem, seja pelos casos exemplares propositadamente hipertrofiados, seja pelo auto‑investimento em uma narrativa heróica e edificante que acaba por contaminar os ‘de fora’.
- 4 As principais ruas são as seguintes: Camilo, Vespasiano, Caio Graco, Aurélia, Marcelina, Sepetiba, (...)
23Inicialmente formado em 2001 por moradores de ruas adjacentes da Vila Romana,4 o movimento foi aos poucos ganhando expressão pública por conta do aparecimento na mídia local e mesmo na de âmbito municipal. Com o tempo, muitos dos primeiros simpatizantes foram se afastando, mas novos integrantes surgiram. A oscilação em termos de participação convive, no entanto, com um pequeno núcleo (em torno de sete pessoas) que persevera, alternando‑se em reuniões públicas e na preparação interna às mesmas, sendo esse o número consolidado dos ‘permanentes’, isto é, daqueles que se encarregam das tarefas organizativas do movimento.
24Uma das características mais distintivas da associação é a sua composição inteiramente de ‘não‑profissionais do movimento’, isto é, pessoas que mantêm as suas ocupações como atividade principal, dedicando por isso aos afazeres da organização um tempo muito apertado das suas vidas. Por vezes as reuniões coincidem com o horário de trabalho; outras vezes, elas demandam tarefas práticas que não encontram disponibilidade real para serem levadas a termo. Em não poucas vezes, audiências e encontros com autoridades municipais têm lugar no horário de jornada de trabalho dos seus membros, o que dificulta a apresentação compacta do mesmo grupo de pessoas a cada vez; um revezamento é, na maior parte das ocasiões, a solução encontrada.
25O movimento optou deliberadamente por não se institucionalizar, o que significa concretamente constituir‑se em pessoa jurídica. Não há um estatuto, nem uma diretoria, nem eleições. Tudo é decidido por consenso. Não se trata, portanto, de uma ONG, nem se poderia falar a rigor em uma judicialização das suas demandas. Oportunisticamente, quando há a necessidade de uma conversão legal dessas demandas, ou então de uma representação oficial, o movimento se ampara em outras organizações aliadas que possuem caráter jurídico estabelecido, tais como a ONG Defenda São Paulo ou uma associação de moradores de um bairro vizinho (Siciliano). Isso nunca suscitou qualquer suspeita quanto à autonomia de ação do grupo. Vale nessa relação de camaradagem associativa o mesmo princípio comunitário que impera na relação entre os vizinhos: troca de ingredientes culinários, empréstimo eventual de utensílios domésticos, ajuda material ou mesmo financeira. A noção de ‘militante’ está completamente ausente em sua acepção estilizada e semiprofissional; ao invés disso, uma dedicação informada de pessoas comuns que procuram fazer o dever de casa do civismo local e que nem por isso deixam de manter as suas vidas privadas, os seus empregos e suas relações políticas (quando é o caso).
26A exigência de institucionalização a fim de ganhar uma maior ‘eficácia’, conforme se aludiu, foi um desafio com o qual o movimento já se defrontou e que, como se viu acima, foi recusado. Desse modo, o Mover, como exemplo de uma tendência mais geral de associativismo de bairro que alarga o espaço de participação cidadã nos assuntos da cidade, traz um elemento próprio a fim de ser incorporado como parte da dinâmica desse tipo de movimento social.
27Um dos principais aliados do Mover é a imprensa local, principalmente um dos jornais de circulação no bairro, o Jornal da Gente. Desde o início do movimento, o jornal tem feito não apenas a cobertura das reuniões, mas também emprestado o seu apoio, direto ou indireto, ao movimento. Uma rede de associações de moradores, especialmente de classe média, aglutinados em torno do Defenda São Paulo, também fornece uma base para alianças em eventos e iniciativas em que o Mover está presente.
28Os moradores aludem como razão principal para o descontentamento com a verticalização do bairro a sensação de invasão e de desrespeito com a história da população local (Jornal da Gente, 4 a 10/09/04). O que poderia ser enquadrado à primeira vista como um movimento preservacionista de claro perfil de classe média merece um tratamento mais cuidadoso, porque ele acaba expondo algumas nuanças da política urbana do município.
29Em primeiro lugar, o fato mais saliente e amplamente conhecido é a especulação imobiliária. A Vila Romana é, dentro das estratégias de valorização das empreiteiras e construtoras, a ‘bola da vez’ da cidade, o que significa dizer que os lançamentos de alto padrão, com características que vão além de uma mera destinação para habitação, adquirindo pois um caráter de ativo de valor, têm na região o campo privilegiado de manobras. Isto inclui a aquisição das casas (em geral bem simples) contíguas, assim como de galpões industriais – a maior parte desativados – e logo em seguida a sua demolição com vistas ao início das obras. A aquisição dos terrenos é feita acompanhando toda a legislação pertinente, que muda de acordo com os Planos Diretores da Cidade, pois esses estipulam as regras de uso e ocupação do solo. A princípio, nada é feito fora da lei (Cardoso, 2004; Santoro et al., 2007).
30Em segundo lugar, o movimento terminou por explicitar as visões estratégicas das forças políticas da cidade precisamente sobre o tema do uso e ocupação do solo. O que poderíamos designar como ‘direita’ comunga uma concepção muito clara de defesa do direito de propriedade (o morador deve ter o direito de dispor da sua propriedade quando, como e da maneira que lhe aprouver), aliada a uma visão do social que subordina inteiramente esse último a: i) escolhas privadas dos agentes enquanto proprietários, devendo o Estado interferir o mínimo possível quanto a essas escolhas; e ii) um ideal de progresso que tudo justifica (o axioma é: os benefícios com a verticalização terminam por compensar os inconvenientes). A ‘esquerda’, por seu lado, parece adotar uma postura do tipo Robin Hood: tirar dos ricos e remediados para dar aos pobres.
- 5 O mecanismo da ‘outorga onerosa’ estabelecia um acréscimo do valor do m2 para toda a área construí (...)
31Desde a última administração do PT na cidade de São Paulo, a prioridade em termos de benfeitorias e política urbana foi direcionada para os bairros mais desfavorecidos e empobrecidos (a ‘periferia’), o que teve por efeito a política de financiamento das construções de casas populares pela via do ‘imposto’ pensado para gravar os empreendimentos da elite. Isso foi viabilizado pelo Plano Diretor proposto pelos técnicos da Administração Municipal do PT: ao flexibilizar as regras de obtenção de licenças de novos empreendimentos imobiliários, a idéia era manejar o interesse especulativo para formar uma espécie de fundo5 que sustentasse os investimentos na área pobre da cidade. Na prática, tal estratégia deixou completamente desguarnecida a região da Vila Romana da invasão do capital imobiliário, atento para a localização privilegiada do bairro em termos dos acessos, proximidade com o centro da cidade e, last but not least, a ‘tranqüilidade’, ‘sossego’ e aspecto ‘bucólico’ de uma parte da cidade de São Paulo que parecia relativamente intocada pelas intervenções urbanas de impacto ao longo dos últimos anos – todos elementos de farta propaganda veiculada pelas gigantes do setor imobiliário.
32Contra um tal cálculo estreito em termos de transferência de prioridades é que se insurge o Mover. Afinal, a mesma lógica que promove a gentrificação dos antigos bairros industriais, convertendo‑os em zonas altamente valorizadas na cidade, é a que expulsa os moradores para a periferia, inflando os bolsões das áreas onde as condições de vida são mais deterioradas. Ao invés de promover um equilíbrio em termos que compatibilizem o adensamento social com a localização geográfica, com os bairros centrais funcionando como amortecedores da pobreza extrema, o que ocorre é uma polarização mais acentuada entre as zonas socialmente mais abastadas, de um lado, e zonas empobrecidas (e violentas), de outro. O reconhecimento, por parte do poder público, de que o único instrumento disponível para fazer política social é tentar canalizar a acumulação do lucro privado de forma a extrair um excedente dessa mesma fonte termina por impor uma condição de subalternidade daquela em relação a esse último. Uma vez que o vetor orientador da política pública passa a ser o interesse privado, o Estado fica sem instrumentos para agir num caso em que os interesses da população se chocam contra a ‘galinha dos ovos de ouro’, a não ser colocando esses mesmos interesses contra os do resto dos moradores da cidade, taxando os primeiros de ‘privilegiados’. Tal foi o que ocorreu na Vila Romana. Na medida em que a população reivindicava melhor qualidade de vida, traduzida em palavras de ordem tais como menor verticalização, incremento da massa arbórea, oposição à instalação de megaempreendimentos de serviços que alteram a circulação viária (shopping‑centers, universidades), preservação do patrimônio histórico, mais espaços de lazer, menos poluição sonora, etc., mais ficava evidente o divórcio entre a subprefeitura do PT e as vozes de protesto quanto a esses itens, considerados por aquela como de ‘classe média’.
33Não à toa, o Mover deslocou o seu arco de alianças em direção aos demais movimentos de moradores da cidade (tais como o Defenda São Paulo) cujas plataformas encontravam claros pontos de contato com ele. Os alvos foram o movimento de moradores da Vila Clementino, o movimento de moradores do Jardim da Saúde e o do Jardim das Bandeiras – permanecendo apenas naqueles cuja troca de experiências foi mais intensa.
34Embora, como foi mencionado anteriormente, a ação das incorporadoras tenha decorrido ‘dentro da lei’ – isto é, acompanhando quase profissionalmente (lobbies) os lances de mudança e manutenção da legislação referente ao uso e ocupação do solo, transcorrido entre a Câmara de Vereadores, a Secretaria de Planejamento e o Poder Municipal –, não estão ausentes lances de assédio explícito contra moradores que resistem a desfazer‑se dos seus imóveis em regiões visadas para novos lançamentos. Assim, em fóruns diversos de encontros de moradores foram ouvidos relatos de pressão por meio de telefonemas, cartas e visitas de representantes dessas incorporadoras, por vezes com alusões de que a vida poderia se tornar insuportável para o morador que permanecesse, uma vez que uma casa entre prédios não apenas se desvaloriza economicamente, como fica à mercê do comportamento dos moradores de prédios, o que, dependendo dos casos, significa acúmulo de sujeira, estacionamento saturado no entorno das ruas, poluição visual e sonora – enfim, perda de qualidade de vida. O direito (de propriedade) que é invocado pelas empresas imobiliárias convive com o desrespeito do direito de escolha dos moradores.
- 6 Segundo o Jornal da Gente, “Mover obtém 400 assinaturas em um dia” (23‑29/10/04).
- 7 O abaixo‑assinado foi encaminhado ao Ministério Público como parte de um processo que pede o tomba (...)
35O principal instrumento adotado pelo movimento para difundir a luta antiverticalização foi a circulação de um abaixo‑assinado entre os moradores do bairro, alcançando uma excelente receptividade (cerca de 800 assinaturas), o que deu alento ao grupo e possibilitou uma certificação de que se tratava de fato de um sentimento compartilhado pelos vizinhos. O abaixo‑assinado circulou a partir de novembro de 2004, de casa em casa, mas também em feiras, feiras de artes e praças onde havia eventos culturais e religiosos. Inicialmente, teve quatro postos fixos de coleta de assinaturas: duas bancas de jornais, uma borracharia e uma farmácia,6 tendo permanecido algum tempo em uma pizzaria. Os locais são elucidativos da receptividade do pequeno comércio local, o que demonstra que, de alguma maneira, a questão sensibiliza também essa parcela da população e não apenas ‘indivíduos indignados’.7 Registre‑se, além disso, que uma escola privada de nível fundamental emprestou livremente as suas instalações no período noturno – em que não há atividade –, para reuniões do Mover (antes as reuniões decorriam nas dependências da Delegacia Participativa do bairro). Um e‑mail do movimento foi colocado à disposição dos interessados, mas o retorno não foi tão conspícuo, o que sugere que as ações corpo‑a‑corpo, nesse caso específico de uma mensagem expressiva sobre o significado da preservação do bairro, têm efeitos mais diretos quando se trata da mobilização exemplar dos próprios vizinhos. O acesso ao e‑mail estava mais identificado a outras organizações ou associações do que a pessoas que fizessem uso dele.
36Outro evento comunitário organizado pelo grupo foi o ‘Pinta lá na praça’, que reuniu música, artes, atividades infantis e história (28/11/04). A idéia era aproveitar a presença dos moradores para não apenas divulgar o movimento, como também buscar resgatar a memória do bairro. Um vídeo foi confeccionado a partir do evento. Essa pequena descrição das ações empreendidas pelo movimento deixa claro que ele tem alguma legitimidade social e que sua palavra de ordem contra a verticalização encontra acolhida difusa entre os moradores.
37Mas a característica distintiva do movimento (aquilo que o torna conhecido) é, paradoxalmente, o seu inimigo principal escolhido como alvo, ou seja, as empresas imobiliárias que são responsáveis pelos lançamentos de prédios que descaracterizam o bairro (o mesmo processo está ocorrendo em outras regiões da cidade com características semelhantes, isto é, a de serem ex‑bairros industriais). David e Golias é bem a imagem de uma tal contenda. O sentimento compartilhado é de que não é possível – nem pelo próprio poder público, nem muito menos por um movimento social – acompanhar o dinamismo do capital que alimenta a especulação imobiliária (Fix, 2007). A única forma de tentar se antecipar minimamente aos lances ousados que marcam os investimentos desse setor seria uma regulação via Plano Diretor da Cidade e Planos Diretores Regionais (previstos no anterior). Mas mesmo aí, a força dos lobbies e dos interesses empresariais é aparentemente intransponível, dada a seqüência de concessões que têm sido observadas nos últimos anos (mesmo essa avaliação é dependente do ponto de vista de quem a emite, pois é possível racionalizar tais ‘concessões’, ao invés de um estorvo à qualidade de vida, como signo do ‘progresso’ e da ‘modernização’). A sensação entre os participantes do grupo é a de que as suas ações e iniciativas visam sempre a ‘correr atrás do prejuízo’, isto é, agir para tentar minorar ou mitigar um efeito negativo já em andamento ou em tramitação, jamais a decidir em um plano de igualdade de poder.
- 8 A expressão tenta captar o significado de social embededness, bastante corrente na ciência social (...)
- 9 Para mais informações, consultar o sítio www.amjs.org.br.
38O associativismo de bairro é uma realidade no Brasil desde pelo menos o período da redemocratização, e tem‑se mostrado ativo nos últimos anos, variando enormemente segundo a classe social, o tipo de moradia e os contornos urbanos da localidade que busca representar. As demandas que levanta estão estreitamente relacionadas com essas variáveis mencionadas. O Mover, por estar situado em um antigo bairro operário, hoje considerado uma região próspera, tem suas demandas circunscritas por tal pertencimento, ou aquilo que poderíamos designar como ‘enraizamento social’.8 No entanto, tal experiência particular não é de modo algum única e incomparável. Outros bairros com características semelhantes demonstram reações muito próximas de desconforto com a degradação da qualidade de vida provocada pelo desenvolvimento desordenado da urbanização na cidade: é o caso, por exemplo, da Associação de Moradores do Jardim da Saúde,9 um bairro da Zona Sul que foi bem‑sucedido na conversão do espaço em Zona Exclusivamente Residencial, ou seja, tombado como Patrimônio Cultural da Cidade, por conseguinte protegido do avanço da verticalização.
- 10 A Vila Romana está situada no âmbito da Subprefeitura da Lapa.
- 11 Partido da Social‑Democracia Brasileira, de orientação social‑liberal.
- 12 Partido Verde.
39Em âmbito municipal, os principais interlocutores do Mover em um primeiro momento foram a Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA) e a Secretaria de Habitação (SEHAB), além da subprefeitura da região (Lapa).10 Do lado do Legislativo, inicialmente apenas uns poucos vereadores da Câmara Municipal, distribuídos entre o PSDB11 e o PV,12 ‘adotaram’ de alguma forma a luta do movimento. Pode‑se afirmar, contudo, e pelas razões expostas acima, que o ceticismo logo tomou o lugar da confiança. As instâncias governamentais e os representantes do parlamento municipal aplicam um cálculo político‑instrumental: segundo o seu ponto de vista, o movimento seria pequeno, sua representatividade limitada e o não profissionalismo um indício de fôlego curto, daí a pouca atenção dedicada a ele. Apenas quando alguns aliados com repercussão pública – o Jornal da Gente, o Movimento Defenda São Paulo e um ou outro vereador – amplificaram as demandas do grupo, as atenções começaram a ser menos frias ou condescendentes.
- 13 Uma exceção seria o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), onde foi possível detectar, dian (...)
40De toda a maneira, o formato protocolar e burocrático com que foi tratado por órgãos do governo municipal, e mesmo pela subprefeitura (em duas administrações distintas), acusa, se não um baixo grau de compromisso do Estado com esses temas, pelo menos um apoio menos do que tímido a iniciativas cidadãs que, no fundo, tomam para si a responsabilidade que deveria ser do próprio Estado. Nesse último caso, carece a administração municipal e suas secretarias de uma permeabilidade à organização popular que, por sua vez, demonstra o exercício de uma cidadania ativa para temas que não têm, afinal, um alcance apenas particularista, ainda que visem a uma melhoria localizada (no bairro). Como enquadrar os temas que levantam questões como o surgimento de ilhas de calor com o levantamento de prédios excessivamente altos, problemas de permeabilidade do solo, de circulação viária a partir do adensamento não‑planejado, de aumento da poluição sonora, de impedimento da luminosidade natural e tantos outros (Alvarez e Siembieda, 2007; Lungo e Smolka, 2007), todos do repertório da crítica do movimento – como considerar, enfim, esse leque de problemas urbanos como meramente particularista? Desta forma, ocorre com o Mover aquilo que em outras áreas de políticas públicas tem também acontecido: um choque entre a propaganda de uma participação virtuosa do cidadão comum e a barreira de uma inércia burocrática e instrumental diante do encaminhamento das demandas da população. O grau de compromisso do poder público com as fontes diretas da soberania é baixo, além do uso do expediente muito comum da demissão de responsabilidade, jogando de um órgão para o outro o suposto poder de decisão: SEHAB para SEMPLA, para a subprefeitura, para a SEMPLA, que por sua vez culpa o governo estadual, que culpa o governo federal, que culpa a globalização...13
41Na prática, o que a política da ‘outorga onerosa’, aludida acima, sugere, na base de uma aliança tácita, desenhada aquando das discussões sobre o Plano Diretor da Cidade (2000‑2004), entre o governo local (de tintura ‘esquerdista’) e as grandes empresas construtoras e incorporadoras, é um modelo de coalizão redistributiva do crescimento, com suporte – explícito ou não – da Administração Municipal do Partido dos Trabalhadores. A coalizão consistiria na ‘troca’ da cessão de áreas mais valorizadas da cidade para empreendimentos imobiliários de alto padrão (pela via de uma regulamentação mais leniente no que tange à aprovação de projetos) pela construção de conjuntos de moradias para população de baixa renda em áreas mais desvalorizadas, mesmo que isso signifique abdicar de antigas e tradicionais bandeiras relativas à qualidade de vida e a preocupações ambientais. Tal tipo de coalizão redistributiva do crescimento entre governo e empresários da construção civil termina, assim, transferindo para um movimento como o Mover o protagonismo na defesa daquelas causas. Socialmente, o efeito líquido foi o de jogar uma parcela da baixa classe média paulistana, formada por um conjunto heterogêneo de profissionais, artistas e jornalistas, na atividade típica dos movimentos reivindicativos populares – ainda que os objetivos sejam distintos num caso e noutro, a prática organizativa é muito similar: coleta de abaixo‑assinados, estabelecimento de alianças com outros movimentos, participação em diversos eventos, fóruns e colóquios, interlocução com representantes do legislativo, confecção de documentos, etc.
42Uma maneira objetiva de sair desse campo minado de avaliações moralistas acerca do comportamento do poder público diante do movimento social é buscar exatamente os resultados concretos em termos dos interesses em jogo. Com todas as dificuldades e restrições que o Mover carrega consigo, é possível identificar nele uma experiência autônoma de construção de espaços públicos; e na resposta do Executivo à sua ação, uma inércia que, na melhor das hipóteses, desperdiça a energia oriunda da iniciativa popular cidadã, ou que, na pior, faz ouvidos de mercador a fim de deliberadamente não tocar em pontos inegociáveis para o interesse privado, cativo que está desse mesmo interesse a fim de poder levar a cabo, no fim das contas, a política de governabilidade da cidade.
- 14 Um dos moradores organizados contra a construção de um prédio que estava acima da altura permitida (...)
43Do lado do Judiciário não é possível traçar um padrão unívoco de comportamento diante da verticalização e de questões afins. Deve‑se registrar, contudo, que o Ministério Público dedicado à defesa dos chamados Direitos Difusos tem acolhido as reivindicações do movimento como legítimas. A expertise jurídica é uma frente fundamental de luta. Sabe‑se informalmente que bairros com moradores em cargos elevados no Judiciário têm sido mais eficazes na proteção de seus interesses, provavelmente pela agilidade e proximidade com os instrumentos de decisão de embargo e similares. A rapidez e a oportunidade têm um papel importante na batalha travada entre o preservacionismo e os interesses da especulação imobiliária, portanto a temporalidade do rito judiciário é estratégica para o sucesso das ações do movimento.14 Para se ter uma idéia, basta que seja demolido um prédio para que cesse qualquer direito reivindicando a sua validade histórica, arquitetônica ou outra – simplesmente não existe mais o objeto sobre o qual se possa reivindicar o que quer que seja – e, por tabela, qualquer responsabilidade penal sobre o autor da demolição. O direito de propriedade, aqui mais do que em qualquer outro âmbito da vida social, aparece com uma crueza aguda. Ele é convocado inclusive para justificar a venda das casas pelos seus legítimos proprietários para fins de incorporação: é um ‘direito’ inalienável. Mesmo assim, relatos de participantes de outras associações falam de assédio e de ‘terrorismo’ aos moradores que resistem a vender seus imóveis.
44O conjunto dos direitos sociais com espírito desmercadorizante que se contrapõe ao direito privado individual – traço das democracias sociais com predomínio do Estado de Bem‑Estar – não atingiu a política urbana, e por isso não deixou rastros que pudessem ser retomados pelos atores sociais nos momentos de tensão e de conflito (diferentemente, por exemplo, do caso do Direito do Trabalho, do Sistema Público de Saúde e de Educação, onde a memória de uma regulação anti‑privatista pode em alguma medida ser invocada pelas gerações mais velhas).
45O discurso dos especialistas, por seu turno, é completamente alheio ao sentido histórico e social que funda a reivindicação do movimento: tomada de um ponto de vista técnico, ela é enquadrada como ‘sentimental’. Nas palavras de um arquiteto, “O problema não é a verticalização, mas o adensamento exagerado” (“Moradora da Vila Romana pede proteção contra verticalização”, O Estado de S. Paulo, 19/01/05). Ainda segundo o mesmo especialista, “se todo o mundo morasse em casinhas, faltaria transporte” (ibidem). Ora, a representação das ‘casinhas’ é exatamente o símbolo que põe em lados opostos o discurso do planejamento e o discurso da qualidade de vida, pois esse último traduz ‘casinhas’ como a imagem de uma convivência humana viável, que cava nas camadas da memória os exemplos de felicidade e trocas no âmbito da comunidade.
46O discurso do planejamento desqualifica e desmoraliza a remissão às ‘casinhas’ e opõe uma visão ‘realista’ do progresso, chamando a atenção para o que denomina de idealização do passado – as facilidades do mundo moderno associadas à urbanização metropolitana correspondem, homologamente segundo essa visão, aos melhoramentos da medicina e da ciência: a expectativa de vida aumentou, o controle das doenças e o progresso dos medicamentos permitem uma mitigação do sofrimento e da dor, enfim, o mundo melhorou. No balanço entre casinhas e vida metropolitana, feitas as contas, dizem os técnicos, o saldo é favorável à segunda. O Mover, contudo, enfrentou o discurso do planejamento, ao invés de recusá‑lo: sofisticou a apresentação de seus argumentos, lançou mão de consultoria de urbanistas, cercou‑se de pareceres de estudiosos em áreas diversas e foi a campo, confeccionando, no ano de 2006, um mapa circunstanciado do próprio bairro, localizando as áreas potencialmente tombáveis por conta de sua importância arquitetônica ou histórica, propondo então um padrão de gabarito para os novos empreendimentos verticais, o qual deveria compor um Plano de Bairro, medida aliás prevista no Plano Diretor anterior e, desde então, deixada de lado diante de questões mais prementes previstas no próprio Plano.
47A iniciativa do movimento deu assim um impulso inesperado ao que era para ter ficado ‘no papel’. No entanto, para que os problemas apontados no documento fossem de fato enfrentados em suas causas, seria preciso uma articulação com políticas mais gerais no âmbito do próprio município: o tópico das chamadas ‘vias coletoras’ é um bom exemplo (trata‑se dos meios de circulação viária internos ao bairro e que se tornam vias de escoamento do trânsito carregado em grandes artérias da cidade – caso típico das marginais e das grandes vias de acesso disponíveis para o deslocamento rodoviário). Neste caso, todo o esforço de tentar definir um padrão convivial e residencial ao bairro (por exemplo com limites de velocidade à circulação de automóveis, semáforos, zonas de estacionamento e áreas de lazer) esbarra em uma definição de política pública que ultrapassa o nível local. Problemas deste tipo ocorrem em outros tópicos.
48Por causa dessas articulações local‑geral (âmbito do município ou da metrópole, em sentido alargado), houve a necessidade de membros do movimento se aproximarem do campo especializado onde tais debates tinham lugar, deparando‑se então com o discurso do planejamento a que se fez referência logo acima. Esse discurso tem uma capacidade poderosa de fagocitar a política deliberativa, o que é atestado pela impotência dos representantes municipais (vereadores) de serem subtraídos ao seu domínio: ao invés de promover a mediação (funcionalmente prevista) entre a formação da vontade cidadã e o domínio técnico‑estratégico do planejamento, aqueles cedem o seu ‘poder’ ao argumento desse último, esvaziando assim o poço originário da implicação com a política, a qual deveria vir ‘de baixo’, de acordo com a representação da soberania popular que informa as sociedades modernas. Com isso, dá‑se uma sobrecarga das funções do cidadão e do técnico na figura do homem ou da mulher comuns, do morador ou da moradora, que deve se desdobrar para preencher em uma única pessoa os papéis faltantes do político e do especialista. Diferentemente de uma suposta incorporação de facetas diversas da subjetividade partida pela divisão do trabalho na figura autônoma de um indivíduo emancipado, o que emerge é, não uma autonomia do sujeito participante da sociedade civil, capaz de discutir um pouco de tudo com todos, mas, ao contrário, um trabalhador assoberbado pela adição de tarefas vindas de domínios diversos e que, para sobreviver (isto é, manter a qualidade de vida da qual carece), deve correr atrás do tempo e forçosamente fazer o trabalho dos outros.
49Decorre dessa observação empírica, ou seja, da constatação do resultado dos encontros dos membros do Mover com as instâncias dos poderes públicos municipais, a percepção de uma experiência política que altera o quadrante em que se punha a temática da cultura política e da relação entre movimentos sociais e Estado. Esse último toma mais e mais um caráter administrativo e ‘delega’ para a própria cidadania a identificação, o processamento e, quiçá, a resolução dos seus próprios problemas. Dessa forma, o fantasma da apatia democrática, da falta de viço republicano nas comunidades políticas que conformam as grandes cidades modernas, encontra uma solução hipertrofiada no presenteísmo permanente dos abnegados e heróis da cartilha participacionista (porque estão quase em vários lugares ao mesmo tempo: fóruns, debates, encontros, reuniões, assembléias), outro lado do ‘se virar’ dos pobres e excluídos (Telles, 2003). Aqui como lá, é a necessidade transformada em virtude, o achado de uma verdadeira cidadania flexível.
- 15 Conselho de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente, da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (...)
50Do relato acima, e a partir de uma experiência aparentemente bastante localizada, como a do Mover, tem‑se a oportunidade de iluminar uma faceta até o momento pouco explorada da ‘governança das cidades’. Se o Orçamento Participativo e os Conselhos Municipais (tais como o CADES15) amplificaram a participação cidadã nas questões urbanas, por outro lado eles ainda não parecem oferecer uma intervenção efetiva da população na resolução de problemas imediatos que afetam a sua qualidade de vida.
51Diferentemente da organização imposta pela lei, do tipo dos Conselhos Gestores de saúde, infância e adolescência e outros (Dagnino, 2002; Tatagiba e Teixeira, 2006), a organização do Mover não tem caráter mandatário e nem sequer compete com as formas institucionais típicas das associações de moradores, como se viu. O que pode ser sinal de fraqueza permite, por outro lado, um alto grau de flexibilidade e autonomia. O grande ativo do movimento parece ser mesmo a identificação de itens relevantes da pauta da própria política pública municipal (meio ambiente, qualidade de vida, uso e ocupação do solo, participação cidadã) que não são satisfatoriamente contemplados pelos poderes governamentais, sendo, por isso mesmo, cobrados de maneira razoável, isto é, de maneira argumentativamente irrefutável, o que traz um certo mal‑estar para os políticos de plantão. Desde o pedido para o plantio de árvores previsto no código municipal até, como se viu, à apresentação circunstanciada de um plano de limitação do gabarito para novos empreendimentos imobiliários (baseado em estudos comparativos), ou mesmo um plano minucioso de tombamento do bairro, efetuado com o devido cuidado técnico, o Mover usa as armas da expertise, que são também as armas dos técnicos da subprefeitura e das secretarias de estado.
52Isso coloca de imediato, para os poderes públicos, o problema de não poder descartar sem mais as suas reivindicações como não razoáveis, maximalistas ou infundadas (como acontece com os movimentos populares sem os recursos intelectuais dos especialistas: advogados, urbanistas, professores, técnicos com alta especialização, engenheiros, etc.). Mas coloca também o expediente clássico nesses casos no Brasil: a sedução da cooptação. Chamar pontualmente um ou outro membro para ‘ajudar’ na implementação de uma política pública local que o aparelho estatal não tem capacidade ou recursos humanos suficientes para levar a cabo. Isso dilui a iniciativa cidadã e simultaneamente ‘terceiriza’ uma atividade de serviço que é dificilmente definível no seu contorno trabalhista: onde começa e onde acaba o ‘trabalho’ do técnico ou do artista que leva serviço para casa, trabalha nos finais de semana e repassa um valioso acervo acumulado em sua formação para os novos ‘colegas’ da administração pública (mais um elemento da cidadania flexível, abordada acima).
- 16 O comportamento de desprezo pode ser exemplificado em uma audiência na Secretaria de Planejamento (...)
53Esse tópico, de equação complicada (dado que a recusa completa de ajudar a administração pública pode parecer igualmente uma postura antiparceria e antiparticipativa), é um desafio para o movimento. Implicado nesse dilema está, na verdade, o enfrentamento dos limites entre o Estado e a sociedade, entre o ativismo civil e a elite republicana, entre a administração da máquina burocrática e o cidadão com direitos de participação e informação. Mais e mais a moderna teoria política tem levado em conta o conhecimento local e a participação local (com a decorrente representação nos órgãos políticos estabelecidos nesse nível) como legítimos componentes da decisão (deliberação) dos governos. O Mover, portanto, tem uma capacidade de produzir decisões no âmbito da política local, de bairro e, se for generalizado para outros bairros, pode mesmo ser um exemplo de gestão participativa da cidade. Isso talvez explique a forma oscilante com que os poderes públicos encaram o movimento, alternando entre desprezo (dado o pequeno número de aderentes, incapazes de causar qualquer balbúrdia típica dos movimentos de caráter massivo) e reconhecimento16 de que se trata realmente de uma experiência inovadora que conviria não descartar, dada a sua relativa inserção em uma opinião pública que amplifica as suas demandas como demandas ‘justas’ para uma boa‑vida na cidade (vide o apoio do movimento Defenda São Paulo).
54Outro aspecto a ser destacado é que a própria amplificação dos atos do Mover (aparição na mídia, convite para participar em fóruns diversos, entre outros eventos) reforça, entre os moradores não mobilizados, a importância tanto do movimento, quanto da pauta que ele encarna. Dessa forma, o interesse político entre pessoas comuns, leigas, é ativado, o que constitui um efeito colateral não negligenciável para a prática de uma cidadania ativa. Isso pode ser demonstrado, a contrario, em um exemplo em que um morador idoso recomenda que a filha não se envolva muito com as iniciativas do grupo (no caso, passar um abaixo‑assinado entre os vizinhos), porque isso poderia “causar problemas” para ela (ou sua família): está presente aqui, certamente, a memória do período autoritário, no qual aquele morador foi socializado, quando uma iniciativa pública dos próprios cidadãos era interpretada imediatamente como um perigo para a sua segurança pessoal.
55Por fim, o movimento repercute e também estimula o surgimento de novas iniciativas com propósitos semelhantes, como é o caso do movimento Viva SP, que surgiu depois da aparição do Mover e, tal como esse último, sustentando a defesa do patrimônio histórico, só que de toda a cidade, ao invés de estar restrito a apenas um bairro. Por outro lado, as associações de moradores existentes também de algum modo são sensibilizadas a incorporar a luta antiverticalização em suas pautas, graças à visibilidade do Mover.
- 17 O Mover ultimamente passou a se autodenominar Movimento de Oposição à Verticalização Caótica e pel (...)
- 18 O Núcleo de Ação Local (NAL) segue o modelo dos neighbourhood watch programs, baseado na auto‑orga (...)
56Embora frágil como um movimento social que se caracteriza pela regularidade das ações de protesto, pela existência de crenças e solidariedades que sejam amplamente compartilhadas e pela diversificação das formas de ativismo, o Mover demonstrou ser uma iniciativa cívica que tocou em um ponto nevrálgico do tecido urbano das cidades que se vêem sob o assédio das tendências de globalização: o efeito da gentrificação sobre a comunidade local e a conseqüente destruição do patrimônio material (incluindo, no caso da Lapa e da Vila Romana, o patrimônio industrial) e imaterial (memória do bairro). Dessa maneira, o Mover levantou questões que estavam além da sua capacidade de sustentar, muito menos de resolver. No entanto, é importante demarcar a história dessa iniciativa, uma vez que ela se tornou decididamente uma referência para outros movimentos de bairro da cidade, os quais passaram a adotar a temática da verticalização em suas pautas de demandas.17 O mesmo se pode dizer de iniciativas locais posteriores, as quais também incorporaram a temática original do Mover, sendo o caso mais recente o Núcleo de Ação Local da Vila Romana.18 Ao buscar novas alianças e se transmutar em outras iniciativas, o Mover mostra que um movimento social deve ser definido menos por suas características organizativas ou institucionais e mais pela sua capacidade de influenciar e pautar a agenda do adversário, dentro de uma estrutura social concebida como conflitiva e dinâmica (Oliveira, 1994).
57Afora esse aspecto propriamente sociológico, é importante realçar também os aspectos políticos que o caso levanta.
- 19 Desnecessário observar que o déficit habitacional a que se referem as políticas públicas nada tem (...)
58A forma de atuação do poder público municipal no tratamento de um movimento como o Mover choca‑se com as noções de governança local e de deliberação comunitária dos problemas da região (bairro) de uma cidade. Mas a impotência do município parece ecoar uma impotência de outros níveis de governo, seja estadual ou nacional. A forma de atuação do capital imobiliário é muito mais dinâmica e articulada, muito mais do que os aparelhos destinados à regulação da sua atuação, o que a princípio expõe o déficit da balança de poder entre os pólos do interesse público e privado. Sem reclamar qualquer vocação universalista, o Mover, contudo, levanta um repertório de direitos que apontam para o longo prazo (viabilidade do trânsito, do barulho, da poluição do ar, da poluição visual, do direito à luz natural do sol, da convivência entre vizinhos, da não‑violência, da arborização e a recusa de comércios oportunistas), enquanto os grupos de interesse do capital imobiliário têm como justificativa tão somente a exploração de oportunidades de investimento de curto prazo, que são racionalizadas publicamente como um contributo do setor à redução do déficit habitacional da cidade.19
59Direito contra direito. No meio, os cidadãos contestam o significado que atribui uma prevalência do curto prazo sobre o longo prazo.