Ribeiro, Margarida Calafate, África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial
Ribeiro, Margarida Calafate (2007), África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial. Porto: Edições Afrontamento, 263 pp.
Texto integral
1África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial é uma compilação de vinte e um testemunhos de mulheres portuguesas que acompanharam os maridos, militares destacados para Timor, Guiné‑Bissau, Angola ou Moçambique, entre 1956 e 1974. Embora anónimos, os testemunhos fazem referência à idade, naturalidade, habilitações literárias e actividade profissional das intervenientes, o que possibilita a sua contextualização sociocultural. Descrições da infância e juventude ajudam a perceber as pressões familiares e sociais a que estas mulheres estavam sujeitas. O casamento surge, para elas, como uma sequência existencial natural. Porém, também são coagidas a fazê‑lo pelo medo: o medo da guerra e a possibilidade de morrer sem deixar descendência eram argumentos utilizados pelos namorados, levando‑as a casar e embarcar.
2Após a partida destas mulheres e homens para as colónias, são narrados segmentos de vida, que incluem aspectos como a chegada a um país com tradições diferentes, a procura de trabalho, as dificuldades verificadas no quotidiano, as amizades, as alegrias, a dor e a morte. É também narrado o regresso a Portugal, o acolhimento pela sociedade, a indiferença, a difícil integração ou até o divórcio. Estes testemunhos são importantes porque representam o repositório de uma memória colectiva. No entanto, há que ressalvar que, como em todas as memórias, há esquecimentos e emoções que condicionam a produção de conhecimento e o entendimento da realidade. O próprio processo de selecção e recolha de testemunhos filtra informação, revelando, também, o posicionamento crítico da investigadora.
3Esta encruzilhada de memórias é particularmente relevante para os estudos feministas – e para os “estudos sobre mulheres” – pois possibilita a inscrição das mulheres portuguesas numa guerra que a História tende a perpetuar como exclusivamente masculina. É comummente sabido que milhares de jovens do sexo masculino foram mobilizados para combater ou efectuar serviço no então designado “Ultramar”. O que permanece ainda sepultado no desconhecimento é que milhares de mulheres, para estarem mais perto dos companheiros, maridos ou namorados, delinearam estratégias que as levaram a participar, directa ou indirectamente, na guerra. Cerca de 80 000 mulheres portuguesas aderiram às actividades do Movimento Nacional Feminino (MNF); formaram‑se enfermeiras pára‑quedistas; mulheres de oficiais viveram, clandestinamente ou não, em acampamentos com os restantes militares. É necessário ressalvar que o MNF seguia as directrizes ideológicas do regime estado‑novista funcionando, portanto, como instrumento de propaganda e manipulação de massas.
4Os testemunhos incluídos nesta colectânea são o acervo vivo de uma memória colectiva, de uma história em processo de cristalização; mas são, sobretudo, um caleidoscópio de histórias reveladoras da subalternização da mulher, num momento histórico em que as mulheres portuguesas eram educadas para desempenhar uma função passiva no lar e na sociedade. Enquanto, por um lado, o livro resgata para a memória colectiva o papel participativo das mulheres no teatro de guerra, nem sempre reconhecido, paradoxalmente o conjunto de testemunhos revela a subalternidade da subjectividade feminina.
5A expressão “mulher de” surge logo no primeiro testemunho (p. 37), demonstrando que, no processo de experimentação da realidade, o sujeito feminino se entende não como sujeito. De facto, estas mulheres identificam‑se, sobretudo, como coadjuvantes de um processo doloroso, quer a nível físico, quer psicológico: não reivindicam para si o poder, ou o centro, limitando‑se a conceber‑se como margem; não deixam, no entanto, de reclamar um lugar no processo. Esta existência marginal nem sempre implica a ausência de espírito crítico ou de autoconsciência. É particularmente relevante um depoimento em que a mulher estabelece o distanciamento necessário para caracterizar o impacto da assistência feminina em situação de guerra, referindo‑se às mulheres como “avião dos frescos” (p. 43), comparando‑as a bens de consumo essenciais, distribuídas, segundo uma lógica de utilidade, de forma a garantir o bem‑estar dos militares.
6A instrumentalização das mulheres pelo Estado e a sua objectificação pelos maridos remetem a categoria “mulher” para a base da pirâmide hierárquica. No entanto, este estado de subalternidade nem sempre é percepcionado por todas as intervenientes, devido, predominantemente, aos aspectos socioculturais e religiosos que condicionavam a sua autonomia e expansão a todos os níveis. Na época em causa, a educação feminina funcionava como um factor propulsor e perpetuador de um sistema falogocêntrico. Às mulheres era proporcionado um ensino em que predominavam as actividades práticas relacionadas com o lar, como “trabalhos manuais” ou costura, assim como a aprendizagem de matérias como economia para a eficaz gestão do espaço privado. Temáticas como higiene e primeiros socorros eram também abordados, assumindo, assim, o sexo feminino a sua função, convencionalmente inata, de cuidar de outrem (p. 91). Porém, o espaço doméstico em que orbitavam as mulheres ganha, em tempo de guerra, outras dimensões: o poder antes exclusivamente exercido em casa, no privado, alarga‑se e adquire contornos públicos, como, por exemplo, quando assumem profissões como docentes ou secretárias em cenários coloniais, frequentam as messes ou participam em festas militares. A atitude participativa e observadora de tudo o que as rodeia serve, de certa forma, como alavanca para despertar a perspectiva crítica de uma realidade obsoleta. Num passo fulcral lê‑se o seguinte testemunho: “E é isto que é quase paradoxal: apesar da guerra, apesar da aflição, houve uma libertação, não só intelectual e emocional, mas também uma libertação da mulher enquanto ser que é capaz de...” (p. 98). Este “ser capaz de” é, a meu ver, a efectiva constatação da capacidade de acção das mulheres, da consciencialização de si enquanto seres humanos com vontade própria.
7As mulheres surgem aqui na primeira pessoa, num discurso, até há pouco tempo, pouco provável de ser registado, no que constitui uma das mais‑valias do trabalho de investigação realizado por Margarida Calafate Ribeiro. No entanto, sente‑se a falta de uma referência clara aos métodos adoptados pela investigadora para a recolha, selecção e tratamento de testemunhos, lacuna esta que suscita algumas questões. As mulheres seleccionadas pertencem, sobretudo, a uma classe média‑alta, são escolarizadas e, no decorrer da guerra ou posteriormente, tiveram uma profissão remunerada. Isto significa que outras classes sociais, menos favorecidas, permanecem no esquecimento da história. Talvez esta observação não tivesse pertinência se o/a leitor/a tivesse sido elucidado/a sobre a metodologia adoptada e as dificuldades registadas na sua utilização.
8A guerra colonial não teve apenas implicações nas formas de socialização e nos hábitos quotidianos das mulheres portuguesas e europeias; da guerra colonial foram também protagonistas mulheres africanas, cujo depoimento teria sido importante recordar. Embora se refira até uma certa relação de paridade entre europeias e africanas, por exemplo em situações de parto, este livro deixa as africanas largamente ausentes desse espaço partilhado. África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial é, contudo, um objecto de trabalho de extrema importância para a construção de uma história inclusiva, na sua pluralidade.
9Esta obra é o segundo livro de autor de Margarida Calafate Ribeiro, doutorada em Estudos Portugueses e Brasileiros pelo King’s College, Universidade de Londres, e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A autora tem vindo a desenvolver vários projectos de investigação sobre a Guerra Colonial, literatura de guerra e identidades.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Vânia Sofia Brito Senos Duarte, «Ribeiro, Margarida Calafate, África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial», Revista Crítica de Ciências Sociais, 89 | 2010, 222-224.
Referência eletrónica
Vânia Sofia Brito Senos Duarte, «Ribeiro, Margarida Calafate, África no feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 89 | 2010, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 10 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/3717; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.3717
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