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Recensões

Barbas, Helena, Madalena. História e Mito

Sidinea Pedreira
p. 219-220
Referência(s):

Barbas, Helena (2008). Madalena. História e Mito. Lisboa: Ésquilo, 362 pp.

Texto integral

1É inquestionável a importância da recuperação e reconfiguração de histórias de personagens que contribuíram, ao longo dos séculos, para a criação e manutenção de estereótipos que serviram para a legitimação de papéis sociais e de comportamentos. Reescritas e reinterpretações da história – seja de relatos históricos, seja de mitos ou lendas – são possíveis e necessárias, uma vez que proporcionam espaços de discussão e de reconfiguração de papéis sociais, nomeadamente no que diz respeito às identidades sexuais.

2Madalena. História e Mito, da autoria de Helena Barbas, enquadra‑se num grupo abundante de publicações que tem resgatado histórias de mulheres ou de imagens femininas que tiveram um papel influente em sociedades diversas. Maria Madalena é uma dessas personagens controversas. Ainda hoje, milhares de peregrinos vão venerá‑la à Basílica Românica no monte Vézelay, na Borgonha, ou a Saint‑Maximin, na Provença, e muitos são os seus devotos. O calendário católico rendeu‑se ao costume implantado pela tradição ortodoxa no século viii, reconhecendo o dia 22 de Julho como data do aniversário de Maria Madalena, data em que se fazem procissões em seu nome. No entanto, a sua história é composta de muitos espaços vazios e de incertezas, e seu legado ainda continua obscuro.

3Daí a relevância do estudo em apreço. O que se conta aqui, não apenas sobre Madalena mas também sobre outras mulheres da Bíblia, serviu durante séculos – e talvez ainda sirva para legitimar comportamentos misóginos nas culturas cristãs ou influenciadas pelo cristianismo: o descaso para com a mulher e para com sua sexualidade, a mistificação, a marginalização e os silenciamentos das suas histórias. Este livro é uma contribuição importante para os resgates e releituras em curso, pois Maria Madalena é, sem dúvida, uma figura do imaginário colectivo ocidental, que ultrapassa as fronteiras da igreja e dos escritos religiosos.

4Madalena. História e Mito é resultado da investigação de doutoramento de Helena Barbas, ensaísta, crítica literária, tradutora e professora de Estudos Portugueses e Literatura Comparada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Neste livro, Helena Barbas propõe‑se mostrar como, ao longo dos séculos, a personagem de Maria Madalena foi atraindo narrativas de cariz mitológico e lendário, criando o que a autora designa por “biografia imaginária”. Tomando como ponto de partida textos da tradição portuguesa e espanhola, Barbas propõe‑se apresentar uma configuração do mito ibérico de Maria Madalena. Faz referência a estudos existentes e discute textos de diverso teor, tanto em prosa quanto em verso, que contribuem para a construção da figura da Madalena Ibérica: textos bíblicos e sermões, textos literários, dramáticos e cinematográficos, numa abordagem extensa da personagem de Maria Madalena, composta de várias fontes, numa tentativa de traçar a história das diferentes configurações da personagem.

5Partindo de uma descrição da relação de Maria Madalena com os Evangelhos Canónicos, Apócrifos e Gnósticos, a autora levanta questões sobre as traduções desses textos. Destaca a influência dos textos canónicos na formação do pensamento cristão sobre Maria Madalena e discute a distinção entre os Evangelhos Apócrifos e os Evangelhos Gnósticos, com ênfase no Evangelho Gnóstico de Miriam. Dentro da explanação sobre os Evangelhos Gnósticos, apresenta dois temas, “O Andrógino Madalena‑Cristo” e “Contra as leituras feministas – o sexo dos deuses”, que na minha opinião mereciam talvez uma abordagem mais aprofundada. Em “O Andrógino Madalena‑Cristo”, é pouco clara a ligação entre androginia e as figuras de Madalena e de Cristo. Por outro lado, na discussão das leituras feministas dos Evangelhos Gnósticos, é pouco claro o que se entende por “leituras feministas”, bem como a relação da autora com essas leituras. Estas lacunas têm a vantagem de convidar a futuros estudos sobre Madalena.

6Na secção relativa às lendas medievais, a autora reporta‑se, nomeadamente, às histórias da Santa Madalena, incluídas em Legenda Áurea (século xiii). Barbas analisa uma edição do Flos Sanctorum (século xvi), feita por um compilador anónimo e mandada imprimir em português por D. Manuel I, texto que é uma provável versão da Legenda Áurea. A autora aborda a construção da figura de Maria Madalena em Portugal, por via de Castela, e irá deter‑se no impacto do Concílio de Trento entre nós, nomeadamente nas querelas sobre a identidade de Madalena e nas leituras daí decorrentes que se fizeram da personagem. Na secção intitulada “Madalena Domesticada. Dos sermões à literatura edificante”, Barbas analisa alguns sermões que têm por tema Madalena – nomeadamente um sermão do Padre António Vieira – textos esses que contribuem para uma configuração ibérica específica da personagem. Finalmente, na sequência desta abordagem histórico‑literária da personagem, na secção “Biografia imaginária de Maria Madalena”, Barbas refere uma série de ícones, imagens, pinturas e esculturas que retratam as multi‑faces da personagem Madalena através da história, mas sem que se detenha na sua análise. O tratamento dos ícones teria com certeza um impacto maior se fosse articulado com a abordagem que a autora faz das associações de Madalena com as imagens do feminino em geral, bem como a articulação da personagem com as questões relacionadas com o corpo e o amor, as figurações da amante, da pecadora e da mulher fatal, isto é, da sexualidade feminina nas culturas cristãs.

7O regresso da personagem Madalena em produções artísticas da segunda metade do século xx, como a ópera‑rock, Jesus Cristo Superstar, o filme, A Paixão de Cristo, ou ainda o romance, O Código da Vinci, é ainda abordado na parte final da obra. Porém, faz falta uma avaliação do impacto dessas produções nas construções das imagens sobre Madalena na sociedade contemporânea. A conclusão sucinta considera a personagem de Maria Madalena como um mito da modernidade, apesar das tentativas de despojamento e silenciamentos, e ainda como figura que adquiriu um “estatuto de personagem literária e modelo do heroísmo feminino”.

8Maria Madalena pertence ao imaginário colectivo ocidental mas também à própria História. A diversidade de representações que dela existem suscita o interesse de várias áreas do conhecimento, e é improvável que uma única obra – qualquer que ela seja – possa abranger, de maneira exaustiva e satisfatória, todas as suas facetas. O trabalho de Barbas é rico na variedade de abordagens ensaiadas, e contribui com uma visão extensa e panorâmica das diferentes disciplinas e possibilidades de linhas de investigação, despertando ainda o interesse para estudos mais aprofundados dos diversos mitos e da iconografia de Madalena.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Sidinea Pedreira, «Barbas, Helena, Madalena. História e Mito»Revista Crítica de Ciências Sociais, 89 | 2010, 219-220.

Referência eletrónica

Sidinea Pedreira, «Barbas, Helena, Madalena. História e Mito»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 89 | 2010, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 10 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/3712; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.3712

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Autor

Sidinea Pedreira

Formada em Teologia (FATEBOV – Faculdade de Teologia de Boa Vista, Brasil) e actua na ONG Portal da Vida (BA – Brasil). Trabalhou como coordenadora de professores tanto em escolas como em projectos sociais no Brasil, e colaborou com projectos educacionais e teológicos relacionados com questões de género. Actualmente é mestranda em Estudos Feministas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
s.a.pedreira@hotmail.com

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