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Recensões

Morrison, Toni, Love

Rita Fonseca
p. 216-218
Referência(s):

Morrison, Toni (2009), Love. Tradução: Maria João Freire de Andrade. Lisboa: Dom Quixote, 242 pp.

Texto integral

1Love abre com uma personagem a trautear. Trauteia enquanto observa as mulheres e os homens, as suas relações. Os sentidos da leitora foram cativados; a visão penetra nas palavras e começa a ouvir‑se uma melodia baixa, de fundo. Todo o romance é percorrido por referências à música afro‑americana – Duke Ellington, Sammy Kaye, Bing Crosby, Ella Fitzgerald ou Nina Simone. O jazz e os blues acompanham a leitura de Love e, igualmente, a vida das personagens desta obra de Toni Morrison, publicada em 2003 nos Estados Unidos da América, mas só agora editada em Portugal pela Dom Quixote, em tradução de Maria João Freire de Andrade.

2Neste romance, a escritora também concentra a acção em mulheres negras, neste caso – e nas palavras da autora – “wicked females”, isto é, “mulheres perversas” que, como sugere o título, vão explorar o amor nas suas diferentes manifestações. Estas mulheres irão também revelar como se vive e convive com a ausência do amor e com o sentimento oposto: o ódio. Segundo a autora – numa entrevista dada a CBS News Sunday Morning – foi um risco utilizar a palavra Amor como título do seu romance, pois trata‑se de uma palavra que se tornou vazia e se transformou num cliché. No entanto, o título terá acabado por funcionar bem. Diz Morrison na referida entrevista: “Tornou‑se naquilo que eu queria que o romance fizesse: reformular a palavra, reformatá‑la, devolver‑lhe o sentido, o sentido original, isto é, torná‑lo mais complexo.” O romance não se resume à narração de um conjunto de tramas amorosas, mas é bem mais complexo e intricado, como o próprio amor.

3As histórias presentes em Love atravessam um período que vai desde os finais dos anos 1940 até aos anos 1990, tendo como pano de fundo acontecimentos como o final da Segunda Guerra Mundial, a Lei Seca, a segregação racial e a luta pelos direitos cívicos dos afro‑americanos e a alienação da juventude americana dos subúrbios. Nesta obra ouvem‑se as vozes de L, May, Christine, Heed e Junior, mulheres que nasceram, partiram e/ou chegaram a Sooker Bay, na Flórida, mais exactamente ao hotel de Bill Cosey, espaço para o qual convergem as personagens e onde decorre a maior parte da trama.

4Bill Cosey, a personagem masculina, é o elo entre estas mulheres e os seus destinos: todas elas têm uma relação especial com ele, seja de admiração ou de medo, seja de amor platónico ou mesmo de ódio. O livro relata e explora ainda as relações entre as mulheres. Christine e Heed odeiam‑se profundamente e, ao longo da narrativa das suas recordações, ficamos a conhecer as causas deste ódio: resulta da manipulação de May – mãe de Christine –, que envenena a relação entre as duas, e do casamento de Heed, então com 11 anos, com Bill Cosey, de 52 anos e avô de Christine, casamento esse que acaba por afastar as duas meninas. As palavras da enigmática personagem L sintetizam a origem deste ódio: “Culpo May pelo ódio que colocou nelas, mas tenho de culpar Mr. Cosey pelo roubo.” De facto, estas duas personagens tinham vivido na infância uma amizade intensa, que foi quebrada pela intervenção de May e de Cosey. Este último rouba Heed de Christine ao casar‑se com ela. A partir deste casamento, estas três mulheres vão lutar pela atenção de Cosey e pela sua fortuna, mesmo depois da sua morte, uma vez que o testamento deixado por Cosey é ambíguo e refutável. Apesar de a casa situada no nº 1 de Monarch Street pertencer a Heed por testamento, devido a esta incerteza a casa será partilhada durante algum tempo pelas três num ambiente de constante tensão. A mudança chega quando Junior, sobrevivente de preconceitos e de maus‑tratos, entra na casa para trabalhar para Heed. Esta jovem personagem alimenta‑se de uma forte ambição e tenta enganar as duas velhas mulheres para satisfazer os seus próprios desejos. Os seus planos acabam, no entanto, por conduzir Heed e Christine ao sentimento que antigamente as unia: o amor. E L? Esta personagem é o espírito que observa e protege tanto os habitantes de Sooker Bay como as habitantes de Monarch Street, enquanto trauteia uma melodia e guia a leitora por todas estas histórias. Ela é a única que fala livremente na primeira pessoa, e talvez seja mesmo ela quem dê nome ao romance: no final da narrativa, refere‑se à 1ª Epístola de São Paulo aos Coríntios, Capítulo 13, passo cujo tópico central é o amor; aí, a personagem afirma que o seu nome é esse mesmo. Love – como a canção de Nina Simone, “Four Women” – traça o retrato, o percurso e as crenças de diferentes tipos de mulheres negras.

5Muito embora Toni Morrison não se identifique como feminista – posição que tem manifestado em várias entrevistas – neste romance, como noutros da autora, verifica‑se a denúncia de uma sociedade patriarcal que subsiste ao longo de cinquenta anos. As cinco mulheres deste romance viviam em função de um homem: May vivia para agradar ao sogro, tendo mesmo negligenciado a sua relação com a filha; Christine, apesar de odiar o avô, não o confrontava; Heed tinha sido vendida pelo pai ao velho Cosey e, por fim, Junior tenta agradar o retrato do velho Cosey, que garante a sua presença no mundo dos vivos. Apenas L revela alguma autonomia em relação a Cosey. Embora trabalhasse para ele e muito o admirasse, isso não a impediu de o assassinar e de adulterar o seu testamento a favor das mulheres de 1 Monarch Street, já que Cosey nada lhes deixava. Esta personagem masculina, Cosey, é complexa: se, por um lado, é uma figura tirana e autoritária para com as personagens femininas – humilha May, abusa de Heed quando criança –, por outro lado cria empatia na leitora, pois protege Heed das investidas de May e de Christine e sustenta todas as mulheres que o rodeiam, gastando a fortuna que o seu pai ganhou por meios torpes. A sua ambiguidade é reforçada pelo facto de Cosey esbanjar a fortuna herdada numa vida luxuosa e na protecção das pessoas que o rodeavam como um acto de “vingança” contra o pai. A questão da ambiguidade da personagem de Cosey está bem patente na voz de L: “Podia chamar‑se‑lhe um bom mau homem ou um mau bom homem. Depende daquilo que nos é querido – do quê ou do porquê.”

6A ordem patriarcal também se faz sentir pela figuração da mulher no romance como submissa e dependente do homem ou ainda como simples objecto de desejo. Os casos de Christine e de Junior são paradigmáticos. A primeira sai de Sooker Bay procurando independência; porém, todos os homens que vem a conhecer controlam a sua vida. Já Junior, tendo sido vítima de uma tentativa de violação, que denuncia, acaba por ir ela para a prisão, uma vez que os directores da escola não acreditaram na sua versão dos acontecimentos.

7A narrativa é parcialmente contada por L, na primeira pessoa, e parcialmente por um narrador omnisciente que entra no discurso destas mulheres, revelando as suas emoções e as suas lembranças; a sua voz acaba por enfatizar a perspectiva feminina. É pelo uso da palavra que as personagens femininas passam de um papel passivo a um papel activo: é a sua versão da história que fica registada, mesmo que esta seja uma história de sofrimento e de subalternidade. Love oferece um retrato realista – ou, pelo menos, verosímil – da sociedade (afro)americana, na qual os direitos das mulheres negras eram (são?) ignorados. Apesar deste facto, e mesmo, por vezes, da falta de solidariedade entre as mulheres, todas elas tentam lutar pelo seu lugar na casa e na comunidade, sem medo dos imaginários demónios que castigavam mulheres ditas perversas. No entanto, como afirma L, esta é “apenas mais outra história inventada […] uma história que mostra como mulheres descaradas conseguem abater um homem”. Bill Cosey representa, de algum modo, a ascensão da burguesia afro‑americana no século xx; é bem‑sucedido porque recorre ao jogo duplo, procurando agradar à comunidade branca para proteger alguns negros – que por vezes desprezava – e não por via da luta pelos direitos cívicos. Uma possível leitura do seu desaparecimento seria lê‑lo como significando a da quebra de uma ordem social presente no início da narrativa.

8Esta aproximação ao real, a construção de personagens cativantes e verosímeis, como também a mestria com que Toni Morrisson narra os acontecimentos e fomenta reflexões, prende a atenção das leitoras e dos leitores. Love é uma obra envolvente que revela o percurso do amor por distintas mulheres; um caminho de dor, de solidão e de força, ilustrada na canção Love O’Love. O amor pode, afinal, figurar na capa de um livro e ainda surpreender.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Rita Fonseca, «Morrison, Toni, Love»Revista Crítica de Ciências Sociais, 89 | 2010, 216-218.

Referência eletrónica

Rita Fonseca, «Morrison, Toni, Love»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 89 | 2010, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 14 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/3709; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.3709

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Autor

Rita Fonseca

Fez o mestrado em Estudos Artísticos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com uma tese intitulada “ Certa Voz na Noite. A Noite em Calvino e em Lynch: As Cidades Invisíveis e Mulholland Drive” (2010). É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela mesma instituição.
ritafonsec@gmail.com

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