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Recensões

Le Clézio, J. M. G., Diego & Frida

Manuel Afonso
p. 211-213
Referência(s):

Le Clézio, J. M. G. (1994), Diego & Frida. Lisboa: Relógio d’Água, 212 pp.

Texto integral

1A atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Jean‑Marie Gustave Le Clézio em 2008 veio pôr em destaque a vasta obra de um autor ainda relativamente pouco discutido entre nós. Neste número especial sobre feminismos, pareceu pertinente revisitar o imaginário patriarcal que funda Diego & Frida, a biografia romanceada dos celebrados pintores mexicanos, assinada por Le Clézio. Publicada em 1993 e trazida ao mercado português em 1994, esta obra, como as outras do autor, só conheceu as estantes das nossas livrarias e bibliotecas justamente após a outorga do Prémio Nobel em 2008.

2Le Clézio mergulha‑nos aqui numa fábula despojada, em que a problemática do corpo feminino, enquanto palco da batalha entre a dureza da vida e a emancipação da mulher, é a matriz do sofrimento e da criação artística. Um sofrimento surdo estrutura a epopeia mexicana de Le Clézio, um sofrimento que é a coluna vertebral da obra, dilacerada mas firme, de Frida Kahlo.

3À crítica feminista, que aqui pretendo esboçar, resiste esta obra de Le Clézio, tão contaminada pela dominação sexual explícita, social e simbólica, girando em torno duma relação de domínio despótico dele sobre ela, em que ela, tão forte e tão cheia de vida, abdica de si em prol dele – “gosto mais de Diego que da minha pele”. Na sua aparente objectividade, Le Clézio quase glorifica esta entrega nunca mútua entre homem e mulher, antes mediada pelos valores do patriarcado, que subordinam a mulher.

4Em Tehunatepec, no estado mexicano de Oaxaca, vizinho do estado de Chiapas, antigo quartel‑general do Exército Zapatista do subcomandante Marcos, terra índia, símbolo da resistência da dignidade indígena, há – ou haveria no tempo de Frida – um mítico matriarcado. Uma comunidade matriarcal de agricultoras e comerciantes sem “qualquer noção de pecado e proibição”, onde as mulheres, as tehuanas, não conhecem a “inibição, nem nada que não possam fazer ou dizer”. Esta terra tornou‑se lendária e atraiu artistas, escritores e curiosos. Também Rivera se deixou apaixonar por Tehunatepec, pela dignidade das tehuanas, livres e impudicas, que pintou banhando‑se, como fizera Gauguin nos trópicos no outro lado do Pacífico. E também Frida viu nas tehunas um símbolo da feminilidade possível, da liberdade alcançável, o produto acabado e primitivo da revolução que ela, com seus quadros, procurava operar em si, e que Diego, com seus murais, procurava operar no mundo.

5Diz‑nos Le Clézio que “a mulher de Tehuantepec […] tornou‑se nessa época a encarnação da resistência indígena e, além disso, o emblema do feminismo – de um feminismo essencial, do triunfo da mulher índia”. Frida foi tehuana nas cores, nos vestidos, na pose, por vezes na atitude, nunca o foi na vida, nem na sua vida interior, que tanto pulsava, nem na sua vida exterior, tão ansiosa por emancipação. Diego & Frida, é tão estranho ao feminismo como o foram Diego e Frida.

6Se é verdade que Frida experimenta, pelo menos nas páginas desta obra, aventuras por fora do seu amor a Diego, também é verdade que o não faz em prol do seu próprio prazer sexual, mas como jogos medíocres de ciúme, portanto em função do outro, do ente amado, desse todo‑poderoso “ogre de mulheres”. E se o adultério de Frida é prisioneiro do jogo de ciúme (a mais medíocre arma de arremesso que o patriarcado deixa às mulheres no amor – a substituição do prazer do eu pelo questionamento da posse do outro sobre mim, ironicamente usando para tal o mecanismo por excelência da função amorosa: o sexo), o adultério de Rivera é livre e absoluto, sem um minuto para pensar em Frida. Genialmente, elevando ao nível de modelo universal de amor romântico a odisseia conjugal de Diego e Frida, Le Clézio arrasa com esse mesmo modelo, mostra‑o como idealização do compromisso patriarcal, heterossexual, hipocritamente monogâmico, confusão institucionalizada entre amor e dominação. É de facto Le Clézio que procede a essa desconstrução? Na verdade, não, é a leitura crítica, feminista, ou a junção das duas. Le Clézio apenas nos põe a nu este modelo trabalhado, como um diamante polido, em torno de um dos seus principais vectores – a relação homem/mulher – e oferece‑nos a matéria‑prima para descobrir nos mistérios do amor a dominação mais abjecta.

7No espaço aberto pelas revoluções plásticas e conceptuais do início do século xx, duas tendências se afirmaram na sua segunda metade. Uma foi a centralidade do corpo, como objecto, campo e sujeito da criação; outra, o novo espaço aberto para as artistas mulheres, que, não tendo suplantado o predomínio masculino, deram saltos quantitativos e qualitativos. Da combinação entre estes dois fenómenos abriu‑se um universo de possibilidades para a reflexão do lugar da mulher na sociedade, das possibilidades da sua emancipação pela criação e do corpo como vector essencial nesta dinâmica. Assim surge a body art, surge a contaminação da arte pelos feminismos, tendo nas Guerrilla Girls um exemplo paradigmático, surgem mulheres artistas que têm na obsessão do corpo a obsessão de exprimir e mudar o seu lugar no mundo, tanto nos ramos mais experimentais da arte, com autoras como Kiki Smith, como nos mais tradicionais, como Paula Rego.

8Frida Kahlo foi simultaneamente precursora e exemplo paradigmático deste fenómeno combinado. Tal como a revolução mexicana de 1910 necessitou, para catapultar o México do seu semi‑feudalismo colonial para uma posição de modernidade industrial e cultural em efervescência permanente durante trinta anos, de uma violência política sem precedentes, Frida, para se catapultar enquanto revolucionária plástica, necessitou de se alimentar de uma violência atroz, a violência que a vida exerceu sobre ela. “Não estou morta e além disso tenho uma razão para viver. Essa razão é a pintura”.

9No quadro de 1939, Duas Fridas, Frida vestida de branco, à europeia, como se preparada para casamento ou baptizado, e com uma gola alta que lhe imobiliza a cabeça, mostrando o constrangimento físico que lhe tolhe a liberdade, tem, do outro lado, Frida em vestes de tehuana livre e emancipada, com a mão estendida para, sobre ela, a primeira Frida repousar a sua. Vemos o coração de ambas através de seus peitos, porém, uma artéria da Frida tehuana sai do seu corpo, parecendo querer abraçar a da sua gémea, esvaindo‑se em sangue, apesar de a outra tentar estancar a hemorragia com um pequeno alicate médico. Talvez Frida ironizasse já aqui a sua duplicidade falhada, a falência do seu eu guerreiro que se esvai em sangue apesar do esforço do seu eu sofrido. Pelo menos, é nesse sentido que vai a obra de Le Clézio: a morte inevitável da Frida tehuana perante a passividade da Frida que vive para Diego.

10A epopeia do casal mexicano, pela pena de Le Clézio, consegue sintetizar perante os nossos olhos dois imaginários longínquos, o do México indígena, condenado à periferia na modernidade, e o da modernidade ocidental, que perpetua ainda o amor romântico como ideal de relação entre o homem e a mulher, ao mesmo tempo que revoluciona ferozmente os seus valores. E parece‑nos tão próximo o referente que ambos têm de relação entre o masculino e o feminino, de representação dos homens e das mulheres e de uns perante os outros, que chegamos a desconfiar que haja de facto uma força comum, mais antiga que a história, para lá das civilizações, que torne o amor e a dominação como matriz essencial da relação entre homens e mulheres. É uma mentira estética pintada por Le Clézio que seja possível extrair da relação entre o casal mexicano um referente universal do jogo do humano, no diálogo entre seus pólos masculino e feminino.

11É a existência dessa matriz comum – real nas civilizações originárias mexicanas como na civilização capitalista de hoje, real na relação entre Frida e Diego e nas ferramentas que temos para ler essa relação – que permite o exercício de Le Clézio de universalização do modelo que nos conta. Só assim ele é verosímil literariamente. Le Clézio não se propõe denunciar a opressão presente na história de amor que conta. Encontrar a raiz dessa opressão cabe à crítica, à crítica feminista, como esta se propõe ser. Cabe‑lhe, principalmente, entender essa raiz como ultrapassável, encontrando nos discursos que a reflectem, nas histórias que dela falam, o peso que têm no imaginário humano, para entender a profunda tarefa que é revolucionar a mente humana e varrê‑la de opressões.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Manuel Afonso, «Le Clézio, J. M. G., Diego & Frida»Revista Crítica de Ciências Sociais, 89 | 2010, 211-213.

Referência eletrónica

Manuel Afonso, «Le Clézio, J. M. G., Diego & Frida»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 89 | 2010, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 12 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/3703; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.3703

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Autor

Manuel Afonso

Mestrando em Comunicação e Jornalismo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo‑se licenciado em Estudos Artísticos na mesma faculdade. O interesse pela interdisciplinaridade possível e necessária nos estudos da produção cultural, artística e ideológica, possível nos campos das ciências sociais e das humanidades motiva os seus estudos presentes e futuros, vinculados necessariamente com a transformação do real.
manel-afonso@hotmail.com

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