Federico, Annette R. (org.), Gilbert and Gubar’s The Madwoman in the Attic After Thirty Years
Federico, Annette R. (org.) (2009), Gilbert and Gubar’s The Madwoman in the Attic After Thirty Years. Columbia: University of Missouri Press, 272 pp.
Texto integral
1Talvez seja hoje difícil compreender o estado de êxtase intelectual vivido por Sandra M. Gilbert e Susan Gubar no momento da escrita de The Madwoman in the Attic (1979). Como confessará Gilbert na introdução à segunda edição de Madwoman, com uma piscadela de olho a Wordsworth, “bliss was it to be alive in that time, at that place!” (xx) Entretanto, o cânone foi assimilando o radicalismo das leituras feministas da obra de Elizabeth Barrett Browning, George Eliot, Emily Dickinson e das irmãs Brontë.
2No contexto actual de impasse feminista, é de destacar a oportuna e relevante publicação de uma colecção de ensaios de teor revisionista, intitulada Gilbert and Gubar’s The Madwoman in the Attic After Thirty Years. A reflexão proposta por Annette R. Federico trata de responder à simbólica questão: de que modo é que as feministas da indefinida terceira geração recuperam e avaliam o material crítico produzido em plena época de afirmação e expansão do movimento feminista pela dupla americana Gilbert e Gubar, sendo esta, como sabemos, responsável pelo cimentar de uma coesa estética literária feminista? Mais do que uma celebração do legado histórico, a crítica feminista contemporânea parece ansiar por rígida orientação metodológica ou uma miragem de pluralidade epistémica politicamente unificadora. As lentes de leitura do volume editado por Federico ora nos oferecem uma visão aumentada sobre o lugar de destaque ocupado por Gilbert e Gubar no seio da sua geração intelectual [não esqueçamos a relevância dos passos dados por Ellen Moers em Literary Women (1976) e Elaine Showalter em A Literature of Their Own (1977)], ora denotam, no teor das suas críticas mais acesas, certo grau de miopia em relação ao contexto histórico de Madwoman, caracterizado pela urgência política em distinguir, em separar a história literária escrita por mulheres do opressivo sistema patriarcal comum. Como todas as libertações, também esta teve a sua dose de utopia comunitária num registo profundamente entusiasta e inspirador.
3Procurar‑se‑ão, no volume da revisitação, promessas escatológicas não cumpridas para propor uma eventual superação? Ou far‑se‑á um balanço positivo do que entretanto foi alcançado no campo de análise do pensamento e da escrita de mulheres?
4Tememos que não seja esse o objectivo do livro. Pressionado pelas inquietações do tempo da revisitação, este livro procura respostas em si e para si próprio, olhando com profunda nostalgia para os vestígios do seu crescimento rebelde.
5A organização do volume, em que cada ensaio evoca um capítulo ou sub‑capítulo de Madwoman, denota alguma preocupação em incorporar uma variedade de abordagens teóricas, apostando num equilíbrio entre a clássica psicanálise e o incipiente ecofeminismo no tratamento de temas fulcrais para a crítica contemporânea. A evolução da teoria e pedagogia feministas, os estudos de género literário e fílmico e os mais urgentes debates pós‑coloniais, todos eles são palimpsesticamente postos em contacto com a escrita de mulheres do século xix e suas congéneres do século xx, fazendo jus ao trilho de linhagem literária feminina inaugurado por Gilbert e Gubar.
6Se, por um lado, Susan Fraiman avalia positivamente o contributo de Gilbert e Gubar para o enquadramento académico de um feminismo de natureza política, cujo método inovador motiva novas gerações de estudantes a encontrar ecos do passado feminista na teoria contemporânea mais vanguardista, Marlene Tromp, por sua vez, dedica atenção ao impacto do livro na formação intelectual de centenas de especialistas em estudos anglo‑americanos. Decifrando a produção crítica projectada sobre Gilbert e Gubar nos anos 80 e 90 do século passado, Tromp defende que Madwoman deve ser lido como produto exemplar do mote “o pessoal é político”, na medida em que alberga o testemunho vivo das ilusões, avanços e frustrações de um período revolucionário para a agenda feminista. As suas maiores fraquezas constituem, nesse sentido, a sua maior força: a personalização da teoria académica; a busca de um motor de luta unitário e coeso; a ingenuidade do manifesto de sororidade em busca da santificada liberdade da “Everywoman”. A proposta de “remodelação” feminista de Tromp é, todavia, cautelosa, já que, ciente da necessidade de aferir o que interessa ao feminismo actual, defende que perspectivas multidisciplinares sobre a posição global das mulheres no espaço público e privado apenas retemperam a luta feminista e reafirmam a validade intemporal de uma obra como Madwoman.
7Não será de estranhar que o apelo magnetizante de Madwoman nas salas de aula se deva, na opinião de Fraiman, ao investimento declarado na psicanálise das personagens dos romances do século xix, construídas a partir da tensão permanente entre luz e sombra, obediência e resistência, ordem e loucura. Esse binarismo, que os críticos de Madwoman tão arduamente se esforçaram por rebater, consegue, no entanto, seduzir uma geração MTV ávida de sofridos mitos das origens, de argumentos que reinscrevam a poética feminista numa cada vez mais (a)moralizante sociedade. Hila Shachar argumentará, por exemplo, que a recriação fílmica de Wuthering Heights se baseia na curiosa negação do legado libertador de Madwoman, ao postular que o feminismo dos anos 70 derivou num “ ‘mundo perdido’ de feminilidade irresponsável, resultante das liberdades que acompanharam a interrogação dos papéis femininos tradicionais” (165). A retoma não poderia ser mais contra‑revolucionária.
8Não sem ironia, o feminismo dos nossos dias enfrenta um retrocesso conservador, bifurcado em feminismo neoliberal de terceira vaga ou pós‑feminismo acomodado. O ecofeminismo ergue‑se, neste contexto, como via alternativa, regeneradora para uns, essencialista para outros, de activismo social. O centro de acção volta a ser político, como bem argumenta Katey Castellano.
9Se estivermos perante a recriação da “língua comum” de Rich, do exercício de um poder ético, de uma espiritualidade de índole místico‑feminista, para onde transferir a raiva, a contestação concentrada na luta feminista dos anos 70? Tendo em conta que importantes vectores críticos da teoria queer coincidem com o foco dramático de Madwoman – a ira, a reclusão, o desvio, a abjecção –, o volume revisionista ressentir‑se‑á, porventura, de algum silêncio em relação aos laços de (des)continuidade entre posições complementares de luta contra a ordem patriarcal.
10São três os ensaios que aceitam regressar ao “sótão” da recriação da identidade feminina, confrontando‑o com o discurso da teoria do trauma e da literatura pós‑colonial nas suas tensas representações de império e raça. Madeleine Wood redescobre, com fervor psicanalítico, “enclosing fantasies” no espaço geográfico e mental de Jane Eyre, enquanto Narin Hassan e Danielle Russell saúdam as vozes de escritoras contemporâneas de diferentes latitudes de modo a desafiar o feminismo branco ocidental de Gubar e Gilbert. A justaposição da escrita da indiana Krupabai Satthianadhan e da americana Toni Morrison ao conflito identitário em Jane Eyre produz efeitos contraditórios: por um lado, contesta‑se o foco universalista de Madwoman pela introdução de paradigmas de etnicidade e raça; por outro, ocorre um processo de simbiose metafórica entre o universo opressivo das autoras do século xix e aquele que escritoras de países de passado colonial ou esclavagista recriam nos seus romances revisionistas. Seguem‑se vários ensaios que participam no debate sobre questões de género literário na história da crítica feminista, detendo‑se essencialmente nas dificuldades de afirmação sentidas pelas escritoras do “romance de sensação”, do romance gótico e de realismo doméstico vitorianos. Por último, vemos como o olhar lúcido de Lucia Aiello sobre a arte da eterna mutação poética de Dickinson relativiza o epíteto de “madwoman/artist” atribuído por toda uma geração feminista, excessivamente fascinada pelo legado de resistência silenciosa da poeta americana.
11A presente colecção permite, em suma, regressar às fontes de uma possante imaginação literária feminista, embora se reconheça que nomes como Jane Austen e George Eliot, tão centrais em Madwoman, terão perdido algum fulgor crítico vendo, por isso, a sua presença reduzida no volume da revisitação.
12Regressemos à inicial (des)ilusão feminista de Federico, hesitante entre a fúria criativa permanente, promotora de novas fronteiras feministas, e a lenta acomodação a um espaço próprio consignado na academia para a crítica feminista. O reencontro com clássicos feministas dos anos 70 favorece a aproximação entre discurso teórico e político, ao potenciar a academia como reduto máximo de luta por uma justiça mais particular, mais complexa e, portanto, assumidamente mais comprometida com a real vivência e o vasto imaginário das mulheres em todo o mundo.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Licínia Pereira, «Federico, Annette R. (org.), Gilbert and Gubar’s The Madwoman in the Attic After Thirty Years», Revista Crítica de Ciências Sociais, 89 | 2010, 209-211.
Referência eletrónica
Licínia Pereira, «Federico, Annette R. (org.), Gilbert and Gubar’s The Madwoman in the Attic After Thirty Years», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 89 | 2010, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 11 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/3701; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.3701
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