1Quando novas negociações comerciais multilaterais emergiram na agenda de políticas públicas na década de 1990, atores da sociedade civil das Américas como ONGs, sindicatos e organizações empresariais se deram conta de que não estavam preparados para fazer frente aos desafios colocados por essas negociações. Em primeiro lugar, porque eram escassos os espaços hemisféricos ou sub-regionais para intercâmbio de informações e idéias. Além disso, atores-chave dos debates comerciais, como algumas das centrais sindicais, não conversavam entre si devido a conflitos herdados da época da Guerra Fria. Precedentes de colaboração transnacional na região existiam, mas eram, em sua maioria, ações de curto prazo e/ou estavam limitados a manifestações de solidariedade derivadas, por exemplo, das violações aos direitos humanos durante as ditaduras militares na América Latina.
- 1 É importante esclarecer que os atores incluídos neste trabalho não se vêem a si mesmos como contrá (...)
2Este artigo analisa o processo pelo qual diferentes atores da sociedade civil das Américas construíram um novo campo de ação coletiva ao longo dos últimos vinte anos, solidificando e adaptando velhos vínculos e ao mesmo tempo criando novas redes sociais transnacionais em torno à questão comercial. Mais especificamente, o trabalho enfoca as tentativas de institucionalização desses vínculos, por meio da criação de novas organizações em nível doméstico e transnacional. O trabalho não considera a atuação da sociedade civil como um todo, mas apenas daqueles atores que têm se posicionado de forma crítica ou contrária aos acordos de livre comércio.1 Em especial, analisa o caso da Aliança Social Continental, uma aliança de organizações e movimentos criada em meados da década de 1990.
3A primeira parte do artigo discute a criação de um novo campo transnacional de ação coletiva nas Américas, forjado a partir das negociações comerciais da década de 1990. Em seguida, o trabalho analisa o processo de formação de alianças entre as organizações da sociedade civil, dando atenção especial para o caso da Aliança Social Continental. A terceira e última parte do trabalho faz uma avaliação crítica da estrutura de coordenação criada no nível nacional e transnacional, com ênfase para os papéis desempenhados por mediadores entre esses níveis territoriais.
4A experiência das mobilizações contra as negociações comerciais nas Américas mostra que há uma sobreposição de iniciativas de curto prazo, organizadas em torno a campanhas específicas, e outras que procuram dar respostas de mais longo prazo aos problemas da coordenação e da representação na ação coletiva transnacional. A partir de uma análise do funcionamento da Aliança Social Continental (ASC), argumenta-se que não é possível pensar em coalizões comerciais em termos de uma separação rígida entre o nível doméstico e o nível internacional. Além disso, argumenta-se que um olhar que foca exclusivamente no papel dos estados e organizações internacionais se tornou insuficiente para compreender a dinâmica cada vez mais complexa de construção de coalizões e de formação de preferências. Este artigo busca, portanto, contribuir para uma melhor compreensão de como novas e velhas formas organizativas se relacionam e quais as tensões e obstáculos derivados das diferentes opções existentes.
- 2 Um antecedente importante do TLCAN foi o acordo negociado entre Canadá e Estados Unidos (Canada-U. (...)
5A partir da década de 1990, as negociações comerciais tornaram-se palcos importantes dos debates sobre o futuro da globalização e da governança global, com a presença cada vez maior de atores não-estatais. Basta lembrar dos protestos ocorridos durante a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, em 1999. No entanto, só é possível compreender o que aconteceu em Seattle se considerarmos a década anterior de politização das negociações comerciais nas Américas. O Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN), negociado pelos Estados Unidos, Canadá e México entre 1991 e 1993, é a referência histórica mais adequada a partir da qual podemos perceber mudanças importantes não só na agenda dos acordos, mas também na maneira como muitas organizações da sociedade civil passaram a reagir a esses debates.2
- 3 A proliferação de acordos regionais ao estilo do TLCAN não se restringiu às Américas. Praticamente (...)
6De fato, o TLCAN inaugurou uma nova geração de acordos de livre comércio, na qual temas como propriedade intelectual, regras de investimento e, em menor medida, direitos trabalhistas e a defesa do meio ambiente, passaram a ser quase tão importantes quanto os relativos a acesso a mercados.3 Além disso, pela primeira vez, uma ampla gama de organizações da sociedade civil (OSCs) participaram ativamente dos debates sobre esse acordo, dividindo-se, em cada país e através das fronteiras nacionais, em grupos favoráveis ou contrários às negociações. Novas organizações e alianças tiveram que ser criadas para monitorar as negociações comerciais e avaliar os seus impactos e organizações pré-existentes incorporaram o tema às suas agendas.
7No entanto, foram as negociações da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), lançadas em 1995, que levaram a que um amplo e heterogêneo grupo de organizações da sociedade civil de todas as Américas se reunissem na busca de patamares comuns de ação coletiva. A criação da Aliança Social Continental (ASC), durante a reunião ministerial da ALCA em Belo Horizonte, em 1997, é a principal tentativa de criar uma estrutura de coordenação entre esses grupos de atores em nível hemisférico.
8As críticas mais importantes apresentadas por esses atores são relacionadas à falta de transparência dos processos negociadores, à inexistência de canais de diálogo com as organizações da sociedade civil, à ausência dos temas sociais e ambientais da agenda, à distribuição desigual dos benefícios e custos dos acordos, à ameaça que estes acordos representam para a soberania dos países e para a capacidade dos estados de implementar políticas públicas, e ao risco de uma “race to the bottom”, ou seja, de uma tendência dos países a competir entre si com base em salários cada vez mais baixos e legislações ambientais e trabalhistas menos eficientes.
- 4 A definição proposta neste trabalho enfatiza a dimensão política da criação de um campo, e também (...)
9A construção de vínculos entre as OSCs críticas das negociações comerciais ao longo da década de 1990 permite falar na criação de um novo campo de ação coletiva transnacional, definido como um espaço de ação política formado por indivíduos e organizações da sociedade civil que participam do processo de elaboração de um conjunto comum de práticas, objetivos e crenças.4 As principais características desse campo são: a) sua presença simultânea nos níveis doméstico e transnacional; b) seu dinamismo, tanto no sentido de que as práticas e crenças que o constituem são permanentemente questionadas ou reafirmadas, como também no sentido de que o número de participantes varia ao longo do tempo; c) sua conexão e articulação com outros espaços de ação coletiva domésticos e transnacionais; d) sua heterogeneidade e assimetria interna, sendo formado por organizações da sociedade civil que variam muito em termos dos seus papéis, seus interesses e seu poder, e, finalmente e) a pluralidade de trajetórias utilizadas para ir além das fronteiras nacionais, em termos das políticas de alianças, formas organizativas e idéias.
10Nesse contexto, a atenção dada tradicionalmente ao papel de estados e organizações internacionais tem se tornado insuficiente para compreender a nova dinâmica de criação de alianças e formação de preferências. A maior parte das organizações da sociedade civil (OSCs) incluídas neste estudo participam de outras redes e campos que muitas vezes têm pouco a ver com os debates sobre acesso a mercados, mas passaram a se interessar por acordos comerciais devido à ampliação da agenda negociadora na década de 1990. Além das diferentes inserções temáticas das OSCs no campo de ação coletiva, há também uma diversidade significativa em termos dos objetivos e estratégias defendidos. A maior parte das organizações está enraizada em espaços nacionais e priorizam mudanças domésticas, mas, ao mesmo tempo, constróem alianças transnacionais. É devido a toda essa diversidade que este trabalho fala de múltiplas trajetórias para a transnacionalidade, ou seja, múltiplas maneiras pelas quais organizações da sociedade civil participam de debates, ações e processos que as levam além das fronteiras nacionais, sem necessariamente abrir mão da atuação em nível doméstico (von Bülow, 2009; von Bülow, no prelo).
11As escolhas desses caminhos, ou trajetórias, são impactadas pelas identidades prévias das organizações (suas agendas, objetivos e alianças) e pelas mudanças na estrutura de oportunidades políticas (por exemplo, o lançamento de novas negociações comerciais), mas também são o resultado de um processo dinâmico de interação com outros atores. Esse processo é caracterizado pela ausência de um consenso claro sobre a validade dos repertórios anteriores, e, mais especificamente, sobre como alianças transnacionais devem ser institucionalizadas, que demandas devem ser priorizadas, e quais devem ser os alvos dessas demandas.
12Em 1986, uma central sindical como a norte-americana AFL-CIO (American Federation of Labor-Congress of Industrial Organizations) discutia estratégias relacionadas às negociações comerciais no âmbito doméstico e, em menor medida, com seus pares nos fóruns sindicais internacionais dos quais participava. Vinte anos depois, a mesma organização debate suas posições simultaneamente em uma pluralidade de arenas: no âmbito da Aliança Social Continental (ASC), da Campanha Continental contra a ALCA, da Stop CAFTA Coalition (uma aliança norte-americana contra o acordo de livre comércio entre a América Central e os Estados Unidos), da Alliance for Responsible Trade (o capítulo nacional da ASC) e nos fóruns do movimento sindical, entre outras. O mesmo pode ser dito com relação a muitas ONGs de direitos humanos ou de gênero, que também passaram a participar das alianças criadas em torno aos debates comerciais e ao mesmo tempo mantiveram sua participação em outras iniciativas, relacionadas às suas temáticas específicas. Essa grande pluralidade é algo novo, fruto de uma insatisfação com as formas de organização baseadas em regras rígidas e excludentes de participação que caracterizaram boa parte da ação coletiva transnacional do passado.
13Essa insatisfação caminha, no entanto, de braços dados com a ausência de um modelo que seja aceito por todos, e do risco de uma crescente fragmentação organizativa. Múltiplas respostas para os problemas organizativos na ação coletiva transnacional são possíveis em conjunturas específicas, e estão sujeitas a renegociações. O objetivo dos atores estudados tem sido gerar espaços de diálogo, que ajudem a coordenar a ação coletiva sem substituir ou excluir organizações pré-existentes.
14A construção e institucionalização de vínculos entre os atores não tem sido um processo linear e progressivo, pelo qual coalizões são criadas e fortalecidas no nível doméstico, para então, em um segundo momento, spill over na arena transnacional (ver cronologia, Figura 1). Ao contrário, tem sido um processo mais caótico de institucionalização de vínculos simultaneamente nos dois níveis. Em todos os casos, no entanto, essas iniciativas têm tido que enfrentar o desafio da sustentabilidade, e algumas não sobreviveram.
- 5 Na sua pesquisa sobre organizações regionais latino-americanas (que chamam de “redes regionais”), (...)
15As novas coalizões dedicadas ao tema do comércio coexistem com uma variedade de outras alianças que proliferaram no mesmo período, ou que já existiam anteriormente.5 O objetivo não tem sido substituir essas outras iniciativas, e nem mesmo competir com elas, mas criar espaços de intersecção para coordenar ação coletiva relacionada especificamente às negociações de acordos de livre comércio. Como uma das participantes nesses esforços explicou, havia um acordo geral sobre a necessidade de definir regras de coexistência que permitissem uma ação efetiva e ao mesmo tempo plural:
- 6 Entrevista com Coral Pey, Diretora Executiva, Alianza Chilena por un Comercio Justo y Responsable (...)
“Nós tínhamos em comum essa crítica, que está relacionada à construção de um novo sujeito, de que nós tínhamos que trabalhar de forma eficiente, vinculando o internacional com os impactos locais, mas sem essas representações modernistas falsas de grandes conglomerados e representações que muitas vezes são fictícias.”6
16No entanto, como já foi dito acima, não havia um modelo organizativo previamente estabelecido e consensual. A variedade de tipos de coalizões criadas refletem diferentes visões sobre como os atores acham que a ação coletiva transnacional deve ser organizada, que papel devem cumprir e a quem querem se aliar. Mais especificamente, essas respostas variam entre aquelas que dão maior peso para a autonomia e horizontalidade nas relações entre os membros – o modelo típico das coalizões criadas para coordenar campanhas transnacionais – e projetos mais ambiciosos de criação de alianças baseadas em regras explícitas de filiação e representação.
Figura 1 – Cronologia da Criação de Coalizões Comerciais nas Americas
- 7 Para uma revisão interessante desses debates que remonta ao feminismo do século xix, ver Clemens 2 (...)
17De fato, os atores da sociedade civil que participam de coalizões transnacionais se confrontam com um dilema básico, entre a necessidade de garantir continuidade e eficiência da ação coletiva por meio da criação de regras (e assimetrias), e a pressão por manter relações horizontais que garantam o respeito da autonomia e igualdade entre os participantes. É claro, no entanto, que esse não é um dilema novo,7 mas sim um dilema que ganha novos contornos no ambiente mais amplo da ação coletiva transnacional.
- 8 Ver, por exemplo, a definição de redes como «formas de organização caracterizadas por padrões de c (...)
18Na literatura sobre a criação de coalizões transnacionais, tem se tornado comum o uso do termo “redes” para resumir uma suposta tendência à criação de formas mais horizontais e flexíveis de organização.8 Esse uso do termo se apóia na diferença que Powell propôs entre formas de rede, mercado e hierarquia (Powell, 1990). De acordo com essa concepção, redes são diferentes de hierarquias porque são mais horizontais, não têm um centro ou uma cadeia de comando, e portanto são mais flexíveis e adaptáveis do que organizações hierárquicas. Esse uso do termo é parecido ao uso dado pelos próprios atores da sociedade civil, que chamam muitas coalizões de “redes” como forma de enfatizar sua horizontalidade, flexibilidade e democracia interna. As “redes”, assim, são vistas como “uma morfologia social superior para toda ação humana” (Castells, 2000: 15).
- 9 De forma mais geral, essa crítica tem sido feita à tendência de uma parte da sociologia das organi (...)
- 10 Para uma revisão da história do desenvolvimento da análise de redes como área de estudo, ver Freem (...)
19Este trabalho não utiliza a noção de redes como formas superiores de organização, por razões teóricas e metodológicas. O uso metafórico e organizacional do termo só traz confusão ao debate, seja porque o conceito não está claramente definido, seja porque estabelece a priori um caráter superior à ausência de hierarquias e afasta nossa atenção das relações de poder, assimetrias e conflitos entre os atores.9 Quando utilizado neste trabalho, o termo “redes” faz referência à tradição de análise de redes sociais desenvolvida nas ciências sociais há várias décadas.10 Nessa tradição, as redes sociais são definidas como vínculos padronizados entre atores (indivíduos, organizações, ou mesmo países); são ao mesmo tempo pressupostos de ação coletiva, que só é possível dada a interação entre atores, e resultados da ação coletiva, a partir da qual novos vínculos são criados. Se os vínculos entre atores são horizontais ou verticais, é uma questão que só pode ser respondida a partir da pesquisa empírica.
20Os esforços dos atores por criar novas formas de organização em nível doméstico e transnacional são parte de uma tensão ainda não resolvida entre estruturas de coordenação e representação mais ou menos hierárquicas. A Aliança Social Continental (ASC) é um bom exemplo de um modelo que pretende ser horizontal.
21O caso da Aliança Social Continental (ASC) é especialmente interessante porque é uma inovação em matéria de criação de organizações transnacionais. A Aliança é formada por dezoito “capítulos nacionais” e quinze “membros regionais” (ver Figura 2). Seus membros buscam colaboração de longo prazo entre organizações previamente existentes e novas organizações, por meio da criação de regras de coordenação e representação baseadas no princípio do consenso na tomada de decisões.
Figura 2 – Membros do Conselho Hemisférico da ASC
- 11 Antes da Cúpula de Québec, em 2001, documentos da ASC apresentavam listas de demandas, relacionada (...)
22Desde a sua criação, a ASC passou por quatro fases: a primeira, entre o lançamento da proposta de criação de uma aliança hemisférica em Belo Horizonte em 1997 e a primeira reunião da Coordenação em março de 1999, foi uma fase inicial de discussões sobre como a ASC deveria funcionar, e de sistematização das principais demandas a serem apresentadas aos governos nacionais (em sua maioria, relacionadas às negociações da ALCA); entre 1999 e janeiro de 2002 foi uma fase de consolidação da ASC, que terminou com a decisão de lançar a Campanha Continental contra a ALCA11; entre 2002 e a reunião ministerial de Miami, no final de 2003, a ALCA permaneceu sendo o principal tema na agenda, e os capítulos nacionais se mobilizaram em conjunto com a Campanha Continental; finalmente, desde o início de 2004, a Aliança entrou em uma nova fase, ampliando cada vez mais sua agenda para incluir negociações comerciais em nível global e outros acordos regionais, e vinculando o tema do comércio a outras questões como a negociação da dívida externa e militarização.
- 12 Exceções importantes são organizações que participam da Campanha Continental contra a ALCA mas não (...)
23A ASC não reúne a totalidade das organizações da sociedade civil, ainda que tenha conseguido a participação de alguns dos atores mais importantes do campo de ação coletiva crítico às negociações comerciais.12 A maior parte dos seus membros estão localizados em algum ponto do centro para a esquerda no espectro político-ideológico, unificados pela avaliação negativa das consequências dos acordos de livre comércio. O caráter hemisférico – e não latino-americano – da ASC é em si mesmo uma inovação em termos das relações transnacionais na região, como um dos participantes argumentou:
- 13 Entrevista com Héctor de la Cueva, Diretor, CILAS, Cidade do México, agosto de 2004.
“Há uma ruptura com a visão latino-americanista de que não se pode fazer uma aliança com movimentos do Norte, e isso é muito importante, é uma contribuição da Aliança Social Continental... estamos em uma era diferente, não é mais ‘aqueles no Sul lutam, os do Norte se solidarizam’. A luta agora é nos dois lados”.13
24De fato, apesar de haver vários exemplos de colaboração no passado entre os membros da ASC, ela inova em termos de uma organização plural que busca ser uma aliança sustentável, baseada em princípios e objetivos comuns. Em termos de regras de filiação, a ASC incorpora organizações e outras coalizões por meio da participação seja em capítulos nacionais da ASC, seja por meio de organizações regionais, a maior parte das quais já existiam antes de a Aliança ser criada (ver Figura 2). É justamente porque a ASC consegue incluir organizações de vários setores e por ser uma ponte entre o Norte e o Sul que essa experiência tem sido considerada por parte da literatura como um exemplo da “possibilidade de alianças mais amplas construídas em torno do tema mais amplo da democratização da governança econômica” (Anner e Evans, 2004: 40). Existem, no entanto, muitos desafios e ambiguidades no funcionamento da ASC, que colocam em cheque a sua sustentabilidade.
- 14 Ver http://www.asc-hsa.org, acessado em 1 de março de 2006.
- 15 Por exemplo, a publicação das várias versões do documento “Alternativas para as Américas” em espan (...)
- 16 Inicialmente a intenção era criar uma organização mais complexa, com grupos temáticos em nível hem (...)
- 17 Ver http://www.asc-hsa.org, acessado em 1 de março de 2006.
25A ASC é definida pelos seus membros como um “espaço aberto”, um “fórum [...] criado para intercambiar informações, definir estratégias e promover ações comuns, dirigidas para encontrar um modelo de desenvolvimento alternativo e democrático.”14 A Aliança não cobra taxas dos seus membros, mas se sustenta com base em financiamentos de fundações internacionais e ONGs para pagar pelo funcionamento de uma estrutura organizativa enxuta e algumas publicações.15 A Aliança não tem escritório próprio, mas sim um Secretariado rotativo, uma coordenação, e um Conselho Hemisférico que se reúne periodicamente (ver Figura 2).16 Não se concebe como “uma organização com estruturas e hierarquias de nenhum tipo, mas sim como um processo em construção.”17
- 18 Das 123 OSCs entrevistadas no Brasil, Chile, México e EUA, 55 (quase 45%) não participavam da ASC (...)
26Apesar dessa ênfase na horizontalidade e no consenso, a ASC não pode ser considerada como um “espaço aberto” para todos que dela queiram participar. Sua dupla regra de filiação gera maior flexibilidade do que outras organizações (como, por exemplo, as do movimento sindical internacional), mas, mesmo assim, suas regras separam aqueles que podem ser membros e os que não podem. Por exemplo, indivíduos e organizações não podem, por si só, tornarem-se membros. Aqueles que não formam parte de organizações regionais e/ou não querem ser parte dos capítulos nacionais da ASC estão automaticamente impossibilitados de participar. De fato, uma parcela importante do campo de ação coletiva permanece fora da ASC.18
- 19 Por exemplo, participantes canadenses levantaram o problema da exclusão de povos indígenas por cau (...)
- 20 Entrevista com Karen Hansen-Kuhn, Secretariado da ART, Washington D.C., setembro de 2005.
27Desde a sua criação, os membros da Aliança têm feito esforços conscientes para equilibrar assimetrias internas de poder. No entanto, na sua primeira fase os “NAFTA ‘Veterans’”, como Foster chama os principais participantes dos capítulos nacionais do México, Estados Unidos e Canadá, ocuparam o centro das atividades e decisões da ASC (Foster, 2005: 221). Em parte por isso, a Aliança tem sido criticada por não ser “tão hemisférica quanto o seu nome sugere” (Massicotte, 2003: 121). O esforço por incluir mais membros do Sul tem levado, no entanto, a um certo distanciamento das organizações norte-americanas e canadenses. O espanhol se tornou a língua de facto da organização. Esse é um problema, principalmente para participantes de países de língua inglesa e francesa, e no caso de organizações indígenas.19 Enquanto algumas organizações da sociedade civil norte-americanas contrataram funcionários fluentes em espanhol ou português, muitas outras não o fizeram, e isso efetivamente limita sua participação em reuniões e conferências telefônicas, como uma representante na ASC argumentou: “…todas as reuniões da ASC são em espanhol, então aqueles que não falam a língua nem pensam em participar...”.20 Na prática, o resultado é uma certa tendência a que os mesmos indivíduos, aqueles que têm as habilidades linguísticas e/ou vêm das organizações com mais recursos, sejam sempre os que participam das reuniões e conferências telefônicas.
28A ideia de criar capítulos nacionais da Aliança, que servissem como espaços amplos em nível doméstico para reunir organizações em torno às mobilizações comerciais, poderia ser um paliativo à tendência de concentração dos vínculos em nível transnacional. No entanto, os capítulos nacionais da Aliança Social Continental tendem a sofrer um círculo vicioso: o declínio e irregularidade da participação leva à concentração de atividades e processos decisórios em um grupo cada vez menor de indivíduos, e a legitimidade destes passa a ser questionada quando exercem funções de coordenação e representação, tanto em nível doméstico como nos âmbitos internacionais (von Bülow, no prelo). Por sua vez, isso leva a um maior desencanto com a organização e ainda menores níveis de participação. Esse círculo vicioso não é um desafio exclusivo dos capítulos nacionais da ASC, mas é ainda mais difícil de ser transformado em um círculo virtuoso quando se trata de ação coletiva em diferentes escalas geográficas. Nos quatro países estudados, diferentes respostas têm sido dadas a esse desafio comum.
29Todo e qualquer esforço de institucionalização de vínculos transnacionais tem que oferecer respostas aos desafios da coordenação e da representação em diferentes escalas territoriais. Pese à pretensão de criação de espaços abertos e pouco hierarquizados, em pelo menos quatro dos principais países das Américas – Brasil, Chile, México e Estados Unidos –, o processo de criação de capítulos da Aliança Social Continental tem enfrentado críticas daqueles que não se sentem representados.
- 21 Essas queixas surgiram nas entrevistas a vários atores da sociedade civil no México; para uma anál (...)
30Mais especificamente, faltam vínculos entre organizações das capitais, ou grandes centros urbanos, e organizações do interior. No caso americano, por exemplo, organizações de fora do “Beltway” (a auto-estrada que rodeia a capital Washington) criticam organizações como a central sindical AFL-CIO e a ONG Public Citizen por dedicarem uma quantidade excessiva do seu tempo a atividades de lobby, e por centralizar os recursos em suas mãos. Este não é, no entanto, um problema específico das organizações americanas. Em outros países OSCs locais também se queixam da falta de acesso a processos de tomada de decisão sobre as estratégias a serem adotadas e sobre a distribuição desigual de recursos financeiros.21 De fato, a maior parte das reuniões onde tais decisões são tomadas ocorrem nas capitais dos países e/ou nos grandes centros urbanos.
31Além disso, alguns tipos de organizações vêm se tornando menos visíveis no campo de ação coletiva nos últimos anos. A oposição à ALCA, que passou a ser defendida pela Aliança Social Continental a partir de 2001, não é um consenso entre todas as organizações críticas das políticas comerciais implementadas no hemisfério.A radicalização de posições políticas tem, na prática, marginalizado atores mais reformistas, que não são contrários aos acordos comerciais, mas que gostariam de mudar a agenda negociadora e o conteúdo de algumas propostas.
32Finalmente, apesar de existir uma tendência geral à criação de mais laços inter-setoriais, há grande variedade na amplitude dessas alianças, e, portanto, na habilidade e pré-disposição das organizações de dialogar e colaborar com parceiras fora do seu âmbito específico. Por exemplo, no caso das centrais sindicais filiadas à Organização Regional Inter-americana de Trabalhadores (ORIT), alguns de seus membros têm se destacado pela defesa das “alianças sociais” com outros movimentos sociais e ONGs, mas ainda há resistência interna, e essas alianças não são implementadas com o mesmo entusiasmo por todos os membros em todos os países (von Bülow, 2009).
33Atores entrevistados no Brasil, Chile, México e Estados Unidos admitiram as dificuldades que enfrentam para que os capítulos nacionais da Aliança Social Continental (ver Tabela 1) propiciem uma participação efetiva e contínua de todos aqueles interessados. Em parte, essas dificuldades são relacionadas ao desafio de pretender criar organizações permanentes para tratar de um tema que é intermitente na agenda da maioria dos participantes. Assim, momentos de alta mobilização vêm sendo sucedidos por momentos de rápido declínio da atenção dada ao tema pelas OSCs e pela opinião pública em geral.
- 22 Entrevista com Fátima Mello, Secretariado da REBRIP, Rio de Janeiro, maio de 2005.
34A criação de coalizões domésticas sobre comércio nas Américas é um exemplo interessante de difusão transnacional de uma fórmula organizativa que buscou oferecer uma resposta aos problemas de coordenação, representação e produção de conhecimento. As coalizões criadas nos Estados Unidos e no México para discutir o TLCAN no início da década de 1990 tomaram como base a experiência da Action Canada Network, criada anteriormente para tentar influenciar as negociações comerciais entre Estados Unidos e Canadá (ver Quadro 1). Essas coalizões, por sua vez, influenciaram a criação de outras parecidas na América do Sul. Assim, quando se decidiu criar um capítulo da ASC no Brasil no final dos anos 90, o objetivo daqueles envolvidos era criar “uma RMALC (Red Mexicana de Acción Frente al Libre Comercio) brasileira”.22
QUADRO 1 – Capítulos nacionais da asc no brasil, chile, méxico e estados unidos
País
|
Capítulo da ASC
|
Ano de fundação
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Número de membros*
|
Brasil
|
REBRIP – Rede Brasileira pela Integração dos Povos
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1999
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38
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Chile
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ACJR – Alianza Chilena por un Comercio Justo y Responsable
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1995
|
Não é uma aliança de OSCs desde 2004
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México
|
RMALC – Red Mexicana de Acción frente al Libre Comercio
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1991
|
16
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Estados Unidos
|
ART – Alliance for Responsible Trade
|
1991
|
32
|
* Estes são números aproximados, baseados nas estimativas das próprias organizações em 2006; o número de membros varia ao longo do tempo.
Fontes: Entrevistas e páginas eletrônicas das organizações: www.art-us.org; www.rmalc.org.mx; www.rebrip.org.br; www.comerciojusto.cl.
- 23 A pergunta do questionário era: “Suponha por um momento que a próxima reunião ministerial da ALCA (...)
35Essas coalizões foram criadas com objetivos muito específicos: coordenar a ação coletiva sobre comércio; ser espaços políticos de interação entre diferentes arenas ideológicas e setoriais; traduzir a linguagem técnica dos acordos comerciais para atores da sociedade civil; produzir análises sobre os possíveis impactos dos acordos e alternativas, e fazer a mediação entre os níveis local, nacional e internacional de ação. No entanto, os vínculos ausentes colocam em cheque essa capacidade de mediação. Pesquisa realizada em 2004 e 2005 com 123 organizações da sociedade civil que participam das mobilizações críticas aos acordos comerciais nos quatro países mostrou uma tendência a que cada vez menos organizações se apóiem exclusivamente em coalizões comerciais domésticas quando planejam ação coletiva sobre o tema. Apesar dessa não ser uma amostra representativa, reúne os principais atores de cada país (ver Anexo I para a lista das organizações). Com o objetivo de avaliar a capacidade de mediação das coalizões nacionais, uma das perguntas feitas aos membros dessas organizações foi: caso vocês queiram participar dos eventos paralelos a uma reunião ministerial da ALCA que se realizará em outro país, como vocês entram em contato com possíveis parceiros naquele país?23
36No caso do México, quando perguntadas como entrariam em contato com organizações nos Estados Unidos no caso de a reunião ser realizada naquele país, quase metade das 29 organizações incluídas na pesquisa responderam que entrariam em contato com aliados por meio do capítulo nacional da Aliança Social Continental, a RMALC. No entanto, apenas uma respondeu que esse seria o seu canal de mediação exclusivo. A maioria também entraria em contato direto e/ou utilizaria outros mediadores, tais como o secretariado da ASC, organizações setoriais regionais e outras organizações mexicanas (ver Gráfico 1).
37Como um membro da RMALC explicou, nos últimos anos houve uma tendência à multiplicação de vínculos entre organizações mexicanas e dos demais países, acompanhada de uma diminuição da dependência frente à RMALC como a única mediadora capaz de alcançar aliados internacionais:
- 24 Entrevista anônima, Cidade do México, agosto de 2005.
“A RMALC tem contatos e um peso considerável no nível internacional, mas realmente não faz a ponte entre o nível nacional e global. Eles [dirigentes da RMALC] fazem os contatos, mas a informação não tem sido compartilhada... Nós começamos a construir vínculos por nossa própria conta…”24
38Quando a mesma questão foi colocada para organizações da sociedade civil chilenas, a maioria respondeu que não entraria em contato com organizações dos EUA por meio do capítulo nacional da ASC, a ACJR, e nem diretamente, mas sim por meio de outros mediadores, principalmente as organizações setoriais regionais ou outras organizações chilenas (ver Gráfico 2).
Gráfico 1 – Trajectórias usadas por organizações mexicanas para entrar em contacto com parceiros nos Estados Unidos
Fonte : Entrevistas com membros das Organizações da Sociedade Civil (ver AnexoI)
39Em parte, essas respostas se explicam porque, no caso da Aliança Chilena por um Comércio Justo e Responsável (ACJR), após um longo e conflitivo debate interno, decidiu-se extinguir a aliança como coalizão de organizações e transformá-la, ainda com o mesmo nome, em uma ONG. Assim, busca-se resolver o problema dos questionamentos sobre a legitimidade dos seus membros para representar um conjunto mais amplo de atores e para fazer a mediação com parceiros em outros países. Como uma ONG formada por um pequeno número de indivíduos e não por um conjunto de organizações com agendas próprias e heterogêneas, o processo decisório interno é naturalmente simplificado, e a autonomia para defender posições é ampliada. No entanto, pelo menos até 2006 a ACJR ainda era o capítulo nacional da Aliança Social Continental. A ausência de um capítulo nacional chileno que seja um espaço amplo de concertação de posições sobre os acordos comerciais apresenta um desafio não-resolvido para a ASC, que pretende ser uma plataforma aberta de formação de consensos.
Gráfico 2 – Trajetórias usadas por organizações chilenas para entrar em contato om parceiros nos Estados Unidos
Fonte: Entrevistas com membros das Organizações da Sociedade Civil (ver Anexo I)
40No caso da Rede Mexicana de Ação frente ao Livre Comércio (RMALC), a possibilidade de seguir o mesmo caminho da ACJR chegou a ser aventada, mas seus membros tomaram a decisão de tentar romper o círculo vicioso da falta de participação e crise de legitimidade reestruturando a organização, buscando democratizar seus mecanismos de tomada de decisão e torná-la mais transparente. Enquanto no México o enfraquecimento da função mediadora da RMALC é causa e consequência da multiplicação de vínculos, no Chile a tendência é que a ACJR seja substituída por outros mediadores, os quais têm uma visão segmentada dos acordos comerciais.
Gráfico 3 – Trajectórias usadas por organizações dos Estados Unidos para entrar em contato com parceiros do México
Fonte: Entrevistas com membros das Organizações da Sociedade Civil (ver Anexo I).
- 25 Por exemplo, durante um período a Alliance for Responsible Trade contratou um “coordenador de base (...)
41Apesar do capítulo nacional da ASC nos Estados Unidos (a ART – Alliance for Responsible Trade) não ter enfrentado uma crise tão forte quanto as enfrentadas pelas coalizões mexicana e chilena, seu papel como mediadora entre o nível nacional e transnacional em matéria de comércio também tem sido questionado. Isso é resultado tanto da criação de vínculos diretos entre organizações, como da insatisfação com o funcionamento da coalizão. Várias organizações da sociedade civil norte-americana reclamam, desde as negociações do TLCAN, que são ignoradas pelas organizações mais poderosas (Grassroots Global Justice, 2005). Em parte, essa é uma questão de disponibilidade de recursos para a participação de organizações locais em eventos que tipicamente são realizados nas capitais.25
42No entanto, por si só a explicação baseada em ausência de recursos não é suficiente. É também – e fundamentalmente – uma questão de relações de poder, de quem tem a capacidade de definir objetivos e estratégias. Um documento produzido pela organização americana Grassroots Global Justice, que reúne várias organizações e movimentos sociais locais, torna isso claro:
“Algumas das nossas críticas são fruto de divergências sobre quem deveria decidir as estratégias e táticas de uma campanha – as organizações baseadas em Washington, que estão contando os votos no Congresso, ou as organizações de base[…]? […]as organizações de base deveriam ter os recursos e o espaço político necessários para então decidir quais são as melhores estratégias e táticas para influenciar os parlamentares. Não é isso que tem acontecido.” (Grassroots Global Justice, 2005)
- 26 Entrevista com Fátima Mello, REBRIP, Rio de Janeiro, março de 2005.
43As organizações da sociedade civil brasileira chegaram mais tarde aos debates sobre acordos de livre comércio do que suas parceiras nos outros três países. O capítulo nacional da ASC, a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP), foi criado somente em 2001.26 Os fundadores da REBRIP tentaram evitar os problemas enfrentados por outras coalizões ao promover uma estrutura com mais canais de participação das organizações da sociedade civil. A criação de grupos de trabalho temáticos tem sido importante para assegurar a participação de alguns dos principais atores. Por exemplo, o GT de Agricultura reúne organizações que normalmente teriam dificuldades em trabalhar juntas (como o MST e a CONTAG, que trabalham com ONGs internacionais como Oxfam e Action Aid). Os membros da REBRIP também têm buscado evitar que as assimetrias de poder e as tensões entre ONGs e movimentos de base gerem tensões irreconciliáveis. Como um participante da CUT explica, não é fácil encontrar equilíbrios sustentáveis:
- 27 Entrevista com um dos participantes da CUT, São Paulo, maio de 2005.
“Há o risco da REBRIP se transformar em uma ONG, dada a força das ONGs, mas depende muito da participação dos movimentos sociais. Por exemplo, se a CUT participar com um perfil baixo, há maior risco de um perfil de ONG; se participar com um perfil muito forte, a aliança implode.”27
44Ainda que o capítulo nacional brasileiro da ASC seja atualmente o mais participativo dos quatro países, não reúne todos os críticos de acordos comerciais no país, e também não funciona como mediador exclusivo entre os níveis nacional e transnacional. Quando perguntados sobre como entrariam em contato com organizações norte-americanas no caso de realização de um evento sobre a ALCA nos Estados Unidos, poucos entrevistados (apenas quatro) responderam que entrariam diretamente em contato com organizações norte-americanas, e seis utilizariam as coalizões domésticas (ver Gráfico 4). No entanto, desses seis apenas dois utilizariam a REBRIP como mediadora exclusiva. Os outros quatro contatariam aliados nos Estados Unidos por meio do capítulo nacional da Campanha contra a ALCA. Resultados parecidos foram obtidos quando a questão se referia a encontrar aliados no Chile ou no México, e sugerem que, como nos demais países, há uma rejeição às coalizões domésticas como mediadores únicos. A diferença é que, no caso do Brasil, há uma maior tendência a que outros caminhos sejam utilizados como complementares, e não como substitutos, do papel mediador das coalizões comerciais.
Gráfico 4 - Trajetórias usadas por organizações do Brasil para entrar em contato com parceiros nos Estados Unidos
Fonte : Entrevistas com membros das Organizações da Sociedade Civil (ver Anexo I).
45Nunca antes da década de 1990 houve condições tão favoráveis para a colaboração entre atores da sociedade civil nas Américas, graças ao fim da Guerra Fria, às transições para a democracia na América Latina e a uma nova agenda de negociações em nível hemisférico. Hoje existe diálogo e colaboração Norte-Sul e Sul-Sul que não teriam sido imagináveis há vinte anos. No entanto, não é possível falar em uma “sociedade civil global”, ou “hemisférica”. A atuação transnacional ainda é restrita a um número relativamente pequeno de organizações, que são as que comparecem a eventos internacionais e controlam boa parte dos contatos com aliados em outros países, dos recursos e do acesso à informação. Além disso, acordos entre atores de diferentes países e setores são difíceis de construir, sendo muitas vezes frágeis frente às várias pressões domésticas e às agendas específicas de cada organização.
46Apesar deste trabalho não apoiar as versões mais otimistas sobre o surgimento de espaços abertos e horizontais de participação da sociedade civil, a pesquisa aponta para algumas tendências importantes e inovadoras. Em primeiro lugar, há um crescimento do número e da variedade dos vínculos entre OSCs, do ponto de vista dos tipos de organizações participantes e também da sua origem geográfica. Não é mais possível fazer análises sobre a criação de coalizões sobre comércio baseadas na polarização entre protecionistas e “livre-cambistas”, com preferências claras e fixas. Essa polarização não reflete a heterogeneidade dos atores que participam dos debates sobre políticas comerciais e nem a sua dinâmica de interação.
47Em segundo lugar, novas formas de organização foram criadas, como a Aliança Social Continental, sustentadas por organizações que variam de ONGs muito pequenas a organizações com milhões de membros, e que buscam dar novas respostas aos velhos problemas de coordenação. A literatura sobre transnacionalismo tem nos ensinado muito sobre campanhas e eventos, mas oferece relativamente poucas pistas sobre como as novas formas organizativas se relacionam com as que já existiam antes. Os esforços de construção de alianças em matéria de comércio mostram como é importante adotar um olhar de mais longo prazo, que nos permita compreender os dilemas e obstáculos enfrentados nos esforços de construção de coalizões transnacionais.
48Pese às diferenças entre os quatro países estudados, há desafios comuns a todos. Uma questão geral, ainda não resolvida, é como garantir a participação de organizações locais, principalmente aquelas com orçamentos limitados. Ainda que esse não tenha sido um problema ignorado pelos participantes, em nenhum dos quatro países foram adotadas boas soluções. Esse é um problema de ação coletiva em geral, mas torna-se ainda mais importante no caso de ação coletiva transnacional. Uma segunda questão tem a ver com o impacto da tendência ao enfraquecimento das coalizões domésticas de comércio como mediadoras entre organizações dos vários países. Essa tendência coloca em cheque toda a estrutura de coordenação e de representação colocada em vigência pela Aliança Social Continental. A variedade de trajetórias utilizadas pelos atores é, ao mesmo tempo, indicador da vitalidade do campo de ação coletiva e evidência da falta de consenso sobre como esse campo deve (ou não) ser institucionalizado.