Debate social e construção do território
Texto integral
1Sente-se cada dia mais activo o debate acerca da posição em que se colocam os profissionais que actuam sobre o território ou, de um modo mais genérico, sobre a organização do espaço em que vivemos. Arquitectos, urbanistas, cientistas sociais e decisores políticos desdobram-se em reflexões acerca da maior ou menor participação das populações nos processos de decisão que levam às transformações das cidades e do território, bem como dos espaços habitacionais de promoção pública. São analisadas, referenciadas e estudadas as práticas políticas e sociais que, na contemporaneidade, mais capacidade possuem para operar enquanto modelo, ou enquanto motivação, de novas circunstâncias em que a dimensão participativa seja preponderante. O jogo permanente de tensões entre a legitimidade da participação como um direito e a institucionalização processual do exercício desse direito, como forma de legitimar decisões unilaterais, também tem sido alvo de reflexões intensas.
2Os arquitectos, em particular, enredados que estão no equilíbrio ante a inviável justificação da “neutralidade técnica” e o aproveitamento de todas as fugas possíveis em direcção à subjectividade “artística”, têm tentado encontrar, num quadro de redescoberta da dimensão social da encomenda, as saídas para os habituais e endémicos impasses que a relação da disciplina com o poder lhes proporciona. Saídas eticamente redentoras, que, por vezes, servem também para exorcizar quotidianos de mecânicas e acríticas respostas ao investimento imobiliário, mas que, diga-se em abono da verdade, advêm de uma proximidade crescente com a realidade social.
3Este volume da Revista Crítica de Ciências Sociais contém um conjunto de reflexões acerca de práticas recentes e procura, em simultâneo, enquadrá-las na experiência histórica. Esse enquadramento, embora centrado na circunstância portuguesa, em particular nos anos que antecederam o fim da ditadura, inscreve-se, na realidade, num arco de preocupações que a arquitectura, enquanto disciplina, foi cultivando ao longo de todo o século XX.
4Assim, a primeira parte do volume tem como objectivo reunir um conjunto de reflexões sobre a assimilação do social no discurso teórico e prático do arquitecto. Perante o desmoronar do projecto moderno e da abordagem mecanicista da arquitectura, o arquitecto explora, através de diversas plataformas, outras formas de intervir no território. A tomada de consciência dos “problemas” da arquitectura resulta de uma aproximação da arquitectura às disciplinas que estudam a relação dos seres humanos com o território, como a sociologia e a antropologia, mas também do agravamento da situação política do país, donde emergem movimentos sociais que envolvem naturalmente os arquitectos individualmente e colectivamente.
5No início da década de 60 são já relevantes os sinais de um “outro debate” no campo da arquitectura: o “I Colóquio sobre problemas do habitat”, com a participação de Chombart de Lauwe, o livro A função social do arquitecto de Octávio Lixa Filgueiras, ou a criação de um centro de estudos da habitação no LNEC por Nuno Portas. A habitação emerge como problema arquitectónico, social e político, tornando-se a bandeira de uma outra forma de fazer arquitectura, de ensinar arquitectura e de defender a arquitectura. Assim, no atelier, na escola e no sindicato os arquitectos tomam consciência da sua capacidade de intervir no “debate social”, procurando os instrumentos para intervir não só na cidade, mas também no território, espaço privilegiado das dinâmicas sociais.
6Se o início da década provoca o aparecimento de sinais de inconformismo, já o seu final irá consolidar a reivindicação como estratégia de actuação, aproveitando o espaço de abertura criado pelo marcelismo. A experimentação sobre a linguagem arquitectónica e o associativismo disseminado por diversos colóquios procuram novos caminhos para o arquitecto e para a arquitectura, como se constatou no Encontro Nacional de Arquitectos (ENA) de Dezembro de 1969. O fim do regime estava à vista, pelo menos para os arquitectos, criando-se as condições instrumentais, metodológicas e ideológicas para uma intervenção social consciente, como a democracia viria a exigir depois do 25 de Abril.
7Os artigos aqui reunidos abordam a actuação dos arquitectos em diferentes palcos de debate, desde o atelier, com as reflexões de Jorge Figueira e de Susana Lobo, à escola de arquitectura, com o artigo de Gonçalo Canto Moniz, até aos colóquios, com os artigos de José António Bandeirinha, João Afonso e Nuno Correia. Por último, Antonio Pizza relaciona o debate em Portugal com o contexto cultural espanhol.
8Se a primeira parte deste volume escolhe o contexto português como âmbito privilegiado para representar debates e transformações que foram marcando no último século a formação dos arquitectos (em direcção a um abandono da figura “heróica” do projectista profissional e de uma maior consciência da necessidade de estabelecer um diálogo directo com a sociedade e os beneficiários dos próprios projectos), a segunda parte propõe ampliar o dito panorama no espaço e no tempo.
9A atenção do leitor é mais dirigida para a contemporaneidade, para o plano da reflexão sobre os manufactos arquitectónicos e, também, para o debate à volta da função do “arquitecto social”. O título da secção – “Governar: reflexões sobre inovação e criatividade participativa na gestão do território” – sugere que o seu objecto principal seja o âmbito dos processos de interacção entre actores que estruturam – em diferentes escalas – o território, entendendo este último (em linha com o pensamento da escola “territorialista italiana”) como um conjunto inseparável de espaços e sociedades, ou seja, de componentes naturais e antrópicas que se territorializam, desterritorializam e reterritorializam continuamente no tempo. O bem visível “fil-rouge” que une os textos desta segunda parte da revista é, portanto, a centralidade do diálogo que as experiências relatadas tentam proporcionar entre habitantes e instituições”. Esse diálogo resulta como elemento fundamental na construção da coerência e dos resultados inovadores das mesmas experiências.
10Assim, essa segunda parte abre com duas reflexões teóricas (os textos de Isabel Guerra e Yves Sintomer) que funcionam como uma “ponte conceptual” para a primeira secção, concentrada na discussão das razões da necessidade de uma abordagem participativa à gestão do território e às políticas públicas numa sociedade cada vez mais complexa e fragmentada, que exige a integração dos diferentes saberes (leigos e especializados, de uso mas também técnicos e políticos) de que administradores e habitantes são portadores.
11Os restantes textos apoiam-se essencialmente em estudos de caso e reflexões sobre diferentes tipologias de processos participativos, pretendendo proporcionar um “alargamento da visão” que segue três eixos diferentes de enriquecimento do debate.
12O primeiro tem a ver com uma mudança de contextos, dado que as contribuições apresentadas ampliam o horizonte dos autores e dos casos apresentados para além da Península Ibérica, incluindo exemplos italianos (como o debate público sobre as auto-estradas em Génova descrito por Luigi Bobbio), bem como ingleses e brasileiros (como alguns dos exemplos utilizados na análise dos orçamentos participativos e das tecnologias de informação e comunicação no ensaio de Giovanni Allegretti, Marisa Matias e Eleonora Schettini Martins Cunha).
13O segundo eixo do alargamento da visão tem a ver com a escala das reflexões, que estende gradualmente o foco do interesse para além dos espaços arquitectónicos especializados (como os “Urban Centers” descritos na inédita colaboração entre a jovem urbanista Viviana Lorenzo e Jeff Bishop, um dos pais do “community planning” inglês) para âmbitos territoriais urbanos ou metropolitanos, até incluir debates sobre normativas nacionais que têm forte impacto sobre os territórios locais (como no caso do Estatuto da Cidade no Brasil, descrito por Leonardo Avritzer).
14Um terceiro eixo diz respeito aos objectos de interesse das análises propostas, que não se limitam apenas aos espaços planeados ou projectados formalmente, mas inclui também uma série de actos informais e relações espúrias que estruturam concretamente porções dos territórios urbanos, desencadeando acções “sólidas” de territorialização, embora fora dos padrões e patamares legais requeridos pelas normativas e pelos poderes públicos.
15Esta última linha de interesse é para nós extremamente importante num mundo que, conforme indicado pelo último Relatório da ONU “State of the World Cities” (comentado na secção dedicada aos livros), se identifica cada vez mais com a sua componente de urbanidade, que oferece o habitat quotidiano para mais do 50% dos seus habitantes. De facto, temos que reconhecer que, se o crescimento dos territórios urbanos se dá frequentemente fora dos processos formais que os vários países prevêem para o planeamento da transformação e do crescimento dos assentamentos, esta forma de estruturação autoproduzida das cidades abre a porta a interessantes percursos de interacção criativa entre o espontaneísmo e a necessidade de os poderes públicos intervirem com acções de reorganização e regularização físico-funcional para optimizar os seus efeitos positivos e limitar ou reverter os seus impactos negativos sobre o desenvolvimento da cidade como um todo.
16O objectivo de abrir um espaço específico de reflexão capaz de “reconhecer” algumas modalidades heterodoxas de construção das políticas públicas (a partir daquelas que deveriam ter em vista a resolução do problema do direito a uma habitação digna para todos) toma forma através do texto de Isabel Raposo e Ana Valente (a partir da lei nacional portuguesa sobre Área Urbanas de Génese Ilegal), a que se segue – na terceira secção de estudos de caso internacionais – o artigo de Carlo Cellamare e Antonella Perin sobre o experimentalismo municipal na regularização da cidade informal em Roma. As duas propostas representam importantes contributos para uma temática muitas vezes “silenciada” (especialmente quando não afecta apenas contextos periféricos ou do Sul global) e são completadas pelos testemunhos de experiências de transformação urbana que retomam temáticas afins dentro do contexto da cidade de Porto Alegre. De facto, as ambiguidades da fase que actualmente atravessa a cidade que ainda continua a ser o símbolo mundial de uma gestão participativa do território emergem de forma clara na descrição do caso do Plano Integrado da Lomba do Pinheiro, apresentado pelas próprias coordenadoras Cleia Beatriz Oliveira e Andrea Oberrather.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
José António Bandeirinha, Giovanni Allegretti e Gonçalo Canto Moniz, «Debate social e construção do território», Revista Crítica de Ciências Sociais, 91 | 2010, 5-8.
Referência eletrónica
José António Bandeirinha, Giovanni Allegretti e Gonçalo Canto Moniz, «Debate social e construção do território», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 91 | 2010, publicado a 16 outubro 2012, consultado a 13 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1813; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1813
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