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Recensões

Um enfrentamento à opacidade do mundo

Roger Andrade Dutra
p. 119-122
Referência(s):

Martins, Hermínio (2011), Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana. Lisboa: Relógio d’Água, 448 pp.

Texto integral

1A publicação de Experimentum Humanum, de Hermínio Martins, representa um desafio às lógicas da opacidade do mundo e da inevitabilidade do progresso tecnocientífico. Se os tecnólatras poderão dar-se à comodidade de o ignorar, o mesmo não se poderá dizer do campo dos críticos da contemporaneidade.

2O livro é composto por nove capítulos, em três subseções: “Pensar a técnica: questões preliminares”, “Do trágico tecnológico” e “Passagem para o pós-humano”. Aqueles habituados à prosa de Hermínio Martins, reencontrarão a diversidade temática e exames nunca superficiais. Schopenhauer dizia, a propósito de Espinosa e Hegel, que os textos obscuros repercutem a obscuridade das ideias de seu autor. Sem dúvida, não é o caso dos ensaios de Martins, em que capacidade de síntese e elegância textual mostram-se em parágrafos intelectualmente vertiginosos. O primeiro leitor constatará seu conhecimento enciclopédico da literatura em humanidades: vai de Plotino, Teofrasto e Aristóteles até Comte, Marx, Keynes, Popper ou Lovelock. Em Martins, a erudição não é exibicionista, ela não serve o erudito mas, sim, o pensamento crítico.

3Frequentemente, o mundo nos parece inapreensível, opaco. Mas isso é porque confundimos complexidade com incognoscibilidade. E, segundo o Experimentum Humanum, a contrapartida de nossa explosão de conhecimento é uma “produção lateral concomitante de desconhecimento, ignorância ou nesciência” (Martins, 2011: 160). Se algo decorreu do relativismo e do individualismo metodológico foi o húbris da opinião, a consagração do direito de dogmatizar: o mundo é opacificado também porque indivíduos exilados tornam-se refratários à controvérsia. E como produzir conhecimento assim? A resposta é, antes de tudo, uma predisposição moral: a crença de que conhecer é sempre possível. Um ethos cartesiano radicado na dúvida metódica é o centro irradiador do Experimentum Humanum: enfrentar a opacidade do mundo adotando a controvérsia metodológica.

4Os temas se sucedem, se interpenetram, sem que o autor fuja às suas implicações. Por que deveríamos, pergunta, com respeito aos processos tecnocientíficos, alicerçar o Princípio da Precaução em uma lógica das incertezas e não na lógica do risco? Ora, porque esta baseia suas posições de precaução em cálculos probabilísticos. Já a lógica da incerteza ancora-se no reconhecimento de que diversos processos tecnocientíficos de larga escala, se escaparem ao seu curso esperado de funcionamento, serão incontroláveis. De acordo com Martins, o que causa perplexidade, face ao apelo à segurança “comprovada” pelo cálculo de probabilidades é, sobretudo, o próprio ineditismo dos sistemas tecnocientíficos omniabrangentes. Como construir séries estatísticas para situações sempre novas? Será uma probabilística do evento único? Como não há garantia de que nós humanos gozamos de privilégio cósmico, de que o Universo dependa de nossa existência para que ele próprio subsista, submeter-se voluntariamente a esta exceção não tem nada de racional (Martins, 2011: 218-9).

5É curioso ver pensadores vinculados às humanidades recorrendo à estatística. Comte, no século xix, já denunciava o uso indiscriminado das matemáticas. Os objetos das humanidades são singulares; não cabia à época de Comte, continua descabido, trocar o exame exaustivo por cadeias lineares regressivas ou causais. Atualmente, pouco a pouco, o algoritmo arranca às matemáticas o privilégio de ser tido simultaneamente como modo de existência da ordem subjacente e sua chave explicativa. É a rendição à “palavra de ordem da metafísica informacionalista” (Martins, 2011: 317) que pontifica que “ser é ser computacional” (Martins, 2011: 316-7) ou que, recordando Quine, “to be is to be the value of a variable” (apud Martins, 2011: 317). Nela, os fluxos tomam o lugar que já foi das quantidades mensuráveis; toda contingência é algorítmica e todos mal passamos de arranjos de fluxos informacionais. Não há singularidade, só formas diferentes de organização. A metafísica informacionalista nos reduz a amontoados biológicos contingentes (Martins, 2011: 319), acidentais, não-necessários.

6Em “Tecnociência e Arte” são discutidas as relações entre cientistas e artistas modernistas. Teria havido, na passagem do século xix ao xx, uma disputa pelo poder espiritual e pelo poder secular, um litígio pelo direito de ser porta-voz da metafísica da modernidade. Comparando os ciberartistas aos modernistas, Martins conclui que, diferentemente destes, que

atacaram, directa ou indirectamente, a ambição da ciência e da tecnologia ao domínio do mundo”, [...] o traço mais notável do movimento da ciberarte e dos seus manifestos é o seu caráter acrítico. Enquanto Rimbaud e os surrealistas proclamavam a necessidade de “changer la vie”, o mote dos ciberideólogos, na arte ou não, pode bem ser: “abolir l’humain”. (Martins, 2011: 163-4)

7Um diagnóstico semelhante é feito a respeito da bioética. Segundo Martins,

a bioética tornar-se-á uma mera tecno-ética conformista se os bioeticistas não assumirem posições de crítica fundamental tanto das propostas como das práticas biotecnológicas já estabelecidas [...] De que tipo de ética se trata, quando o normativo coincide tanto com o factual? (Martins, 2011: 300)

8Se surge a possibilidade de atualizar, de fazer coincidir o simbólico e o factível, é aí que a necessidade do autocontrole se impõe. Se Martins tem razão ao apontar que, face à assunção do “Princípio de Plenitude Tecnológica: [pelo qual] tudo o que é tecnologicamente possível, será realizado, se ainda não o foi” (Martins, 2011: 294), uma bioética que se satisfaça em ritualizar, ao invés de normatizar, ainda precisa mostrar sua serventia. Como uma bioética sancionadora enfrentará a nova eugenia? Chegará o tempo em que talvez precisemos postular “uma vontade global de permanecer uma espécie”? (Martins, 2011: 420).

9A nova eugenia, viável ou não, já determina comportamentos. É similar ao ocorrido nas sociedades de socialismo real: tudo se passou como se elas fossem fiéis ao socialismo idealizado. A microeugenia de mercado é também um como se, um trágico como se. Se tecnicamente possível, espera que o mercado gere um equilíbrio genético; se não for tecnicamente viável, ou se não o for em sua totalidade, ainda modifica importantes categorias sociais, porque mantém legítima a assimetria distributiva que todo padrão referencial introduz em contextos de diversidade. Em um momento decisivo, quando muitos na Europa parecem facilmente prontos a desembarcar de seu projeto multiculturalista, não deixa de ser preocupante que o delírio tecnocientífico neoeugênico espreite as consciências, prometendo perfeição como compensação à escassez da tolerância. Daí, estipular a urgência de que

o Prometeanismo Iluminista precisa de ser corrigido e reformado porque se confunde cada vez mais, na prática, paradoxalmente, com o Faustianismo anti-Iluminista. (Martins, 2011: 322)

10Em certa altura, a propósito dos impactos ambientais provocados pelas tecnociências, Hermínio recorda “a incidência da acrasia ou a ‘fraqueza da vontade’, tema da psicologia moral aristotélica” (Martins, 2011: 223) que tipifica nossas condutas. Agimos conscientes de sua hostilidade à integridade ambiental. A conduta acrática é a do consumidor, com sua racionalidade idiotes, utilitarista, que, em busca do baixo preço, remete todo o ônus ao futuro.

11A relação temporal entre a mercadoria e a produção de conhecimento é ditada pela dilação da propriedade mercantil sobre a propriedade epistêmica: Hermínio relembra Popper, que via as sociedades do socialismo real como obstáculos à produção de conhecimento científico, não apenas porque ideologizavam teorias, mas também porque ao acelerarem a concretização de resultados tecnológicos (Martins, 2011: 216) sacrificavam o tempo da acumulação da experiência. É irônico que o que seria uma filosofia da tecnologia antecipada contivesse algo similar ao Princípio da Precaução, uma ética para a era tecnocientífica.

12Em uma passagem não menos do que brilhante, Martins denomina hodiocentrismo (Martins, 2011: 114) o presente dilatado, extenso. As três grandes categorias da nossa época, o tempo, a energia e a informação, relacionam-se em um sistema de trade-offs no qual a intensificação de qualquer uma só pode ocorrer às expensas das demais. Por isso, nossa sensação de escassez do tempo. Inelástico, ele parece menos disponível porque é o insumo de sociedades geradoras de excedentes informacionais e exponencialmente energívoras (Martins, 2011: 288). Donde uma de nossas utopias contemporâneas ser tektópica, a ânsia por “um regime ideal de energia dotado de fontes de energia efectivamente infinitas, baratas, fiáveis e seguras, destituídas de efeitos secundários ambientais intratáveis, indesejados e imprevistos” (Martins, 2011: 47-8). O poder explicativo desta passagem é imensurável. Convido o leitor a imaginar compensações baseadas na comutabilidade proposta: consuma menos energia, em qualquer forma, menos petróleo, menos eletricidade; ou consuma menos informação, desligue seu telemóvel, reduzindo informação e energia. Então, responda: não terá tido a sensação de ter ganhado mais tempo?

13É um problema de primeira ordem determinar se a ambição tecnocientífica pela universalidade é contingente ou se, por outro lado, é ideológica, resultando de sua maneira própria de categorizar os elementos por meio dos quais percebemos o mundo. Analogamente, é similar àquele do ensino da historiografia em sistemas políticos totalitários: variava da negação simples de qualquer coisa digna de ser conhecida antes dos eventos que teriam levado à existência daquele específico estado de coisas, até uma mais sofisticada reformatação de todo o passado, fazendo do presente uma inevitabilidade. Este tipo de abordagem do passado só é eficaz a médio prazo porque, no limite, toda negação do passado é impotente ao fato de que novas memórias acabam sempre elaboradas. Resulta que um sistema como esse só sobrevive por meio de uma contínua negação do passado e da supervalorização do presente como única experiência válida, do presente como sendo simultânea, e paradoxalmente, o ponto alcançável mais alto ou longínquo e onde, mesmo assim, não é moralmente permitido parar ou descansar. Também a metafísica tecnocientífica reclama inevitabilidade, na medida em que o conhecimento construído mostra-se como obedecendo a uma única sequência lógica. Acima de tudo, só ele manteria a relação de mutualidade excludente com as suas alternativas. O que, ao fim e ao cabo, exige a negação de toda contingência. Mas a dialética da existência corresponde a duas realidades contraditórias, mas solidárias e em devir: a contingência histórica produz-se pari passu à relativa estabilidade e durabilidade, à incontingência transitória da realidade vital. É esta dialética que o experimentum humanum – biotecnológico, eugênico, ambiental, informacional, etc. – quer abolir e é contra isso que o Experimentum Humanum de Hermínio Martins emerge como um de seus mais consistentes desafiantes.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Roger Andrade Dutra, «Um enfrentamento à opacidade do mundo»Revista Crítica de Ciências Sociais, 94 | 2011, 119-122.

Referência eletrónica

Roger Andrade Dutra, «Um enfrentamento à opacidade do mundo»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 94 | 2011, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 06 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1582; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1582

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Autor

Roger Andrade Dutra

Tem mestrado e doutoramento em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) (Brasil), onde lecciona Filosofia da Tecnologia e Fundamentos da Educação. É colaborador do Mestrado em Educação Tecnológica do CEFET-MG; investigador do Centro de Convergência de Novas Mídias da Universidade Federal de Minas Gerais, do Programa de Estudos em Engenharia, Sociedade e Tecnologia e do Núcleo de Estudos em Memória, História e Espaço, ambos do CEFET-MG.
mobilitas@gmail.com

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