Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas
Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas. Lisboa: Edições Colibri, 2004, 122 pp. (com prefácio de André Lepecki)
Texto integral
1O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas, de autoria de Ana Pais, é um texto sobre a natureza e configurações (históricas e actuais) da dramaturgia e da figura do dramaturgista. Surge com base na tese apresentada pela autora no âmbito do Mestrado em Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa, em 2002, tendo sido objecto de diversas alterações, sobretudo na sua segunda parte. A razão de ser do título da obra aqui recenseada torna-se bem evidente. É que, para a autora, a dramaturgia pode ser entendida como discurso da cumplicidade, ou seja, “relações de sentido que se estabelecem no tempo dan-do a ver o espectáculo no espaço” (p. 87).
2Ana Pais nasceu em 1974 e é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Lisboa. Exerceu funções de crítica de teatro nos jornais Público e Expresso, sendo igualmente oradora em di-versos encontros sobre artes performativas.
3O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas é um ensaio de cariz teórico onde se cruzam referências e ideias oriundas não só do campo dos estudos de teatro, mas também de outras áreas, como sejam, os estudos culturais, a estética e as ciências sociais. Para além disso, são apresentadas e analisadas diversas afirmações resultantes de entrevistas a dramaturgistas realizadas em 2000.
4Este livro consegue de forma notável conferir à noção de dramaturgia:
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visibilidade e autonomia própria – com efeito, as reflexões e estudos sobre a realidade teatral têm privilegiado tradicionalmente as questões do ofício do actor e do encenador ou do papel do texto, por exemplo, ficando as práticas do dramaturgista numa região de subentendidos, de menor saliência, ou de dependência. Ana Pais diz-nos mesmo que “[a] dramaturgia é uma espécie de enclave ambíguo entre a encenação e o texto” (p. 15) e que “[r]aras vezes é alvo de um estudo autónomo” (p. 15);
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uma cartografia historicamente informada e atenta às práticas concretas dos dramaturgistas – a noção de dramaturgia tem-se prestado, ao longo dos tempos, a diversos significados e interpretações, o que provoca por vezes dificuldade na sua utilização. Trata-se daquilo a que a autora chama “conceito-hidra” (p. 21 ss.), apropriado de formas distintas e suscitando equívocos e ambiguidades. Num esforço de clarificação, precisão e avanço analítico, a autora propõe ao leitor, na primeira parte da obra, um passo inicial para sair deste conjunto polissémico rico mas ao mesmo tempo emaranhado. É um passo que pode ser definido como histórico-pragmático, ou seja, traça-se um percurso onde se vê aquilo que, em diferentes épocas históricas, se fazia quando se fazia trabalho dramatúrgico;
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um entendimento amplo e actualizado – Ana Pais dá um segundo passo reflexivo indo directamente à dimensão ontológica da dramaturgia, o que lhe permite assumir esta última como “modo de estruturar os sentidos do espectáculo” (p. 74). Não querendo com isto esgotar as possibilidades de entendimento do universo dramatúrgico, a autora abre o caminho para uma abordagem que não reduz a dramaturgia nem ao trabalho de passar o texto para a cena nem ao trabalho de interpretação ou encenação (coreografia) do espectáculo. Com efeito, luz, som, movimento, cor são também portadores de significado e o entretecer das relações entre si e com outros intervenientes cénicos é igualmente objecto de atenção dramatúrgica. Deste modo, torna-se lógico que o livro em causa, centrado especialmente na actividade teatral, se prolongue em considerações que tocam a performance em geral ou a dança em particular;
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um enquadramento teórico coerente e sedutor enraizado na ideia de cumplicidade – Ana Pais avança ainda mais no seu estudo, dando um terceiro passo, o mais inovador e ambicioso na tarefa de abordar o universo dramatúrgico. Apresenta uma conceptualização muito própria, entendendo que a dramaturgia se enraíza em três eixos estruturadores da cumplicidade. Deste modo, a autora prossegue o seu trabalho de reflexão sobre uma prática que é invisível mas indissociável do espectáculo. É, no fundo, então, “o outro lado do espectáculo” (p. 71 ss.); se este último é, por natureza, visível, a dramaturgia é-lhe co-substancial, tal como acontece entre o côncavo e o convexo (por exemplo, p. 74).
5Chegados aqui, convém referir com mais detalhe o que se pode encontrar nas duas partes centrais que constituem O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas. Referi já que, na primeira parte, a autora procede a um mapeamento de natureza histórica do conceito de dramaturgia. Para isso, detém-se em diversos momentos que se assumiram como tempos de mudança e reconfiguração no uni-verso dramatúrgico (um quadro sinóptico das “acepções do conceito de dramaturgia” encontra-se na p. 66). Parte-se de Aristóteles para referir a dramaturgia como composição dramática e a importância do dramaturgo como criador de textos de ca-riz dramático. Outro dos momentos marcantes situa-se no século XVIII, através de Lessing (“a tradição alemã”), passando a tornar-se saliente uma dramaturgia institucional implicada numa função didáctica e na selecção de textos dramáticos capazes de constituir um reportório. Já no século XX, nos anos 30-50, e tendo em conta mais especificamente o trabalho de Bertolt Brecht, assistimos à manifestação de uma dramaturgia do espectáculo – ou seja, “aquela que, determinada pelas contingências de cada produção e pelas funções estabelecidas no seu interior, está relacionada com a figura do dramaturgista” (p. 26) –, de autor e da leitura – ou seja, “modo de estruturar o espectáculo a partir de um elemento apriorístico” (p. 66). Desde os anos 60-70 do século passado e pensando na performance nos EUA e na Europa, a dramaturgia evidencia-se como prática que cria e estabelece de forma estruturada os sentidos das criações artísticas. Mais recentemente, anos 80-90, no contexto de diversos tipos de performance (nomeadamente em países, a este título, paradigmáticos, como sejam a Holanda e a Bélgica), ganhou todo o sentido falar-se igualmente de dramaturgia do olhar, isto é, uma noção “útil para compreender um modo de construção do espectáculo pós-moderno, que privilegia uma estruturação de materiais, adquirindo forma e sentido durante o processo, através das transformações às quais esse processo de criação se abre, sendo constitutivamente uma asserção temporária” (p. 49). Este conceito abriga outros dois: a dramaturgia do espaço e a dramaturgia do espectador, ou seja, modos de entretecer os sentidos do espectáculo sendo o espaço e a maneira como o espectador desfruta da performance peças-chave neste processo. A acompanhar este mapeamento do território constituído pela dramaturgia, a autora revela uma preocupação, já anteriormente aqui mencionada, em nos fornecer indicações muito concretas daquilo que se faz quando se faz um trabalho dramatúrgico. Tal pode ver-se pela descrição das actividades dos dramaturgistas no quadro sinóptico atrás referido, mas com maior detalhe, obviamente, nas considerações que o antecedem – por exemplo, veja-se a enumeração das funções actuais de quem se encarrega do trabalho de uma dramaturgia institucional (p. 25 e 26) bem como a explicitação das práticas concretas do dramaturgista na contemporaneidade (p. 27 e 28).
6Na segunda parte do livro, Ana Pais pro-põe-nos uma abordagem da dramaturgia centrada especificamente na ideia de que esta última se constitui como discurso da cumplicidade. “Articulando materiais e estruturando o sentido do espectáculo, a dramaturgia estabelece cumplicidades entre o visível e o invisível, entre a concepção e a concretização do espectáculo, fazendo do público seu cúmplice no discurso.” (p. 75 e 76). Inspirando-se numa análise etimológica da palavra cumplicidade, a autora vai definir e explicar as três dimensões em que a dramaturgia pode ser teorizada:
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implícito (p. 77-82) – esta qualidade das relações cúmplices manifesta-se dada a invisibilidade da dramaturgia; esta última, como se viu atrás, estrutura sentidos (elementos invisíveis) que tornam possível a presença visível do espectáculo e que participam assim neste último. “As opções que materializam o espectáculo no plano do visível são dobradas por relações invisíveis que as integram.” (p. 78). Este facto não anula a autonomia da dramaturgia nem a sua condição ontológica específica. A estruturação dramatúrgica implica escolhas; há sentidos e materiais com significado que são seleccionados e relacionados entre si e outros em que tal não acontece. “Destas escolhas advém a cumplicidade que a dramaturgia estabelece no seu discurso, ou seja, de forma implícita os materiais relacionam-se, pregueiam implicações que cabe ao espectador desvelar e à dramaturgia fundamentar.” (p. 78 e 79).
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pacto criminoso (p. 82-90) – esta qualidade das relações cúmplices revela-se na medida em que a dramaturgia transgride o regime da visibilidade com o seu entretecer, mais periférico, de relações de sentido. “O visível é a lei cuja ordem definidora e legitimadora do espectáculo como aquilo que se vê a dramaturgia desafia. No teatro, a reescrita dos clássicos – encenações que revêem o texto, evidenciando nele uma perspectiva diferente – é talvez o exemplo mais declarado de acções criminosas, pois reflectem leituras feitas a partir da periferia do texto canónico.” (p. 83). A dramaturgia aparece como um território fronteiriço onde surgem o inconformismo, a mudança, a contestação e a resistência; além disso, este seu estatuto revela-se igualmente na sua qualidade de zona de contactos e trocas, de cruzamentos e passagens. Na construção dos objectos artísticos, o dramaturgista “actua como um agente secreto, minando o processo (com interrogações, textos, imagens, filmes, etc.) e ajudando à transformação dos materiais do espectáculo através da promoção de relações de cumplicidade possíveis.” (p. 90);
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acção comum (p. 90-94) – esta qualidade das relações cúmplices traduz-se no facto de a dramaturgia se inserir como parte indissociável do espectáculo, este último entendido enquanto manifestação de uma arte colectiva e enquanto objecto que resulta da cooperação e ajuste de diferentes agentes dotados de saberes e fazeres específicos. A dramaturgia, como estruturação de sentidos, regula e promove, à sua maneira, uma lógica de participação, portanto (relativamente quer à construção, quer à apresentação desse mesmo espectáculo). Nesta acção comum, o público tem um papel significativo. “[O] espectador participa das condições ontológicas necessárias para a realização do acto performativo, modificando-o pela leitura individual que dele constrói, permanecendo em si através da memória. Também ao nível da recepção, a cumplicidade, na acepção de acção comum, é um factor central.” (p. 93).
7No último ponto da segunda parte do livro aqui em análise, e aproveitando os elementos teóricos propostos, Ana Pais discute de que forma o teatro e a dramaturgia aparecem e podem aparecer como metáforas e como invasões terminológicas em territórios não artísticos, metáforas e invasões à luz das quais o mundo se abre à nossa inteligibilidade e se constitui.
8Fazendo, agora, uma análise mais geral, considero que o livro de Ana Pais é sólido e denso do ponto de vista teórico. Grande parte dos seus méritos foram já referidos anteriormente, quando discuti a maneira como a autora nos oferece quer uma análise histórica quer uma proposta teórica da dramaturgia capazes de esbater o nevoeiro de ambiguidades e confusões que essa prática e discurso artísticos muitas vezes suscitam quando os tentamos definir. Gostaria, no entanto, de deixar também dois pontos referentes a um potencial de reflexão que o livro, em meu entender, talvez pudesse ter explorado de forma mais aprofundada.
9Em primeiro lugar, penso que a obra em análise teria a ganhar se fosse mais repleta de exemplos concretos – referentes a espectáculos de teatro ou dança – que acompanhassem os elementos teóricos propostos aquando da apresentação da teoria da cumplicidade. Não falo de exemplos “ilustrativos” que servissem para facilitar a leitura, pois a autora é muito clara, coerente e estruturada na apresentação das suas ideias. Falo, sim, de exemplos que prolongassem a reflexão e que servissem como pequenos “ensaios” de aplicação das suas pistas teóricas, pois, dada a riqueza e carácter sedutor destas últimas, estabelecer-se-ia talvez uma relação ainda mais cúmplice com o leitor e reforçar-se-ia a validade do livro como instrumento de trabalho para pesquisas com carácter empírico. Por outro lado, dada a sustentabilidade e inovação das hipóteses e contributos apresentados, o leitor, espicaçado na sua reflexão, não deixa de se interrogar sobre o outro lado da cumplicidade. Se a dramaturgia é um discurso cuja lógica é a de estruturar sentidos construindo relações de cumplicidade entre artistas, público e materiais cénicos, o que é que neste jogo fica de fora? O que é que é excluído e fica no exterior do pacto constituído pela construção e representação teatrais? Que implicações políticas têm essas não-escolhas poéticas? Dou um exemplo breve. Várias das performances contemporâneas traduzem-se em criações artísticas que se apresentam em lugares não convencionais da cidade e promovem um diálogo com esse meio urbano, suas histórias, espaços e cidadãos. Quando se escolhem determinados elementos para estas criações (e podem ser materiais tão diversos como testemunhos e histórias de habitantes como sons e imagens dessas mesmas áreas), qual o significado em termos políticos, ou seja, de relação com a cidadania e com a comunidade, que se está a promover? Que públicos se acaba por atrair e que públicos se acaba por afastar? Que estatuto, dignidade e significado adquirem as memórias, sons, imagens e os habitantes da cidade quando deles se fala ou quando deles não se fala? Penso que estas interrogações têm também uma relação muito directa com o trabalho de dramaturgista e, incentivados pela leitura de O discurso da cumplicidade, somos tentados a querer ver respostas para elas à luz das qualidades dramatúrgicas enunciadas por Ana Pais. De qualquer modo, tais qualidades são também um ponto de partida muito válido para se desenvolver o trabalho de reflexão e análise da dramaturgia encarada na sua dimensão mais sócio-política.
10Estes dois comentários anteriores não invalidam, no entanto, de qualquer forma, a consideração de que estamos na presença de um livro muito estimulante e que abre pistas de grande valor heurístico para a abordagem das práticas dramatúrgicas na actualidade, quer no âmbito dos estudos de teatro quer noutros domínios como a sociologia e a antropologia da arte.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
André Brito Correia, «Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas», Revista Crítica de Ciências Sociais, 69 | 2004, 164-168.
Referência eletrónica
André Brito Correia, «Pais, Ana, O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 69 | 2004, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 13 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1358; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1358
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