Torres, Anália Cardoso (org.), Francisco Vieira da Silva, Teresa Líbano Monteiro, Miguel Cabrita, Homens e mulheres entre família e trabalho
Torres, Anália Cardoso (org.), Francisco Vieira da Silva, Teresa Líbano Monteiro, Miguel Cabrita, Homens e mulheres entre família e trabalho. Lisboa: DEEP, 2004, 257 pp.
Texto integral
1Homens e mulheres entre família e trabalho é um trabalho coordenado por Anália Cardoso Torres, uma autora que é uma importante referência no âmbito dos estudos sobre a família, e em particular sobre a conjugalidade. Esta obra, cuja base empírica mais importante é um inquérito por questionário aplicado em 1999, procura analisar as diferentes dimensões da divisão sexual e familiar do trabalho pago e não pago, abrindo caminho à melhor compreensão das práticas que neste plano têm lugar no território nacional.
2O estudo desdobra-se em seis capítulos. Algumas questões teóricas, nomeadamente as alusivas à problemática dos efeitos das orientações gerais do Estado e das políticas sociais na divisão do trabalho entre mulheres e homens, são exploradas ao longo do primeiro capítulo. O/a leitor/a é convidado/a a reflectir sobre os diferentes regimes de Estados-Providência e a forma como eles se posicionam perante as questões da diferença sexual e a articulação entre o trabalho pago e não pago. Retomando uma tipologia de Estados-Providência fundamentada na caracterização das soluções socioeducativas e do tipo de equipamentos de apoio à primeira e segunda infância existentes nos diferentes países e na identificação das posições de homens e mulheres perante o trabalho profissional, o Estado-Providência português é enquadrado no modelo deficitário, correspondente ao grupo dos países da Europa do Sul, que se caracteriza por ser “deficitário e desigual quanto ao nível de investimentos públicos e ao grau de cobertura que o estado oferece” (p. 21). A especificidade do quadro português, marcado pela elevada taxa de actividade feminina, em combinação com o carácter incompleto do Estado-Providência, reflecte-se na escassez dos instrumentos de política social no que toca às questões da igualdade sexual e de apoio à conciliação das esferas familiar e profissional. Os/as autores/as defendem que só uma orientação para um modelo de Estado-Providência alargado – característico dos países nórdicos, Bélgica e França – pode criar condições para a igualdade entre mulheres e homens e para a conciliação do trabalho pago e não pago. Ainda que a análise em torno das configurações de Estado-Providência proposta neste texto tenha um âmbito mais específico, ela vem corroborar ideias já avançadas na década de 90 por autores/as como Virgínia Ferreira, Boaventura de Sousa Santos, Sílvia Portugal e Pedro Hespanha, nomeadamente no que respeita ao défice de actuação do Estado português enquanto Estado-Providência. Maurizio Ferrera viria a chamar a este tipo de Estado-Providência o modelo meridional ou mediterrânico, no qual inclui Portugal, Espanha, Itália e Grécia.
3No segundo e terceiro capítulos, analisa-se, a partir dos resultados do inquérito, uma série de dados globais que permitem avaliar os recursos e as condições de vida da população estudada e são exploradas informações relativas à condição perante o trabalho e inserção profissional de mulheres e homens inquiridas/os. Muitos dos resultados expostos ao longo destes capítulos vêm reforçar ideias que estudos anteriores têm evidenciado, pondo a claro as diferenças entre mulheres e homens, nomeadamente no respeitante aos rendimentos pessoais (ficando as primeiras em enorme desvantagem) e à estrutura do emprego.
4No quarto capítulo, a atenção dos/as au-tores/as centra-se nas soluções relativas aos equipamentos socioeducativos e à guarda das crianças encontradas pelas/os inquiridas/os, nas suas redes familiares e intergeracionais, assim como no apoio aos idosos. Desde logo, alerta-se para a situação preocupante das crianças, dadas as insuficientes taxas de cobertura de equipamentos de apoio à infância que se conjugam com altas percentagens de actividade feminina a tempo inteiro. Em relação às redes de inter-ajuda, verifica-se, por um lado, que são as mulheres quem mais protagoniza ajudas e apoios aos familiares e, por outro lado, que são as pessoas com mais baixos rendimentos, que em princípio mais necessitariam destes apoios, as que a eles menos recorrem ou podem recorrer. Finalmente, no que se refere aos cuidados com idosos dependentes, as/os autoras/es contrariam claramente as ideias que tendem a apontar a família como omissa neste domínio, já que constatam que é fundamentalmente com os apoios da família que estes idosos podem contar, sendo poucos aqueles que estão em lares. De resto, estes resultados vêm reforçar os já obtidos em pesquisas anteriores. Por exemplo, Pedro Hespanha e Sílvia Portugal, num estudo realizado sobre as transformações e a regressão da família-providência, mostraram claramente que, para ser membro de uma rede de inter-ajuda, é necessário possuir os meios necessários – isto é, ter alguma coisa para trocar.
5A articulação do trabalho pago e não pago é tratada no quinto capítulo. A análise desenvolvida dá conta da inequívoca assimetria de posições de mulheres e de homens na divisão do trabalho pago e não pago. Mesmo trabalhando no exterior aproximadamente o mesmo número de horas do que os homens, as mulheres realizam a quase totalidade do trabalho não remunerado. As/os autoras/es procuram explicar esta assimetria em desfavor das mulheres, reportando-se não só a algumas especificidades da sociedade portuguesa, mas também a mecanismos globais que condicionam a divisão do trabalho entre homens e mulheres, especificamente a grande concentração de mulheres em sec-tores profissionais mal pagos e pouco qualificados. É que estes constrangimentos de ordem externa acabam por se constituir numa fonte de legitimação da divisão assimétrica do trabalho não pago no seio da relação conjugal, na medida em que resultam na sobrevalorização do vencimento do cônjuge masculino enquanto principal fonte de subsistência do agregado familiar e na consequente desvalorização do trabalho das mulheres. Por outro lado, e ao contrário do que seria de esperar, constata-se que a excessiva sobrecarga de trabalho das mulheres não encontra expressão nem na declaração de injustiça nem na declaração de conflitos.
6Depois de uma análise das práticas no tocante à divisão do trabalho pago e não pago entre mulheres e homens, no sexto e último capítulo a análise centra-se nos valores, representações e atitudes dos/as inquiridos/as em torno destas questões. Percebe-se, desde logo, a existência de uma descontinuidade entre as práticas efectivas de divisão do trabalho e as representações que sobre elas são transmitidas, dada a significativa adesão a “valores modernos” de aceitação das ideias de paridade, igualdade e simetria entre homens e mulheres (p. 172). No entanto, a adesão à participação e à simetria esbarra numa visão “tradicionalista” da relação dos homens entre trabalho e vida familiar: os homens devem participar no mundo doméstico, mas devem privilegiar o trabalho. De acordo com os/as autores/as, é precisamente aqui que o plano dos valores se ancora nas práticas observadas, uma vez que as reservas colocadas nestas questões se concretizam nas assimetrias observáveis nos padrões de divisão do trabalho.
7O livro termina com uma síntese dos aspectos mais marcantes sobre a situação portuguesa no que respeita à divisão sexual e familiar do trabalho pago e não pago suscitados ao longo da pesquisa. Os/as autores/as rematam advogando a possibilidade de as políticas de igualdade entre mulheres e homens permitirem uma repartição mais equilibrada entre trabalho e família pela articulação de três tipos de direitos: “os direitos das mulheres ao trabalho e à família, os direitos dos homens ao trabalho e à família e os direitos das crianças como responsabilidade que deve implicar os pais e toda a sociedade” (p. 185).
8Escrita de uma forma clara e de leitura acessível, esta obra constitui-se, pelo seu carácter abrangente e sistemático, numa base relevante para o conhecimento e debate em torno das práticas representações relativas à divisão do trabalho pago e não pago entre mulheres e homens.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Mónica Lopes, «Torres, Anália Cardoso (org.), Francisco Vieira da Silva, Teresa Líbano Monteiro, Miguel Cabrita, Homens e mulheres entre família e trabalho», Revista Crítica de Ciências Sociais, 69 | 2004, 161-164.
Referência eletrónica
Mónica Lopes, «Torres, Anália Cardoso (org.), Francisco Vieira da Silva, Teresa Líbano Monteiro, Miguel Cabrita, Homens e mulheres entre família e trabalho», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 69 | 2004, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 10 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1351; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1351
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