1Em Vozes Insubmissas, Isabel do Carmo e Lígia Amâncio atrevem-se a usar os termos feminismo e feminista destemidamente, sem apologias e sem adversativas. É muito comum (se calhar cada vez mais) ouvir-se frases como “Eu sou a favor dos direitos das mulheres ou da igualdade, mas… não sou feminista”. Não resisto a citar aqui as palavras de Ana de Castro Osório, escritas em 1905, chamando a atenção para todo o optimismo contido na pequena palavra “ainda”, que augura uma época em que a situação que esta autora denuncia deixará de fazer sentido: “Feminismo: é ainda em Portugal uma palavra de que os homens se riem ou se indignam […] e de que a maioria das mulheres coram, coitadas, como de falta grave cometida por algumas colegas, mas de que elas não são responsáveis, louvado Deus!” (Osório, 1905: 11). Razão têm as autoras de Vozes Insubmissas ao dizerem, logo na apresentação da obra, que feminismo é “uma palavra maldita. Um termo que suscita reacções indignadas, risos, ou o presunçoso comentário de que ‘isso já passou de moda’” (11). Era bom que assim fosse.
2Mas porque não é, este livro propõe-se “desamaldiçoar” o feminismo, trazendo à memória tão apagada de hoje as origens setecentistas e oitocentistas das ideias e dos movimentos pelos direitos das mulheres a que, só nos finais do século XIX, seria dado o nome de feminismo (pela francesa Hubertine Auclert, que é aqui objecto de uma breve nota biográfica [70-71]) (Cott, 1987: 14). Aliás, é interessante notar como a palavra rapidamente se propagou nos países europeus e nos Estados Unidos da América, tendo chegado cedo a Portugal, como demonstram as palavras de Ana de Castro Osório, que a invoca como se fosse já amplamente usada – e também contestada – em 1905.
3Passado um século, as reacções ao termo parecem não ter mudado muito, sendo de louvar uma iniciativa como esta que se propõe contribuir para alterar este estado de coisas. Confrontando, surpresas, como dizem na apresentação da obra, a “insistente censura sobre o termo e a obstinada ignorância sobre o movimento”, Isabel do Carmo e Lígia Amâncio decidiram arregaçar as mangas e atravessar o rio do esquecimento para “trazer ao público, em geral, a origem do feminismo no pensamento moderno, através da vida de alguns dos seus fundadores e fundadoras, procurando evidenciar o contexto de emergência das suas ideias e as ligações entre elas e outras ideias fundadoras da modernidade” (11). Para além dos textos introdutórios em que traçam o quadro histórico e ideológico em que se insere o feminismo como pensamento crítico e como movimento social e político, as autoras oferecem-nos também uma breve cronologia da luta pela igualdade de direitos das mulheres, excertos de variados textos de feministas e anti-feministas, biografias de figuras da primeira vaga do feminismo na Europa, como Condorcet, Olympe de Gouges, Mary Wollstonecraft, Flora Tristan, John Stuart Mill, Clara Zetkin e Rosa Luxemburg, entre outras, terminando com uma pequena antologia de textos “notáveis”, pouco acessíveis fora de restritos círculos académicos em Portugal (como, por exemplo, os de Flora Tristan).
4As autoras estão conscientes da dificuldade das escolhas que fizeram e que encerram, até certo ponto, um grau de arbitrariedade e subjectividade (75), para além dos próprios limites impostos pela inacessibilidade de certos textos. Porque não escolher as inglesas Harriet Martineau ou Harriet Taylor, por exemplo, cuja colaboração com o marido, John Stuart Mill, tem sido defendida e simultaneamente contestada, como aliás as autoras reconhecem (136-7)? Será certamente fácil encontrar outras “vozes insubmissas” que aqui não estão representadas, mas isto só nos deve incitar a continuar este tipo de trabalho, trazendo a lume outros textos, também de outras partes do mundo, que certamente evidenciarão o que aqui já se vê tão claramente, que o movimento feminista é, desde as suas origens, um movimento de vocação internacional. Também seria importante recuperar do passado as vozes das feministas portuguesas do início do século XX, figuras como a já citada Ana de Castro Osório, Caiel e Maria Veleda, entre outras.
5Não é possível numa breve recensão fazer justiça à diversidade de questões que este livro aborda. Limito-me, portanto, a salientar mais alguns aspectos que me parecem relevantes e que poderão ser entendidos como controversos por quem não conheça a história que é aqui recuperada. Um deles é o facto de se deixar bem claro que tanto mulheres como homens se encontram na origem das ideias e dos movimentos pelos direitos das mulheres e pelo seu acesso às esferas do trabalho, do poder e do saber, contrariando a ideia, que me parece generalizada, pelo menos em Portugal, de que o feminismo é “coisa de mulheres” (e lá vem a tal expressão de escárnio). É como se se tivesse instalado uma espécie de “nativismo”, isto é, a ideia de que só os “nativos” do sexo em que nasceram, ou da condição que se lhes atribui, pudessem entender e defender, falar em nome do seu próprio sexo ou condição – como se cada um estivesse inexoravelmente “fechado, arrumado no seu sexo”, para usar as palavras aqui citadas do fundador do partido operário socialista francês, Jules Guesde (61). Como a história prova, e as autoras demonstram, as vozes insubmissas que se levantaram nos séculos XVIII e XIX contra a sujeição das mulheres foram vozes que aliaram a sua causa à das classes trabalhadoras, que se insurgiram contra a escravatura e contra tantas outras formas de injustiça, discriminação e exploração humana. Foram, portanto, vozes que se “desnativizaram”, se me é permitido cunhar o termo, ou seja, que foram capazes de sair para fora das prisões naturalizadas do sistema patriarcal, racista e classista do seu tempo, que romperam com os limites da sua própria condição e situação individual e particularista e que estabeleceram solidariedades mais latas, lutando por concretizar os ideais da era das revoluções, de liberdade e igualdade para todos.
6Torna-se aqui também claro que as reivindicações e protestos feministas se manifestam desde a sua origem como uma pedra no sapato da democracia, um pontapé nas canelas da modernidade, um incómodo constante, que força a teoria da emancipação humana dita universal a enfrentar as contradições das práticas de exclusão e opressão. A pergunta da inglesa Mary Wollstonecraft, repetida de diferentes maneiras em muitos outros textos, sobre a legitimidade da tirania exercida sobre as mulheres por homens que se diziam defensores da liberdade, era sem dúvida desassossegante no final do século XVIII e deveria ser desassossegante agora. Cito da página 103: “Não acha – e dirijo-me a si como legislador [Talleyrand] – que, num momento em que os homens lutam pela liberdade e para poderem decidir por si próprios da sua felicidade, subjugar as mulheres é uma contradição e uma injustiça […]? Quem concedeu ao homem a exclusiva capacidade de julgar, se a mulher partilha com ele o dom da razão?” Também desassossegantes são os insistentes ataques às concepções dominantes da “natureza” das mulheres e das diferenças consideradas naturais entre os sexos, que determinavam – e em muitas partes do mundo, hoje em dia, continuam a determinar – o seu lugar na sociedade. As palavras de John Stuart Mill deveriam ter definitivamente arrumado o assunto, se as memórias fossem longas e não fosse preciso continuamente inventar a roda. Diz Mill em The Subjection of Women (publicado em 1869): “Partindo da base do senso comum e do desenvolvimento da mente humana, recuso-me a aceitar que alguém conheça, ou possa conhecer, a natureza dos dois sexos, na medida em que têm sido sempre vistos no quadro da actual relação entre eles [...]. Aquilo que hoje se chama a natureza das mulheres é algo de inteiramente artificial – resultado da repressão forçada em certas direcções ou da estimulação anormal noutras” (134). No presente estado da sociedade, é portanto impossível determinar as diferenças “naturais” entre os dois sexos e, de qualquer das formas, continua ele, essa questão nem sequer é relevante, pois de acordo com os princípios das sociedades democráticas, todos os indivíduos têm direito à autodeterminação e a iguais oportunidades para o desenvolvimento das suas capacidades (Mill, 1869: 173). Para Hubertine Auclert, negar esses direitos às mulheres é uma ameaça à existência da igualdade entre os próprios ho-mens: “Uma República que mantenha as mulheres numa condição de inferioridade não poderá fazer homens iguais” (61).
7Mas se estes argumentos em registo “sério” não são suficientemente convincentes, talvez a pergunta jocosa e contundente do Marquês de Condorcet, no texto “Sur l’admission des femmes au droit de cité”, publicado em 1790, seja capaz de desassossegar as mentes mais acomodadas, de suscitar o riso e a indignação, mas desta vez dirigidos a quem persiste em manter a quietude “natural” (ou naturalizada) das contradições da democracia moderna:
8“Por que razão seres expostos às gravidezes e às indisposições passageiras não podem exercer direitos que nunca ninguém pensou retirar às pessoas que sofrem de gota todos os invernos e que são atreitas a constipações?” (86).