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Recensões

Carmo, Isabel do; Lígia Amâncio, Desamaldiçoar o feminismo. A propósito de Vozes Insubmissas. A história das mulheres e dos homens que lutaram pela igualdade dos sexos quando era crime fazê-lo

Teresa Tavares
p. 159-161
Referência(s):

Carmo, Isabel do; Lígia Amâncio, Desamaldiçoar o feminismo. A propósito de Vozes Insubmissas. A história das mulheres e dos homens que lutaram pela igualdade dos sexos quando era crime fazê-lo. Lisboa: D. Quixote, 2004, 234 pp.

Texto integral

1Em Vozes Insubmissas, Isabel do Carmo e Lígia Amâncio atrevem-se a usar os termos feminismo e feminista destemidamente, sem apologias e sem adversativas. É muito co­mum (se calhar cada vez mais) ouvir-se frases como “Eu sou a favor dos direitos das mu­lheres ou da igualdade, mas… não sou femi­nista”. Não resisto a citar aqui as palavras de Ana de Castro Osório, escritas em 1905, chamando a atenção para todo o optimis­mo contido na pequena palavra “ainda”, que augura uma época em que a situação que esta autora denuncia deixará de fazer sentido: “Feminismo: é ainda em Portugal uma palavra de que os homens se riem ou se indignam […] e de que a maioria das mulheres coram, coitadas, como de falta grave cometida por algumas colegas, mas de que elas não são responsáveis, louvado Deus!” (Osório, 1905: 11). Razão têm as autoras de Vozes Insubmissas ao dizerem, logo na apresentação da obra, que feminis­mo é “uma palavra maldita. Um termo que suscita reacções indignadas, risos, ou o pre­sunçoso comentário de que ‘isso já passou de moda’” (11). Era bom que assim fosse.

2Mas porque não é, este livro propõe-se “desamaldiçoar” o feminismo, trazendo à memória tão apagada de hoje as origens setecentistas e oitocentistas das ideias e dos movimentos pelos direitos das mulheres a que, só nos finais do século XIX, seria dado o nome de feminismo (pela francesa Hu­bertine Auclert, que é aqui objecto de uma breve nota biográfica [70-71]) (Cott, 1987: 14). Aliás, é interessante notar como a pa­lavra rapidamente se propagou nos países europeus e nos Estados Unidos da América, tendo chegado cedo a Portugal, como de­monstram as palavras de Ana de Castro Osó­rio, que a invoca como se fosse já amplamen­te usada – e também contestada – em 1905.

3Passado um século, as reacções ao termo parecem não ter mudado muito, sendo de louvar uma iniciativa como esta que se propõe contribuir para alterar este estado de coisas. Confrontando, surpresas, como dizem na apresentação da obra, a “insis­tente censura sobre o termo e a obstinada ignorância sobre o movimento”, Isabel do Carmo e Lígia Amâncio decidiram arrega­çar as mangas e atravessar o rio do esqueci­mento para “trazer ao público, em geral, a origem do feminismo no pensamento mo­derno, através da vida de alguns dos seus fundadores e fundadoras, procurando evi­denciar o contexto de emergência das suas ideias e as ligações entre elas e outras ideias fundadoras da modernidade” (11). Para além dos textos introdutórios em que traçam o quadro histórico e ideológico em que se insere o feminismo como pensamento crítico e como movimento social e político, as au­toras oferecem-nos também uma breve cronologia da luta pela igualdade de direi­tos das mulheres, excertos de variados textos de feministas e anti-feministas, biografias de figuras da primeira vaga do feminismo na Europa, como Condorcet, Olympe de Gouges, Mary Wollstonecraft, Flora Tris­tan, John Stuart Mill, Clara Zetkin e Rosa Luxemburg, entre outras, terminando com uma pequena antologia de textos “notáveis”, pouco acessíveis fora de restritos círculos académicos em Portugal (como, por exem­plo, os de Flora Tristan).

4As autoras estão conscientes da dificuldade das escolhas que fizeram e que encerram, até certo ponto, um grau de arbitrariedade e subjectividade (75), para além dos pró­prios limites impostos pela inacessibilidade de certos textos. Porque não escolher as inglesas Harriet Martineau ou Harriet Taylor, por exemplo, cuja colaboração com o marido, John Stuart Mill, tem sido de­fendida e simultaneamente contestada, como aliás as autoras reconhecem (136-7)? Será certamente fácil encontrar outras “vozes insubmissas” que aqui não estão representadas, mas isto só nos deve incitar a continuar este tipo de trabalho, trazendo a lume outros textos, também de outras partes do mundo, que certamente eviden­ciarão o que aqui já se vê tão claramente, que o movimento feminista é, desde as suas origens, um movimento de vocação inter­nacional. Também seria importante re­cuperar do passado as vozes das feministas portuguesas do início do século XX, figu­ras como a já citada Ana de Castro Osório, Caiel e Maria Veleda, entre outras.

5Não é possível numa breve recensão fazer justiça à diversidade de questões que este livro aborda. Limito-me, portanto, a salien­tar mais alguns aspectos que me parecem relevantes e que poderão ser entendidos como controversos por quem não conheça a história que é aqui recuperada. Um deles é o facto de se deixar bem claro que tanto mulheres como homens se encontram na origem das ideias e dos movimentos pelos direitos das mulheres e pelo seu acesso às esferas do trabalho, do poder e do saber, contrariando a ideia, que me parece gene­ralizada, pelo menos em Portugal, de que o feminismo é “coisa de mulheres” (e lá vem a tal expressão de escárnio). É como se se tivesse instalado uma espécie de “na­tivismo”, isto é, a ideia de que só os “nati­vos” do sexo em que nasceram, ou da condição que se lhes atribui, pudessem enten­der e defender, falar em nome do seu pró­prio sexo ou condição – como se cada um estivesse inexoravelmente “fechado, arru­mado no seu sexo”, para usar as palavras aqui citadas do fundador do partido ope­rário socialista francês, Jules Guesde (61). Como a história prova, e as autoras de­monstram, as vozes insubmissas que se le­vantaram nos séculos XVIII e XIX contra a sujeição das mulheres foram vozes que aliaram a sua causa à das classes trabalha­doras, que se insurgiram contra a escrava­tura e contra tantas outras formas de injus­tiça, discriminação e exploração humana. Foram, portanto, vozes que se “desnativi­zaram”, se me é permitido cunhar o ter­mo, ou seja, que foram capazes de sair para fora das prisões naturalizadas do sistema patriarcal, racista e classista do seu tempo, que romperam com os limites da sua própria condição e situação individual e particularista e que estabeleceram solida­riedades mais latas, lutando por concreti­zar os ideais da era das revoluções, de liber­dade e igualdade para todos.

6Torna-se aqui também claro que as reivin­dicações e protestos feministas se manifes­tam desde a sua origem como uma pedra no sapato da democracia, um pontapé nas canelas da modernidade, um incómodo constante, que força a teoria da emanci­pação humana dita universal a enfrentar as contradições das práticas de exclusão e opressão. A pergunta da inglesa Mary Wollstonecraft, repetida de diferentes ma­neiras em muitos outros textos, sobre a le­gitimidade da tirania exercida sobre as mulheres por homens que se diziam defen­sores da liberdade, era sem dúvida desas­sossegante no final do século XVIII e de­veria ser desassossegante agora. Cito da página 103: “Não acha – e dirijo-me a si como legislador [Talleyrand] – que, num momento em que os homens lutam pela liberdade e para poderem decidir por si próprios da sua felicidade, subjugar as mulheres é uma contradição e uma injus­tiça […]? Quem concedeu ao homem a exclusiva capacidade de julgar, se a mulher partilha com ele o dom da razão?” Tam­bém desassossegantes são os insistentes ataques às concepções dominantes da “na­tureza” das mulheres e das diferenças con­sideradas naturais entre os sexos, que determinavam – e em muitas partes do mundo, hoje em dia, continuam a deter­minar – o seu lugar na sociedade. As pala­vras de John Stuart Mill deveriam ter defi­nitivamente arrumado o assunto, se as memórias fossem longas e não fosse preci­so continuamente inventar a roda. Diz Mill em The Subjection of Women (publicado em 1869): “Partindo da base do senso co­mum e do desenvolvimento da mente hu­mana, recuso-me a aceitar que alguém co­nheça, ou possa conhecer, a natureza dos dois sexos, na medida em que têm sido sempre vistos no quadro da actual relação entre eles [...]. Aquilo que hoje se chama a natureza das mulheres é algo de inteira­mente artificial – resultado da repressão forçada em certas direcções ou da estimu­lação anormal noutras” (134). No presente estado da sociedade, é portanto impossí­vel determinar as diferenças “naturais” en­tre os dois sexos e, de qualquer das for­mas, continua ele, essa questão nem sequer é relevante, pois de acordo com os princí­pios das sociedades democráticas, todos os indivíduos têm direito à autodeterminação e a iguais oportunidades para o desenvolvi­mento das suas capacidades (Mill, 1869: 173). Para Hubertine Auclert, negar esses direitos às mulheres é uma ameaça à exis­tência da igualdade entre os próprios ho-mens: “Uma República que mantenha as mulheres numa condição de inferioridade não poderá fazer homens iguais” (61).

7Mas se estes argumentos em registo “sério” não são suficientemente convincentes, talvez a pergunta jocosa e contundente do Marquês de Condorcet, no texto “Sur l’admission des femmes au droit de cité”, publicado em 1790, seja capaz de desas­sossegar as mentes mais acomodadas, de suscitar o riso e a indignação, mas desta vez dirigidos a quem persiste em manter a quietude “natural” (ou naturalizada) das contradições da democracia moderna:

8“Por que razão seres expostos às gravidezes e às indisposições passageiras não podem exercer direitos que nunca ninguém pen­sou retirar às pessoas que sofrem de gota todos os invernos e que são atreitas a cons­tipações?” (86).

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Bibliografia

Cott, Nancy (1987), The Grounding of Mo­dern Feminism. New Haven: Yale UP.

Mill, John Stuart (1869), The Subjection of Women, in Miriam Schneir (org.) (1972), Feminism: The Essential Historical Writings. New York: Vintage Books, 162-78.

Osório, Ana de Castro (1905), Às mulheres portuguesas. Lisboa: Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Teresa Tavares, «Carmo, Isabel do; Lígia Amâncio, Desamaldiçoar o feminismo. A propósito de Vozes Insubmissas. A história das mulheres e dos homens que lutaram pela igualdade dos sexos quando era crime fazê-lo»Revista Crítica de Ciências Sociais, 69 | 2004, 159-161.

Referência eletrónica

Teresa Tavares, «Carmo, Isabel do; Lígia Amâncio, Desamaldiçoar o feminismo. A propósito de Vozes Insubmissas. A história das mulheres e dos homens que lutaram pela igualdade dos sexos quando era crime fazê-lo»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 69 | 2004, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 11 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1348; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1348

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Autor

Teresa Tavares

Professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investiga­dora permanente do Centro de Estudos Sociais. Foi vice-presidente da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres. Lecciona e investiga nas áreas de Estudos Americanos e Estudos Feministas, dedi­cando-se mais recentemente a questões de imigração e literatura imigrante nos Estados Unidos.
tete54@mail.telepac.pt

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