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A descoberta da economia-mundial*

The discovery of the world economy
La découverte de l’économie-monde
Immanuel Wallerstein
Tradução de António Sousa Ribeiro
p. 03-16

Resumos

Tendo como referência a obra monumental de Vitorino Magalhães Godinho, desenvolvem-se três temas fundamentais – a história é geográfica; a história fala de uma actividade pluridimensional, mas única; o passado relativiza-se no presente. A concluir, esboça-se um programa de trabalho para o novo século assente no conceito de história total.

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Texto integral

  • * Comunicação ao colóquio “Le Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinh (...)

1Os “descobrimentos” não foram somente a descoberta de territórios longínquos pelos Portugueses ou mesmo pelos Europeus; foram também a descoberta de uma nova construção social de que estas viagens, estas rotas oceânicas, estas trocas comerciais faziam parte, a construção da economia‑mundo capitalista em que todos hoje vivemos. A descoberta dessa estrutura ficou a dever‑se a um grupo de investigadores, a bem dizer, um grupo de hereges, que escreveram em meados do século XX. Entre estes textos transformadores, encontra‑se a obra monumental de Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial (1963).

2Magalhães Godinho oferece‑nos a conclusão de mais de mil páginas no seu parágrafo de abertura, que vale a pena ler com atenção:

Modernidade ou medievalidade dos séculos XV e XVI: qualificações demasiado globais, de flagrante imprecisão, para nos servirem de ferramenta na análise de expansão europeia que então se processa. Pense-se o que se pensar dessa controvérsia sempre en aberto, alguns factos são incontestáveis: ao desenrolar do fio dos anos a carta do globo é desenhada, o homem aprende a situar-se no espaço, a sua maneira de sentir e de entender as próprias relações humanas é impregnada pelo número, ao mesmo tempo pela consciência da mudança; a pouco e pouco cria-se um critério para distinguir o fantástico do real e o impossível do possível; transformam-se, em complexidade contraditória, motivações e ideais; a produção dos bens multiplica‑se, o mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica, forma-se o Estado burocrático e centralizado de matiz mercantilista. (Godinho, 1963, I: 11)

3“O mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica” – eis o tema que Magalhães Godinho põe em primeiro plano.

4A continuação do seu livro, contudo, não fala do mercado, mas conta‑nos a evolução dos mapas‑mundo europeus, uma viagem do fantástico ao real até que a medida do tempo e do espaço vá “infiltrar-se cada vez mais em todos os aspectos da vida quotidiana” (Godinho, 1963, I: 25). E Magalhães Godinho termina a sua introdução recordando‑nos o que escrevia Tomé Pires no início do século XVI:

O qual trato de mercadoria é tam necessário que sem ele se non susteria o mundo; este é que nobrece os Regnos, que faz grande as gentes e nobelita as cidades, e o que faz a guerra e a paz do mundo. É hábito o da mercadoria limpo. Nom falo no meneo dela, havido em estima: que cousa pode ser melhor que a que tem por fundamento a verdade? (Suma Oriental, Proémio, II, 325, apud Godinho, 1963, I: 63)

5Magalhães Godinho chama a isto “a palavra decisiva”.

6Mesmo assim, não se trata apenas da troca de bens. É todo um sistema que se constrói. Magalhães Godinho escreveu um verbete para o 2.º volume do Dicionário de História de Portugal sobre os “complexos históricos‑geográficos” no qual insiste que a economia se insere num complexo de estruturas, um sistema (ele não recua perante esta palavra), e acrescenta: “a noção de estrutura tanto opera quanto à sociedade global como quanto aos grupos, sectores de actividade, regiões e localidades que a integram, sendo sempre o meio de apreender analítico‑sinteticamente (por explicação‑compreensão) o facto social total.” (Godinho, 1961: 131).

7Ora aí está! A história total apresenta‑se‑nos como uma visão fundamental, uma exigência, um fardo. Teremos nós podido assumir essa tarefa? É tema para discussão. Começarei com uma expressão que Magalhães Godinho utiliza no seu livro recente, Le devisement du monde (2000), ao qual dá o subtítulo “Da pluralidade dos espaços ao espaço global da humanidade, séculos XV-XVI”. No título do primeiro capítulo, ele fala da “invenção do mundo” (Godinho, 2000: 19), no seio da qual estava a dar‑se, aparentemente, “a formação da Europa” (Godinho, 2000: 39). O mundo não existia antes do século XV? A Europa não era já uma realidade muito antiga? Não, não era, porque falar assim seria reificar estes termos descritivos, que devem, isso sim, ser reservados às realidades nos espíritos das pessoas e à substância das suas vidas.

8Inventava‑se o mundo porque, pela primeira vez na história, aquilo a que chamamos agora Europa era ligada de maneira substancial à Ásia e às Américas, de uma forma sistemática e contínua. E isto não podia deixar de reflectir‑se na vida das pessoas. Formava‑se a Europa precisamente porque se inventava o mundo. A Europa deixava de ser um sinónimo, de resto pouco utilizado, para a Cristandade. Magalhães Godinho dá mesmo ao seu quinto capítulo o título “Da Cristandade à Europa”. A Europa vai tornar‑se de modo mais imediato, através de um “difícil divórcio da Cristandade” (ibid.: 176), o centro de uma economia‑mundo, cujos interesses relativamente à periferia vão ampliar‑se ao ponto de determinarem o desenvolvimento não somente desta economia‑mundo, mas daquilo que se transformou no seu centro. E para compreender tudo isto, é necessário fazer a história total deste novo sistema histórico que ganhava forma e que persiste até aos nossos dias.

9Magalhães Godinho formula a pergunta, “o que é que significa descobrir?” e dá‑nos duas respostas bastante diferentes. Por um lado:

Descobrir, descoberta, portanto revelação das partes escondidas do mundo, a conjunção do Oriente e do Ocidente, a busca de novos caminhos e de novas paragens e gentes, culminando no encontro e na exploração metódica (“achamento”, “descobrimento”) de novos mundos, suscitando o espanto da novidade. (ibid.: 50)

10E, por outro lado:

Descobrir: construir o espaço operacional; por conseguinte, instrumentos físicos – a bússola, o astrolábio, a sonda, a corda de nós, o compasso –, modos de agir sobre o real, mas também a ferramenta mental de trigonometria da “toleta de marteloio”, o sistema de referenciais e coordenadas, a preocupação da medida, a precisão descritiva.
Construção do espaço ligada à construção do tempo – as estações das viagens, as horas das marés, a duração dos percursos de ida e de volta, os prazos dos pagamentos e das letras ou dos contratos; a transmissão de notícias vindas frequentemente de muito longe e por caminhos difíceis (da Índia a Portugal, com passagem por Ormuz e pelo Cairo, ou Damasco, e o Mediterrâneo). (ibid.: 54)

11Nestas duas definições, separadas por apenas quatro páginas, Magalhães Godinho aponta sucessivamente para as bases concretas da “descoberta” e para o seu impacto sócio‑cultural sobre os dois lados desse encontro – um encontro, não o esqueçamos, que é imposto, frequentemente, contra a vontade dos que são assim descobertos, um encontro que trouxe tantos males como bens, um encontro que não foi nem absorvido nem apreciado plenamente até aos nossos dias.

12Proponho‑me desenvolver três temas propostos por Magalhães Godinho na sua colecção de ensaios que intitulou Sobre teoria da história e historiografia: a história tornou‑se geográfica; a história fala de uma actividade pluridimensional, mas única; o passado relativiza‑se no presente.

1. A história é geográfica

A história torna-se hoje geográfica.
Não se trata já desta velha história
nem desta velha geografia. A história
torna-se hoje geográfica porque transpõe para
o passado o problema que a geografia
humana encara no presente: as relações
entre o meio fisico-biológico e as
sociedades humanas. Desagregaram-se,
para a historiografia, os gigantescos
blocos espácio-temporais, com
características imutáveis – a
civilização egípcia, a civilização
helénica, a civilização medieval –,
corroídos pelo sentido evolutivo.
De igual modo estalaram “as molduras”
dessas civilizações. Não há que
transpor para o passado as realidades
geográficas de hoje; há, sim, que
estabelecer a própria história do meio
fisico-biológico e das relações com
os diferentes povos.
(Godinho, 1971: 131)

13Estabelecer as relações entre as realidades físico‑biológicas e a história humana, uma reivindicação basilar da tradição dos Annales, faz parte do ataque desta às simplificações da “velha história” – baseada em acontecimentos, puramente político‑diplomática – e da velha geografia, que ignorava largamente o impacto fundamental da vida social humana sobre a Terra. No início do século XXI, num momento em que floresce a história ambientalista, uma tal afirmação parece banal. Mas mesmo hoje em dia a luta para que se leve a sério esta simbiose não está concluída. Há 30 ou 40 anos, raras eram as revistas, os historiadores que seguiam essa exigência.

14Parece claro que a ecologia não é uma essência, mas uma existência, o resultado da interacção perpétua entre todos os elementos diversos que existem no universo e, mais particularmente, na nossa Terra. Tudo o que foi fundamental na história humana – a criação das ferramentas, as agriculturas, a mecanização, o controlo das energias – transforma a Terra, valoriza e/ou desestabiliza ou destrói formas de vida animais e vegetais, reestrutura a geografia e a geologia, utiliza e esgota recursos minerais. Nenhuma acção humana é neutra ou sem consequências.

15Mas recordemos a insistência de Magalhães Godinho na ruptura dos séculos XV e XVI – ruptura social para a humanidade. Que impacto teve esta ruptura sobre as relações entre o mundo físico‑biológico e o mundo humano? Ela foi também uma ruptura ecológica? Vejamos. Essa ruptura transformou a estrutura ecológica da Terra de duas maneiras: a reorganização espacial da produção primária; a destruição maciça dos elementos produtivos da Terra. Nem uma nem outra foi inventada pelo mundo moderno. Mas a extensão e rapidez destas transformações e a irreversibilidade de uma parte delas – sem a mínima discussão colectiva sobre os seus benefícios e malefícios – deixa qualquer analista sério estupefacto.

16Antes de mais, reorganização. Para optimizar a produção rentável é necessário, como toda a gente reconhece, especializar‑se. Para os economistas clássicos, a especialização é uma escolha feita de comum acordo pelo empresário e o trabalhador que maximiza as vantagens para todos. Mas no mundo real, como toda a gente sabe mesmo se se recusa a admiti‑lo, a escolha é imposta e é vivida com muito sofrimento pela grande maioria das pessoas. Talvez que no início dos descobrimentos o objectivo e mesmo a realidade do comércio fossem a troca de produtos que cada um dos lados já produzia, a troca mais ou menos igual de um excedente mais ou menos natural. Mas o comércio rapidamente se inclinou numa direcção inteiramente diferente. Os que eram mais fortes, e, desde os descobrimentos, esses eram quase sempre os europeus, impunham uma produção primária aos povos com quem faziam trocas. Lentamente aqui, mais rapidamente acolá, a Europa exigia o desenvolvimento de uma produção primária especializada, diferente segundo as regiões, uma produção das culturas comerciais (cash crops, como dizem os historiadores) ou uma produção orientada para a exportação (como dizem hoje em dia os economistas).

17É preciso pensar em tudo o que implica a criação de uma tal produção primária. Antes de mais, há que escolher o terreno para a implantação. E normalmente, necessariamente, há que deixar de fazer uma outra coisa nesse terreno. Esta “outra coisa” era muitas vezes, talvez sempre, uma produção alimentar para o consumo local. É necessário, pois, substituir esta produção alimentar local por uma qualquer importação, por vezes, de uma região vizinha, por vezes, de terras distantes. E como esta nova produção dos cash crops exige por via de regra trabalhadores mais ou menos permanentes, bem enquadrados, coloca‑se o problema do seu recrutamento e da sua manutenção, um problema resolvido com muita frequência, pelo menos durante alguns séculos, pela criação de uma força de trabalho coagida – servos e corveia, escravos, peones, la mita. E como os habitantes locais muitas vezes resistiram a um tal trabalho, era preciso ou proibi‑los de se deslocarem ou importá‑los de outro lado, o que criou outras formas de comércio – o trato de escravos, os contratados.

18Este processo de periferização das zonas onde eram impostos trabalhos forçados ou coagidos implicava uma transformação das zonas centrais. Não insistirei sobre os processos mundiais de industrialização nem sobre a constante transformação de tudo em mercadoria. É a história do capitalismo enquanto sistema. Assinalo simplesmente que o resultado, ao fim de 500 anos, é uma polarização global nos planos económico, social e político, que não cessa de aumentar. Já não existem zonas relativamente estáveis do ponto de vista cultural. As identidades são reivindicadas no seio de uma turbulência enorme e perturbadora. Os ódios inter‑étnicos constroem‑se através do recurso a uma historicidade que tem uma existência muito débil. E, geograficamente, as pessoas já não estão de modo nenhum onde estavam há 500 anos. As migrações sobrepõem‑se às radicações ditas tradicionais.

19Em segundo lugar, destruição. Em 500 anos da vida do sistema‑mundo moderno, a vida na Terra transformou‑se mais rapidamente do que jamais havia acontecido. Não estou certo de que possa dizer‑se que esta transformação foi maior do que qualquer uma outra. Mas o que pode dizer‑se é que esta transformação criou uma série mais vasta de perigos à continuação saudável do nosso mundo social do que qualquer uma outra desde o começo daquilo a que chamamos a vida histórica da humanidade – por exemplo, destruição em curso da camada de ozono, enfraquecimento da diversidade biogenética, diminuição na Terra da vida biótica essencial para a sua regeneração, aquecimento da Terra, e assim por diante.

20E como o sistema‑mundo moderno pôde e teve de estender‑se por todo o mundo para envolver todas as partes sob o mesmo regime, o mesmo complexo histórico‑geográfico, como diria Magalhães Godinho, não existe nenhuma zona que escape a estas consequências globais. A ruptura social exprimiu‑se através da criação de um sistema capitalista que pôde sobreviver e consolidar‑se no seio de uma economia‑mundo. O leitmotiv do capitalismo é a acumulação incessante do capital. O resultado é que os que triunfam são, na maior parte, os que recusam obrigações sociais com o fito de maximizar o rendimento imediato da empresa. Um elemento central desta maximização é a externalização máxima dos custos de produção.

21Há três métodos principais para externalizar os custos. Despeja‑se noutro lado os restos da produção, sobretudo o que for tóxico. Não se tem preocupações a respeito da reprodução das matérias‑primas da produção. Depende‑se de outros (sobretudo das autoridades públicas) para construir as infra‑estruturas que facilitam o transporte e a comunicação. Na medida em que possa escapar‑se a estes três custos de produção, a margem de lucro aumenta.

22De início, era simples, em certo sentido. Primeiro, as estruturas burocráticas capazes (se quisessem) de limitar os excessos eram muito débeis e dispersas. Em segundo lugar, estas acções pareciam legítimas e, em todo o caso, a aliança na prática entre os produtores e as autoridades públicas era suficientemente forte para que não se suscitassem tais questões. Em terceiro lugar, as zonas relativamente vagas para receber os resíduos, as zonas relativamente abundantes para obter as matérias‑primas, faziam com que não se tivesse muita consciência dos danos ocorridos. Enfim, e esta é talvez a explicação mais fundamental, em geral os custos eram pagos pelos pobres e pelos “outros” e não tinham um impacto real sobre a vida das elites.

23Em todo o caso, foi preciso que passassem pelo menos quatro séculos para que estes danos se acumulassem ao ponto de haver uma reacção política importante, o que significa os últimos 30 anos. Chegou‑se a um momento em que se começa (com justa causa) a recear consequências difíceis de remediar, consequências que ameaçam tanto as elites como as camadas marginais. Vistas em conjunto, as relações entre o mundo físico‑geográfico e o mundo social já viram melhores dias.

2. A unicidade da história

O homem real não é actor separadamente
de uma história politica, de uma
história económica, etc.; todo ele
intervém integralmente numa história
única, que é a história da sua
plurifacetada mas una actividade.
(Godinho, 1971: 39)

24O que me atrai nesta citação é que Magalhães Godinho começa por falar do homem real, em contraste implícito com o homem abstracto que tantos analistas constroem. E, a partir deste sólido rochedo, chega à conclusão de que a actividade do homem é composta por múltiplos aspectos, mas permanece, apesar disso, única ou unificada – aquilo a que chamo a unicidade da história. O seu grande livro, mas também os seus múltiplos ensaios, reflectem fielmente este compromisso com a totalidade, que é um compromisso com a realidade vivida, concreta.

25Ele não fala numa abordagem multidisciplinar, mas numa abordagem unificada, o que constitui uma nuance essencial. É que não se trata de um agregado de dados recolhidos separadamente por investigadores distintos e diferenciados, mas de factores/aspectos/elementos que “intervêm integralmente numa história única”. Ele faz sua uma aspiração que é a aspiração de uma minoria de investigadores e que só é realizada por uma minoria dentro desta minoria – por ser tarefa eminentemente difícil. A dificuldade reside, não na amplitude da investigação (falso problema), nem na escrita sintética (que está ao alcance de todos os que têm uma visão clara), mas sim na conceptualização. A conceptualização é difícil porque se faz a contrapelo, porque exige que nos desembaracemos das nossas socializações intelectuais, das hipóteses de tal modo interiorizadas que nem sequer nos damos conta disso. Para ir além destes preconceitos nocivos, é necessário “des‑pensar” os nossos saberes.

26Quando se observa o plano de obra do seu grande livro, não se trata de nada que não seja “económico” – o próprio título do livro, os títulos das três partes, os títulos de vários capítulos, todos empregam a palavra “economia” ou outras palavras tradicionalmente ligadas à economia. E, no entanto, quando se lê o texto, está‑se liberto deste espartilho. Percorre‑se o mundo real sem que nos apontem isso como uma espécie de travessia de fronteiras.

27Porque é que é tão difícil para nós despirmos esta tríade enraizada – o económico, o político, o sócio‑cultural? Porque é que insistimos em pensar nestas categorias como domínios, como acantonamentos, quase como Estados soberanos? Também isso faz parte da ruptura do mundo moderno, separando‑o de outros sistemas históricos. Esta ideia ia progredindo lentamente desde o século XVI, mas foi só no século XIX que ela foi consagrada e institucionalizada nas estruturas universitárias reconstituídas. Mas porquê nesse momento?

28Não é demasiado difícil discernir as origens desta tripartição. A ideologia centrista liberal, que, nessa época, estava em vias de dominar a geocultura, insistia em que a qualidade mais fundamental da modernidade e, portanto, do progresso científico, era a diferenciação das arenas da acção social em três: o mercado, o Estado e a sociedade civil. Era‑se moderno na medida em que estes três domínios erigissem muros uns contra os outros. E, ao mesmo tempo, construía‑se a modernidade construindo esses muros. Cada domínio, dizia‑se, tem as suas regras distintas. Cada domínio é logicamente independente do outro. Cada domínio deveria, pois, abster‑se de interferir com os outros. E, em consequência, torna‑se evidente que os investigadores e as estruturas do saber devem vigiar atentamente para que as características de cada um desses domínios não sejam invadidas nem corrompidas pelo outro.

29E eis‑nos chegados às verdades universitárias actuais contra as quais se insurgiam os Annales, se insurgia Vitorino Magalhães Godinho, para proclamar a unicidade da história. E se a história vivida é única, unificada, chegamos logicamente à interciência, à conclusão de que as ciências sociais são necessariamente históricas e que a história necessariamente se define como ciência social. Donde, logicamente, organizacionalmente, deveríamos ter baseado as nossas chamadas disciplinas numa disciplina única, a que, por mim, chamaria ciências sociais históricas ou historizadas. Magalhães Godinho indica‑nos este caminho ao longo de todas as suas discussões sobre “a crise da história”. Ouçam a sua argumentação:

Ao longo do Cinquecento, as economias não caminharam todas ao mesmo ritmo […] a desgraça de uns era a boa fortuna dos outros […].
Que tais desequilíbrios sejam muitas vezes de origem extra‑económica, no sentido estrito ou, melhor, académico que a economia “pura” dá a este adjectivo, muito bem. Está por fazer, começa a fazer‑se, uma teoria do técnico – as inovações estão à cabeça da teoria económica de Schumpeter. Está por fazer a psicologia histórica, quem está a servir de parteiro é Lucien Febvre. Mas a necessidade de teorização impõe‑se em todos os domínios e no conjunto dos domínios como um todo. A história não pode deixar de continuar a absorver mais teoria. Mas tem de entender‑se o real e, portanto, as suas transformações, o devir; a única forma de, por sua vez, o conseguir é através da historização das teorias – da tecnologia, da psicologia, da sociologia e, porque não, da própria economia. (Godinho, 1971: 166)

30Este programa, enunciado em 1951, não foi ainda realizado pela grande maioria dos analistas mundiais. Sem dúvida que, aqui e ali, houve muitos esforços mas, mesmo se admirados, eles não são amplamente seguidos.

3. O passado relativiza‑se no presente

Há todo um mundo a desbravar,
desde que quem estude o passado
não esqueça o presente e saiba
sacrificar ao espírito crítico
quer os interesses apaixonados
que tudo deturpam porque demasiado
exclusivos, quer o cómodo abandono
de selecção que nada permite
explicar porque tudo confunde.
(Godinho, 1971: 123)

31Entre todos os temas, considero este o mais importante e o mais radical. As guerras culturais que irrompem quando se utiliza o verbo relativizar! E que afronta à suposta distância imparcial do historiador quando se insiste no facto de que a história é, efectivamente, uma descrição do presente e não o texto de um passado à moda de Ranke, o passado tal como era realmente.

32O presente, como se sabe, é o mais evanescente dos fenómenos, terminado antes que possa captar‑se.

33Quando um historiador insiste, como tem a obrigação de fazer, junto de outros cientistas sociais, em que é necessário historizar as análises deles, que são demasiado ou exclusivamente “presentistas” ele não está a falar, ou pelo menos, não deveria estar, em acrescentar uma cronologia dos acontecimentos ao seu texto. No que ele insiste é em que o presente incorpora o passado, que o passado faz parte integral do presente, e que ele tem de ter isso em conta, não deve pressupor que a fácil teorização do presente se aplica eternamente. Mas, ao mesmo tempo, Magalhães Godinho fala aos historiadores que “abandonam a selecção” com facilidade porque, assim confundindo tudo, não explicam nada.

34Há, pois, um caminho estreito a seguir – nem a “distorção” que as paixões do presente implicam nem a sedutora retirada das paixões do presente que nos cercam, nos formam e nos determinam largamente. É preciso ser intelectual, o que é uma tarefa muito mais difícil do que ser um erudito pedante. Um intelectual é sempre e necessariamente um “intelectual público”, mesmo, ou até sobretudo, quando o nega. A negação, quando não a hipocrisia, é de bom tom em muito lado.

35Como é que se pode seguir esse caminho estreito? Sugiro que existem três momentos de pensamento: a análise sistemática e historizada; a escolha moral; as implicações políticas. São três tarefas diferentes e distintas, mas muito imbricadas umas nas outras e, no fim de contas, indissociáveis. Cada um de nós realiza os três momentos cada vez que pensa. E fazê‑lo com conhecimento de causa é sempre mais sensato. Parece‑me que Magalhães Godinho o demonstrou biograficamente, oferecendo‑nos o exemplo de como ser um intelectual coerente, isto é, comprometido e público.

36Os três momentos de pensamento são sucessivos e cada tarefa tem as suas regras próprias. É preciso começar sempre pela análise. Quando não, arriscamo‑nos a fazer não poucas asneiras. E este esforço é contínuo; não termina nunca. Todos nós temos um fundo de conhecimentos limitado. E o mundo está em constante mudança. Há, pois, sempre muito a aprender, muito a analisar, muito a repensar e, sobretudo, muito a des‑pensar. E, evidentemente, e por causa disso, não devemos demorar demasiado a revelar o que supomos ter aprendido. Esperar pela certeza é esperar pelas calendas gregas.

37Mas uma vez feita a análise, como evitar as escolhas morais? Elas estavam já implícitas na nossa escolha de tema, de variáveis, de dados, e de métodos, mau grado todos os nossos esforços para minimizar as tendenciosidades mais evidentes e para proporcionar uma exposição que seja convincente e resista à demolição fácil dos nossos críticos. Não obstante, temos de assumir as nossas simpatias, os nossos juízos. Como poderíamos sugerir que os que são menos aptos para a análise são, apesar disso, mais aptos para as escolhas morais que dela derivam? Ninguém pode evitar as escolhas morais, sobretudo, diria eu, um intelectual. Se não, o intelectual é como alguém que coloca na rua um explosivo potencial sem o confessar e deixando aos “outros” o encargo de o neutralizar.

38Não estou a dizer que as escolhas morais do intelectual são as únicas possíveis. Longe disso. Toda a gente pode e deve tirar as consequências da análise. O que estou a dizer é que o intelectual não tem o direito de dizer que se desliga deste dever comum. Aliás, estou a dizer que ele nunca se desliga. E quando finge fazê‑lo, é uma maneira de aceitar, talvez mesmo de apoiar, as escolhas de outros, sobretudo dos que detêm o poder.

39Mas não chegámos ainda ao fim da participação inevitável do intelectual na vida pública. O intelectual compromete‑se, por natureza, a analisar a forma de levar à prática as escolhas morais que derivam da sua análise. Isto é uma tarefa política, no sentido amplo da palavra “político”. Há muitos meios de prosseguir essa análise política – através da vida política pública, através da imprensa, através dos testemunhos. Pouco importa. Depende das situações locais diferentes, das possibilidades que se apresentam a todos.

40Mas, mais uma vez, não há alternativa. O intelectual que tenta evitar esta parte do seu papel cede o seu dever, deliberadamente ou não, aos outros. Não basta dizer que se participa como cidadão. Participa‑se também como intelectual. E isto porque outros usam as análises sistemáticas e historizadas já feitas para justificar as suas políticas. O intelectual é, pois, obrigado a descer à arena para defender a boa interpretação daquilo que escreveu ou que escreveram os seus colegas, sobretudo aqueles que não estão em condições de o fazer eles próprios. O intelectual permanece sempre um cidadão intelectual, com o encargo perpétuo de ajudar à clareza e à clarificação das decisões.

4. Uma visão de futuro

41Ouso fazer apelo à obra e ao exemplo de Vitorino Magalhães Godinho para traçar um programa de trabalho para o nosso novo século. Este resume‑se à palavra de ordem já lançada e bem conhecida da história total, a que Magalhães Godinho e um bom número de outros investigadores se dedicaram desde há bastante tempo mas que só constitui um compromisso para uma minoria de investigadores pelo mundo fora, uma minoria que continua bastante sitiada. Mas que quer dizer na prática a história total? Parece‑me que há quatro debates a resolver, quatro caminhos a seguir.

42O primeiro continua a ser a respeito de saber qual é a unidade de análise útil, frutuosa, plausível. Quando falamos da descoberta da economia‑mundo, escolhemos uma resposta possível a esta pergunta. Não vou fazer de novo a justificação de uma tal categoria. Gostaria simplesmente de sublinhar o facto de que aceitar essa designação está longe de resolver todas as dificuldades. Mesmo entre os adeptos, subsistem grandes desacordos sobre os limites de espaço‑tempo de todo o exemplo específico. E, por detrás do que poderiam parecer debates menores e marginais sobre os pormenores, encontram‑se diferenças fundamentais sobre a teorização da realidade e, portanto, das suas tendências seculares e, portanto, sobre as implicações morais e políticas. O grau em que o tempo implica o espaço e o espaço, o tempo faz parte integral desta discussão. A discussão da linearidade da história humana continua a ser uma questão latente quando se quer delimitar o que é uma unidade de análise. Por conseguinte, aceitar que é absolutamente necessário argumentar a unidade de análise não é senão um primeiro passo na concepção e na escrita da história total.

43O segundo debate, incontornável quando se procura situar a melhor unidade de análise, consiste em saber como a conceber teoricamente – sistematicamente ou/e historicamente. Na minha opinião, longe de ser obrigado a escolher entre as duas sereias, há que encontrar um terceiro “não-excluído” – impossível, segundo Aristóteles, mas, todavia, a única escolha em condições de abarcar a totalidade da história. Porque em qualquer descrição histórica, cada vez que se narra o que aconteceu, é‑se obrigado a empregar vocábulos categoriais que escondem toda uma teorização. Mas, em contrapartida, o mundo evolui a cada instante e não se pode acreditar que uma teorização permaneça válida através de todo o tempo e espaço. Por conseguinte, temos obrigatoriamente que procurar teorizar e historizar ao mesmo tempo. É um pouco análogo ao dilema de Heisenberg: a investigação transforma o objecto e, portanto, não é nem falsa nem verdadeira. No plano macro que é a vida social humana, isto quer dizer que a história baseada em acontecimentos não é falsa nem verdadeira, mas que, ao mesmo tempo, também a história analítica não é falsa nem verdadeira. Tudo o que podemos fazer é esforçarmo‑nos por fornecer uma explicação plausível da realidade, mais plausível do que toda a explicação alternativa.

44O terceiro debate consiste em saber o que fazer com as divisões do real que achamos tão evidentes porque elas nos são implantadas na nossa formação e são repetidas incessantemente nas análises dos investigadores e na vida pública. Estou a referir‑me à divisão entre o económico, o político e o sócio‑cultural. Dizem‑nos recorrentemente que se trata de três domínios bastante diferentes, bastante separados, que seguem regras próprias. Ou, pelo menos, que isto é verdade para o mundo moderno. Mas não é verdade. Trata‑se quando muito de três aspectos de uma única realidade muito imbricada, na qual não é possível compreender o que se passa num destes assim chamados domínios sem se dar conta da totalidade. Cada decisão “económica” depende das suas consequências políticas e sócio‑culturais, e é também resultado de elementos políticos e sócio‑culturais. E assim sucessivamente.

45O problema, evidentemente, é que não inventámos um vocabulário adequado a esta imbricação, esta unicidade da vida social moderna. E, consequentemente, caímos todos na utilização deste vocabulário que nos foi legado pelo liberalismo do século XIX. E, consequentemente, reproduzimos sem cessar estas falsas divisões. Nem Magalhães Godinho nem Braudel nem eu próprio fomos capazes de evitar totalmente esta armadilha. Considero que a busca de um outro vocabulário mais realista é uma das principais tarefas que temos ante nós no século XXI.

46E, finalmente, há o debate sobre as duas culturas. Construído simplesmente apenas há dois ou três séculos, aquilo a que se chama o divórcio entre a ciência e a filosofia domina‑nos nas estruturas de saber. A clivagem epistemológica é um pressuposto basilar da maior parte dos investigadores. Ou se é adepto da ciência ou humanista. São dois campos, duas religiões, que se defrontam, e nem sempre de modo pacífico. No entanto, esta antinomia é tão errada e sem pertinência como as outras antinomias que discutimos.

47Desde há trinta anos que esta clivagem, enraizada nas nossas estruturas universitárias, está a ser posta em questão por dois movimentos de saber provenientes dos dois campos. Entre os cientistas, existe agora um forte movimento que se chama as ciências da complexidade, o qual rejeita o unilinearismo, o determinismo e o reducionismo da ciência dita clássica (de Newton a Einstein), em favor de uma ciência que insiste sobre a impossibilidade intrínseca de prever o facto de que toda a curva tende a desviar‑se do equilíbrio, que rejeita a reversibilidade do tempo e põe em realce a flecha do tempo. E, entre os humanistas, existe agora um forte movimento de saber, os estudos culturais, que rejeita os cânones universais da beleza e insiste na contextualização social de toda a actividade cultural.

48O que há que observar é que estes dois movimentos tendem para um centro ocupado pelas ciências sociais historizadas, e, portanto, para a possibilidade da restauração de uma epistemologia única do saber, o que irá ter um impacto profundo não somente sobre a busca da verdade, mas sobre todas as instituições universitárias que conhecemos actualmente. Ainda não chegámos à junção destas duas tendências centrípetas, mas pode sugerir‑se que se trata de um campo de trabalho central para a evolução futura do saber mundial.

49Por conseguinte, quatro debates susceptíveis de aplanar o caminho para uma ciência social historizada infinitamente mais fecunda do que os saberes que conhecemos nos últimos dois séculos. E, por isso, temos que agradecer a Vitorino Magalhães Godinho, não como o único, mas como um dos pioneiros.

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Bibliografia

Godinho, Vitorino Magalhães (1961), “Complexo histórico-geográfico”, in Joel Serrão (org.), Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, II, 130-135.

Godinho, Vitorino Magalhães (1963), Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2 vols. Lisboa: Editora Arcádia.

Godinho, Vitorino Magalhães (1971), Ensaios, III: Sobre teoria da história e historiografia. Lisboa: Sá da Costa.

Godinho, Vitorino Magalhães (2000), Le devisement du monde: De la pluralité des espaces à l’espace global de la humanité, XVème – XVIIIème siècles. Lisboa: Instituto Camões.

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Notas

* Comunicação ao colóquio “Le Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho”, Paris, 12-13 de Dezembro de 2003.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Immanuel Wallerstein, «A descoberta da economia-mundial»Revista Crítica de Ciências Sociais, 69 | 2004, 03-16.

Referência eletrónica

Immanuel Wallerstein, «A descoberta da economia-mundial»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 69 | 2004, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 14 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1334; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1334

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Autor

Immanuel Wallerstein

Professor jubilado da Universidade de Binghantom e Director do Fernand Braudel Center da mesma universidade. Algumas publicações mais recentes: The Uncertainties of Knowledge (Philadelphia: Temple Univ. Press, 2004); Alternatives: The U.S. Confronts the World (Boulder, CO: Paradigm Press, 2004); The Modern World-System in the Longue Durée (org. com Richard E. Lee; Boulder, CO: Paradigm Press, 2004). Overcoming the “Two Cultures”: Science vs. the Humanities in the Modern World-System (org.; Boulder, CO: Paradigm Press, 2004).
iwaller@binghamton.edu

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    Publicado em Revista Crítica de Ciências Sociais, 82 | 2008
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