Butler, Judith (2021), A força da não-violência
Butler, Judith (2021), A força da não-violência. Lisboa: Edições 70, 166 pp. Tradução de Hugo Barros [ed. orig. 2020]
Notas da redação
Revisto por Alina Timóteo
Notas do autor
Este texto é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto «REPLAY - As abordagens à paz e a (re)produção da violência em Moçambique» (EXPL/CPO-CPO/1615/2021).
Texto integral
- 1 Ver, por exemplo: Butler, Judith (1993), Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. New (...)
1Amplamente conhecida pelo seu trabalho sobre género – que nos anos 1990 abalou os entendimentos rígidos sobre o corpo e a identidade e deu lugar à consolidação de uma reflexão queer sobre a forma como fazemos os géneros1 –, Judith Butler apresenta agora um importante contributo para o conhecimento no campo dos estudos da paz, das violências e das resistências.
2Publicado em português em março de 2021 pela Edições 70, A força da não-violência é uma fascinante reflexão no campo da filosofia política sobre os fenómenos da violência e da não-violência, desenvolvida em articulação com a análise de problemas centrais da contemporaneidade.
3Organizado em quatro capítulos, o livro arranca com uma crítica ao individualismo e um apelo ao reconhecimento das formas de vida como inerentemente interdependentes. Butler desafia os limites do corpo como circunscrição da esfera pessoal, alargando-a às relações e aos laços sociais indispensáveis à experiência viva, não só humana, mas de todas as formas de vida. Este entendimento de uma “interdependência social” complexa (p. 25) permite diluir os limites entre o “eu” e “o outro” antropológicos levando a autora a propor que, de facto, “a violência contra o outro é […] violência contra si mesmo, algo que se torna claro quando reconhecemos que a violência ataca a interdependência viva que é, ou deveria ser, o nosso mundo social” (p. 31).
4Butler reconhece que os conceitos de violência e de não-violência são contestados e “escorregadios”. Isto porque a definição do que constitui um ato de violência e a identificação de quem ou o que é violento são construções sociopolíticas exercidas num quadro de referência influenciado por relações de poder. Neste contexto, a autora aponta o Estado como detentor do monopólio da violência legítima, e as instituições como tendo um poder desproporcional em relação aos seus eventuais críticos e opositores. Transportando a discussão sobre violência para o campo da epistemologia, Butler abstém-se de apresentar tipologias, reconhecendo a dificuldade de estabelecer o limite entre a violência e a não-violência, propondo antes uma reinterpretação destes conceitos.
5A violência deve ser definida, nesta interpretação butleriana, como um ataque à interdependência social que carateriza a vida: um ataque às pessoas mas, acima de tudo, um ataque aos vínculos ou laços sociais que nos unem neste sistema de interdependência (p. 24). Na prática, o alcance do termo é muito abrangente e vai desde atos de fala que ferem o outro, ao golpe como clímax da violência, até à violência das estruturas sociais, económicas e legais, apontando para o racismo, a heterocisnormatividade e o classismo sistémicos.
- 2 Butler, Judith (2006), Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. New York: Verso [ed. o (...)
6Butler recorre ao conceito de enlutabilidade – anteriormente explorado pela autora em Precarious Life: The Power of Mourning and Violence2 – para refletir sobre desigualdades sociais. Num modelo de sociedade desigual em termos de enlutabilidade, isto é, em que certas vidas são mais valorizadas do que outras, coexistem nas sociedades vidas enlutáveis e inlutáveis, respetivamente enquadradas como dignas e indignas de luto.
7A enlutabilidade é, para a autora, um princípio intimamente articulado com as lógicas de desigualdade, uma vez que “orienta a organização social da saúde, alimentação, alojamento, emprego, vida sexual e cívica” (p. 57). Exemplos de fenómenos de violências – efeito deste sistema de distribuição desigual da enlutabilidade das vidas – são: a violência policial letal contra pessoas negras (e particularmente mulheres negras) nos Estados Unidos da América, a recusa de prestação de auxílio a pessoas refugiadas no mar Mediterrâneo na Europa, ou mesmo o elevadíssimo número de vítimas de feminicídios na América Latina.
8Uma vez que o mundo é um “campo de forças da violência” (p. 20), a autora enquadra a não-violência sempre como um exercício crítico, assente num reconhecimento da interdependência social que impele para uma prática coletiva de resistência motivada pelo reconhecimento da injustiça social. Neste sentido, este conceito não se limita a posições passivas perante a vulnerabilidade, mas antes a tomadas de posição éticas e políticas que se materializam em experiências de resistência, como greves, paralisações, boicotes, assembleias públicas, petições, entre outras, que questionam a legitimidade de instituições ou de um regime, como é o caso da greve geral ou de formas de resistência antirracista (p. 118) – e, acrescentaríamos, queer.
9Ao longo do livro, Butler desenvolve um manifesto para uma ética e política da não-violência em articulação com as ideias de autores como Michel Foucault, Frantz Fanon, Walter Benjamin, Robert Cover, Étienne Balibar, Sigmund Freud e Albert Einstein. Recorrendo à teoria psicanalítica de Freud, bem como à correspondência desse autor com Einstein, Butler enquadra a violência e a não-violência como fenómenos simultaneamente sociopolíticos e psíquicos (p. 142). A autora faz também uso da teoria de Freud – e particularmente do conceito de “pulsões de morte” (p. 132) – na sua relação com a guerra, para pensar a violência tanto num plano inter-relacional como nas relações internacionais.
- 3 Nathan, Otto; Norden, Heinz (orgs.) (2017), Einstein on Peace. New York: Pickl Partners Publishing, (...)
- 4 Weinberg, Arthur; Weinberg, Lila (orgs.) (2002), The Power of Nonviolence: Writings by Advocates of (...)
10Superar o efeito destrutivo inerente à psique e aos vínculos sociais implica redirecionar este potencial destrutivo para algo que não “o outro” e não “eu próprio”. A sugestão da autora é que este seja direcionado contra a própria destrutividade, travando uma guerra contra a guerra, uma intolerância contra a intolerância, uma insurgência contra a tirania. Este redirecionamento corresponde ao “pacifismo militante” proposto por Einstein,3 à “lei do amor” de Mahatma Gandhi,4 ou o que Butler chama agora de “ética e política da não-violência” (p. 91).
11Butler reflete sobre a condição de vulnerabilidade, concluindo que uma política informada pela vulnerabilidade terá que ter em conta que as pessoas vulneráveis são ambivalentes na sua condição. O facto de se encontrarem desproporcionalmente expostas às violências não implica passividade, pelo contrário, coexiste e impele à resistência. A autora é crítica de uma visão das pessoas vulneráveis como meros recetáculos de violências, apontando para o arquétipo das pessoas que sofrem e lutam. No entender da autora, políticas centradas na vulnerabilidade proporcionam um merecido “alívio” da sua precariedade (p. 156), mas aponta sobretudo a necessidade de estas políticas serem articuladas com um esforço de transformação das estruturas de poder.
12Para as transformar, Butler impele-nos para um caminho político de uma ação coletiva, informada pela ética da não-violência e apontada para uma igualdade radical (p. 164). Um caminho que abandone uma perspetiva individualista, própria do neoliberalismo, e reconheça o caráter interdependente das vidas humanas, bem como a sua interdependência com as vidas não-humanas e os sistemas vivos, incluindo a terra e a natureza (p. 161). Com frequência, dado o caráter ambivalente dos vínculos sociais, a resistência tomará as formas de “um amor enfurecido, [um] pacifismo militante, [uma] não-violência agressiva e [uma] persistência radical” (p. 164).
13Tal política apresenta-se certamente com um caráter utópico inultrapassável, que a autora reconhece no final do livro. Uma igualdade radical constitui, no entanto, um “novo imaginário” (p. 164) – além do informado pelos “fantasmas” raciais e heterocissexistas (p. 39), pelas lógicas de guerra e pela violência estatal –, que pode ser a base para a construção de novas e reforçadas solidariedades.
Notas
1 Ver, por exemplo: Butler, Judith (1993), Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. New York/London: Routledge; Butler, Judith (1999), Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York/London: Routledge [ed. orig. 1990].
2 Butler, Judith (2006), Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. New York: Verso [ed. orig. 2004].
3 Nathan, Otto; Norden, Heinz (orgs.) (2017), Einstein on Peace. New York: Pickl Partners Publishing, p. 125.
4 Weinberg, Arthur; Weinberg, Lila (orgs.) (2002), The Power of Nonviolence: Writings by Advocates of Peace. Boston: Beacon Press, p. 45.
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Referência do documento impresso
Pedro Fidalgo, «Butler, Judith (2021), A força da não-violência», Revista Crítica de Ciências Sociais, 127 | 2022, 193-196.
Referência eletrónica
Pedro Fidalgo, «Butler, Judith (2021), A força da não-violência», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 127 | 2022, publicado a 22 junho 2022, consultado a 19 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/12955; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.12955
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