1As ciências são uma das mais fascinantes e contraditórias criações da modernidade. Elas começaram por representar um novo modo de interrogar o mundo, de produzir regimes de verdade libertos da tirania dos dogmas, dos argumentos de autoridade ou – assim se esperava, pelo menos – das ilusões e aparências do senso comum. Se o inconformismo, a crítica, a rebeldia contra as autoridades religiosas ou políticas tiveram um papel central na origem das ciências modernas, não é menos verdade que estas tiveram sempre a ambição de conhecer o mundo para o dominar e transformar, através de uma forma de poder que passava a ser legitimada pela referência à busca da verdade. Não deixa por isso de ser, ao mesmo tempo, perturbador e previsível verificar como o impulso crítico e de inconformismo com o mundo tal como ele é veio a dar lugar, à medida que as ciências, o poder político e a ordem económica capitalista se iam interpenetrando, a uma reafirmação da dominação sobre o mundo, agora legitimada por uma nova autoridade, a dos saberes científicos e técnicos.
2O esquecimento da história das ciências, dos contextos sociais e culturais e dos conflitos políticos em que elas emergiram teve três consequências importantes: em primeiro lugar, a eliminação da memória dos espaços e dos tempos específicos em que se forjaram as ideias, os instrumentos, as práticas e as instituições das ciências; em segundo lugar, o esquecimento dos conflitos e das contradições e tensões que atravessaram a história das ciências, que estiveram na origem da sua “desunidade” e das continuidades e descontinuidades com outros saberes e modos de conhecimento; e, finalmente, a estreita relação que as ciências modernas, ocidentais mantiveram com dinâmicas de dominação social, económica e militar, que resultaram na marginalização, exclusão ou mesmo destruição de modos de conhecimento diferentes, radicados em experiências históricas distintas. Este esquecimento e a promoção de um “presentismo” que retira espessura histórica às ciências é mistificatório, por certo, mas é também irresponsável, por levar ao desarmar intelectual perante um mundo em transformação – em boa parte como consequência de intervenções humanas e das suas consequências perversas –, vendo apenas no mundo aquilo que já era conhecido e eliminando a capacidade de produzir conhecimento sobre o novo e o emergente.
3Mas as ciências fizeram-se também na densificação das redes que as ligaram a contextos sociais particulares e na extensão e translocalização dessas redes, através de instituições, laboratórios, instrumentos, materiais e actores que incorporavam o ethos e as competências científicas. Algumas dessas redes resultaram em situações que criaram possibilidades novas de bem-estar e emancipação. Outras, contribuíram para o aprofundamento das desigualdades, da violência e da guerra, da destruição ecológica. A história das ciências é, de facto, um exemplo particularmente rico de como um fenómeno que é, aparentemente, o “mesmo” pode, de facto, dar corpo às diferentes formas de globalização de que nos fala Boaventura de Sousa Santos e a que voltarei mais adiante.
4À redução das ciências a um modelo epistemológico único – o da física newtoniana –, erigindo a matematização em ideal de cientificidade respondeu a própria história das ciências com uma diversificação que viria a dar origem a uma multiplicidade de “ecologias de práticas” (Stengers, 1997), relacionadas com modelos epistemológicos distintos. As ciências tornaram-se, assim, uma constelação de práticas e de corpos de conhecimento. Diferentes disciplinas passaram a invocar modelos diversos de cientificidade, e foram muitas vezes atravessadas por tensões entre esses modelos. Por outro lado, confrontadas com a necessidade de lidar com o desconhecido e com a ignorância em relação às propriedades e comportamento futuro de novos objectos – como os organismos geneticamente modificados, os animais clonados, as doenças ambientais, os disruptores endócrinos, os priões ou as transformações do clima, por exemplo, ou seja, os objectos associados aos “riscos manufacturados” de que nos falam os teóricos da “sociedade de risco”, como Ulrich Beck (1992) –, a redução ao que já se sabe ou ao que se pode dizer com base no que se sabe entrou em colisão, muitas vezes, com a posição cautelar e edificante de interrogar e respeitar o que não se conhece, procurar produzir conhecimento novo na base de um reconhecimento do que não se sabe e do que se pode aprender de novo na relação com esses novos objectos. A atitude prudente ou de precaução na relação com os fenómenos que não se conhece ou se conhece mal e na acção sobre eles não constitui, por isso, uma renúncia ao saber ou à intervenção, mas, pelo contrário, a assunção de um risco específico, o de pôr à prova as nossas convicções e a nossa ignorância sem reduzir o que se desconhece ao que já se sabe e sem proclamar a irrelevância do que não podemos descrever por o desconhecermos.
5Apesar da “desunidade” do território das ciências (Galison e Stump, 1996), forjou-se destas uma imagem de unidade epistemológica e de modo privilegiado de acesso ao conhecimento do mundo natural e social, que transformou a Ciência num dos meios mais poderosos de promoção da globalização cultural no mundo contemporâneo, num dos terrenos mais importantes em que se enfrentam as dinâmicas contraditórias da globalização e da localização, da territorialização e da desterritorialização, num domínio em que se configuram de modo muito visível as hierarquias e desigualdades que definem as diferentes ordens mundiais que se foram forjando ao sabor das transformações históricas dos últimos cinco séculos.
6A produção das ciências realiza-se, nos nossos dias, em instituições e unidades de investigação que mantêm múltiplos vínculos e inter-relações com instituições ligadas a governos nacionais, responsáveis pela definição das políticas de investigação e de desenvolvimento e pela distribuição dos recursos financeiros, e também, crescentemente, em empresas ou laboratórios privados que definem os seus próprios objectivos e interesses. Muitas actividades que vão buscar às ciências os seus recursos e a sua legitimação social – como a medicina ou a engenharia – organizam-se em profissões numa base nacional. Mas tanto as ciências como as profissões de base científica fazem assentar a sua autoridade na invocação da validade universal dos seus conhecimentos e procedimentos, uma validade sancionada pela participação em comunidades que transcendem as fronteiras dos Estados nacionais. A transnacionalização é, sem dúvida, um dos processos que mais bem definem a especificidade das actividades e profissões associadas à ciência e à tecnologia. A emergência de entidades supranacionais como a União Europeia veio conferir uma acrescida visibilidade às modalidades de internacionalização e de articulação entre as escalas local, nacional e transnacional nesse domínio, e criar para elas um quadro institucional que tornou possível uma relativa estabilização de algumas dessas articulações.
7É importante reconhecer a especificidade dos processos de globalização das ciências quando confrontados com a transnacionalização e a globalização em domínios como a economia, a cultura ou a governação. Enquanto actividades socialmente organizadas, instituições e modos de conhecimento, as ciências modernas apresentam a particularidade de serem produzidas a partir de contextos locais que, através de um conjunto de tecnologias específicas, se articulam entre si de modo translocal, produzindo nesse processo uma universalidade que vai tão longe quanto as redes que se constituem por via dessa articulação e da sua irreversibilidade. Por outras palavras, a globalização da ciência não decorre de uma qualquer inerência da sua universalidade – isto é, da validade das suas proposições e procedimentos independentemente dos lugares e das circunstâncias em que eles são accionados –, mas de um trabalho de translocalização. É esse trabalho que nos permite, numa primeira aproximação e seguindo a tipologia dos modos de produção da globalização proposta por Boaventura de Sousa Santos (1995, 2001), descrever as ciências modernas, herdeiras da chamada Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, como um localismo globalizado, um conjunto de criações situadas no tempo e no espaço e que se globaliza em virtude da sua translocalização. Mas elas podem também, num segundo momento, ser consideradas como um globalismo localizado, como uma apropriação local de um fenómeno global. Uma particularidade deste segundo modo de globalização das ciências é o surgimento de formas de actividade científica que, concebidas originalmente como modalidades de translocalização dos saberes científicos, virão a transformar-se em formas “subalternas” e potencialmente geradoras de concepções de saber e de conhecimento alternativas. É este o caso da medicina tropical, inicialmente instituída como forma específica de imposição do saber médico oficial das metrópoles coloniais nos territórios colonizados, e que hoje se apresenta como um repositório de saberes e de competências sobre doenças e terapias que a medicina dos países centrais tende a ignorar ou a esquecer. Mas as ciências podem, também, ser apropriadas como formas de saber cosmopolitas, susceptíveis de servir a capacitação e a mobilização de energias emancipatórias e contra-hegemónicas, e não será certamente abusivo sugerir que certas formas de conhecimento científico – pense-se, por exemplo, no conhecimento sobre o genoma humano ou sobre a biodiversidade – possam ser consideradas como património da humanidade, que não deverá ser sujeito a apropriações privadas, comerciais ou excludentes.
8Os processos de translocalização das ciências e do conhecimento e dos objectos científicos podem assumir, em primeiro lugar, a forma de translocalização das tecnologias materiais através da reprodução, noutros lugares, do espaço material e das competências técnicas que definem um determinado tipo de laboratório. Nesta perspectiva, a globalização das ciências corresponderá à constituição de uma rede de laboratórios capaz de replicar ou de reproduzir de forma “robusta” os mesmos procedimentos. Uma consequência desta definição será a marginalização ou exclusão de formas alternativas ou locais de produção do conhecimento e do próprio conhecimento que neles se produz, relegando-os para o domínio dos “outros” desqualificados da Ciência. Em segundo lugar, a translocalização passa pela formação e recrutamento de cientistas e técnicos credenciados que, mesmo na ausência de condições materiais de produção de conhecimento novo, podem assumir a posição de porta-vozes autorizados e credíveis da Ciência e da sua validade universal, marginalizando ou excluindo aqueles que não possuem as credenciais escolares, académicas ou profissionais “certas”. A criação de instituições de formação – escolas, Universidades – é um aspecto fundamental desse processo. Por último, as ciências podem translocalizar-se através da circulação de publicações ou de outros objectos que “fixam” o conhecimento e permitem o seu transporte à distância. Dos manuais escolares às revistas especializadas e à Internet, é hoje diversificado o leque de suportes destas tecnologias. A autoridade e a credibilidade da ciência são, assim, incorporadas em objectos impressos, electrónicos ou de outro tipo, caracterizados pela sua condição comum de “móveis imutáveis” (Latour, 1987; Shapin e Schaffer, 1985).
9É possível cartografar a distribuição territorial dos laboratórios, assim como a distribuição dos indivíduos credenciados como cientistas, das instituições de educação e formação científicas ou das publicações e outros suportes do conhecimento científico (Nunes e Gonçalves, 2000a). Mas os laboratórios não são todos idênticos, e a sua capacidade de produção de conhecimento novo não é igualmente distribuída. Nos termos de Latour (1987), nem todos os laboratórios são centros de cálculo ou pontos de passagem obrigatórios, com capacidade para agir à distância de modo a modificar de maneira durável a actividade dos outros laboratórios. Alguns laboratórios possuem capacidade para utilizar ou reproduzir conhecimento produzido nas regiões centrais do sistema, nos centros de cálculo. Outros produzirão conhecimento que, apesar de novo ou mesmo de inovador, será declarado pelos centros de cálculo como de interesse estritamente local ou regional. Os cientistas poderão ser participantes activos na produção e legitimação do conhecimento, mas poderão também ver a sua actividade limitada à apropriação local ou à reprodução desse conhecimento que outros produzem, ou poderão, ainda, ver os resultados do seu trabalho desqualificados ou desvalorizados com base na definição, pelos centros de cálculo, do que é uma contribuição interessante, inovadora e legítima para o conhecimento num dado domínio. O sistema de ensino poderá limitar-se a reproduzir conhecimento e modelos de formação hegemónicos importados. E, finalmente, as tecnologias literárias ou de inscrição serão apropriadas de maneira distinta conforme os que as utilizam disponham das tecnologias materiais e da organização social indispensáveis à produção de conhecimentos científicos, ou sejam simplesmente testemunhas virtuais de procedimentos que não estão em condições de realizar. Mesmo quando formas alternativas de produção de conhecimento ou de tecnologias orientadas para a resolução de problemas locais se revelam eficazes em domínios como a produção artesanal, industrial ou agrícola, os transportes, o fornecimento de água, a produção de energia, a prevenção ou tratamento de problemas de saúde, a saúde reprodutiva ou a preservação de equilíbrios ambientais, a sua apropriação ou valorização para além do contexto local dependem, em geral, da sua compatibilização com os modos de conhecimento, as tecnologias e os interesses económicos e políticos “centrais”. Quando essa compatibilização não é possível, esses conhecimentos e tecnologias serão remetidos para a condição de “arcaicos”, “pré-modernos” ou “tradicionais”, “rivais” ou “alternativos”, conforme a perspectiva; eles serão feminizados, racializados, etnicizados ou localizados, opostos à alegada universalidade de um conhecimento científico que seria indiferente às dinâmicas e contradições associadas à situação de classe, ao sexo, à raça, ao local, à cultura ou à política (Harding, 1993, 1998; Nunes, 2001).
10Em Portugal, os mundos da ciência exibem um conjunto de especificidades históricas que são inseparáveis da condição semiperiférica da sociedade portuguesa. Entre elas, contam-se a sua heterogeneidade interna, expressa, nomeadamente, nas fronteiras fluidas ou flutuantes entre disciplinas e domínios de investigação; a heterogeneidade das carreiras dos cientistas; o envolvimento desigual de grupos e de instituições de pesquisa com mundos da ciência transnacionais; a forte feminização (em termos relativos) de muitas áreas da investigação, em paralelo com a dificuldade de acesso das mulheres aos lugares de topo das carreiras científicas e académicas e aos cargos de direcção de instituições de investigação; a acentuada dependência em relação aos financiamentos oriundos de programas europeus, a sobreposição tendencial entre os mundos da ciência e o mundo universitário, a marcada visibilidade tanto da transgressão de fronteiras como do “trabalho de demarcação” na actividade científica, o papel central dos cientistas com carreiras transdisciplinares “atípicas” e a elevada dependência das reputações científicas de redes transnacionais. Estas, por sua vez, podem assumir formas diversas. As várias áreas científicas, disciplinas, especialidades, instituições e equipas de investigação protagonizam diferentes aberturas específicas em relação a instituições e grupos de investigação noutros países, configurando uma complexa cartografia dos mundos das ciências.
11O caso português oferece-nos um observatório privilegiado dos modos de constituição de redes envolvendo cientistas e instituições científicas, que se apoiam numa segmentação interna que atravessa, simultaneamente, as áreas e disciplinas científicas e as unidades territoriais em diferentes escalas – local, nacional, transnacional – e na participação em redes internacionais, que coexiste com uma densidade relativamente fraca de inter-relações envolvendo cientistas e instituições no espaço nacional. Neste plano, poderemos falar de uma cultura científica de fronteira (Santos, 1994), que promove ao mesmo tempo uma forte heterogeneidade interna e a integração parcial e selectiva no contexto internacional. Esta dinâmica de fronteira das ciências em Portugal está bem documentada nas contribuições incluídas no volume Enteados de Galileu? (Nunes e Gonçalves, 2001b), que ajudam a identificar as condições históricas e contemporâneas de inserção de uma sociedade semiperiférica nos mundos transnacionais das ciências, sem esquecer os constrangimentos e oportunidades que essa inserção oferece para uma reconstrução crítica e multicultural dos saberes e do conhecimento.
- 1 O campo da inovação e do desenvolvimento tecnológico e das políticas nesse domínio tem sido objecto (...)
12É no quadro dos processos de “europeização” das ciências em Portugal que algumas das tensões que caracterizam a condição semiperiférica da sociedade portuguesa ganham maior visibilidade. O discurso e a prática políticas que Boaventura de Sousa Santos designou por “imaginação-do-centro” (Santos, 1993; Nunes, 2001) tem marcado, sobretudo desde a adesão do país às Comunidades Europeias (hoje União Europeia), uma espécie de definição oficial do “modo português de ser semiperiférico”. Se, por um lado, se afirma que Portugal é um país como os outros países europeus, as distâncias reconhecíveis entre indicadores e experiências das sociedades do centro e da sociedade portuguesa são reduzidos a um problema de “atraso”, resolúvel com tempo, recursos e esforço colectivo. Mas a integração europeia teve dois tipos de consequências importantes, umas no domínio da policy for science, outras no da science for policy.1
13Em relação à primeira (policy for science), Portugal beneficiou de fluxos financeiros consideráveis, que lhe permitiram criar, pela primeira vez na sua história, um sistema de investigação em ciência e tecnologia, com financiamento de infra-estruturas, de projectos (com um razoável equilíbrio entre áreas científicas, incluindo as ciências sociais e as humanidades) e de formação de jovens investigadores, e sujeito a avaliações periódicas por painéis internacionais. Para além disso, foram criados programas específicos para a educação científica e para a promoção da cultura científica, orientados para a “ciência tal qual se faz”. Em relação à science for policy, foram criados quadros normativos que obrigaram à produção de legislação nacional em áreas como o ambiente ou a genética humana, mas que, sobretudo, criaram um espaço de legitimação da intervenção activa de cidadãos. Estas transformações, contudo, são ainda frágeis. O financiamento da investigação continua fortemente dependente de fundos europeus, e o esforço financeiro do Estado português nesse domínio está muito longe do prometido e do desejável; tem havido pouco progresso em relação ao objectivo, a atingir até ao ano 2000, de dedicar 2 por cento do PIB a despesas de Investigação e Desenvolvimento (o valor actual é 0,77%). O emprego dos muitos jovens investigadores formados nos últimos anos é ainda precário e de curta duração, na maioria dos casos, e o financiamento da investigação está ainda abaixo das necessidades. São poucas ainda as unidades de investigação no sector privado (actualmente à volta de 20% do total), o que significa que muita da actividade do sistema público ou não-lucrativo é condicionada pelas prioridades das empresas, em domínios em que deveriam ser estas a investir na investigação e desenvolvimento. Quanto às políticas públicas, continua a não haver formas institucionalizadas de parecer científico para a produção de políticas públicas, e, ao contrário de outros países, não se verificaram progressos significativos – apesar de algumas experiências ainda limitadas e tímidas, mas também de alguns retrocessos – na promoção de políticas públicas de consulta e de deliberação que procuram lidar com problemas apresentando uma componente científica e técnica, em domínios como o ambiente, a saúde pública, o planeamento territorial e urbano, as políticas de energia e de transportes, as políticas sociais a educação ou as políticas relativas à toxicodependência.
14Estas características lembram-nos a diferença que faz para um país semiperiférico estar dentro ou fora de um espaço regional central, como o da União Europeia, e a diferença que faz ser um país central ou semiperiférico dentro do mesmo espaço. Poderemos continuar a falar, nestas condições, de condição semiperiférica, ou estará Portugal na posição daquilo a que Peter Lange chamou, na década de 1980 e referindo-se à Itália, o “perímetro do centro” (Lange, 1985)? Será que estar “na fronteira” corresponde, nestas circunstâncias, a estar no centro sem ser do centro?
15Os estudos incluídos em Enteados de Galileu? exploram, a partir de interrogações e de objectos empíricos distintos, várias expressões dessa condição semiperiférica ou de “perímetro do centro” no campo das ciências. Não se pretende que eles sejam representativos das diferentes orientações de pesquisa em curso em Portugal nos domínios dos estudos sociais da ciência ou da história das ciências; também não se procurou cobrir todas as áreas científicas ou os momentos críticos da introdução e apropriação das ciências modernas em Portugal. Essas são tarefas que têm mobilizado um conjunto já considerável de investigadores em várias disciplinas, e a que não é possível fazer justiça neste volume. Procurou-se, tão só, explorar um conjunto de experiências e de episódios históricos em que se manifestam, de maneira exemplar, as diferentes modalidades de relação entre Portugal enquanto país semiperiférico e essa forma cultural moderna por excelência que é a ciência.
16A condição dos “enteados de Galileu” não é feita apenas de subordinação, de marginalização, de dependência ou de “atraso”. O conjunto dos ensaios reunidos neste volume convida-nos a olhar para essa condição, não como uma fatalidade ou como uma exortação a “recuperar” esse atraso através da importação e da adopção de modelos de organização e de prática científicas oriundos dos países centrais, mas como um encorajamento a explorar as virtualidades do “estar na fronteira” – ou do “estar no centro sem ser do centro” – de que nos fala Ricardo Roque na sua contribuição, apropriando-se, criativamente, de uma expressão de Boaventura de Sousa Santos (Roque, 2001: 283). Essas virtualidades são reconhecíveis a partir de um descentramento das concepções dominantes do que é o saber e o conhecimento ou do que são as ciências. Estar, ao mesmo tempo, integrado nas dinâmicas transnacionais da investigação científica e responder, de maneira socialmente responsável, às condições situadas em que as ciências se fazem e em que são mobilizadas para a transformação do mundo e da sociedade obriga a pensar esse espaço de fronteira como um espaço dinâmico de invenção e de inovação, de exploração de novos processos de produção de conhecimentos mais críticos, mais participados e mais solidários.