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Recensões

Boyer, Robert (2020), Les capitalismes à lépreuve de la pandémie

Hugo Pinto
p. 158-161
Referência(s):

Boyer, Robert (2020), Les capitalismes à lépreuve de la pandémie. Paris: La Découverte, 200 pp.

Notas da redação

Revisto por Alina Timóteo

Texto integral

  • 1 Ver por exemplo: Boyer, Robert (2004), Une théorie du capitalisme est‑elle possible? Paris: Odile J (...)

1Robert Boyer, economista do Centre pour la Recherche Économique et ses Applications e diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, um dos mais influentes economistas heterodoxos da escola francesa da regulação1 discute em Les capitalismes à l’épreuve de la pandémie como o capitalismo atual reforçou a pandemia da covid-19, estruturando as bases para os impactos profundos da crise gerada. O livro percorre numa linguagem direta, durante nove capítulos, a génese da covid-19, as ligações institucionais entre a crise económica e a pandemia, as conexões entre a saúde, a economia e as liberdades públicas, a emergência de novos tipos de capitalismo, a alteração das relações internacionais e, em particular, o futuro da União Europeia e da moeda única. Boyer sublinha que para solucionar a crise pandémica é preciso voltar a incrustar a economia na sociedade e na política.

2Fruto de diferenças nas arquiteturas institucionais nacionais, ficou evidente para Boyer a grande diversidade de capacidades e de opções de resposta entre países à pandemia. Os graus de precariedade laboral, de erosão do investimento público e de serviços de saúde, da financeirização da economia e da especialização produtiva condicionaram as respostas e a aceitação destas, em particular do confinamento, por cidadãos e empresas. Ainda está por concretizar esta análise, apenas possível com o desejado fim da pandemia, mas para o autor as economias baseadas na concorrência nos mercados – as designadas economias liberais de mercado na taxonomia da literatura das variedades do capitalismo – demonstraram maiores vulnerabilidades face ao choque inicial provocado pela pandemia.

3As economias estavam já muito desequilibradas, resultado de um divórcio dos mercados financeiros com a economia real. Alguns setores foram profundamente afetados, como os dos transportes, do turismo ou do automóvel, mas a pandemia potenciou outros, como os alavancados pelo comércio eletrónico e pela indústria farmacêutica. Este movimento concentrou ainda mais riqueza nas plataformas web GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft).

4Face à incerteza radical, o economista francês sugere que o mimetismo institucional se generalizou a muitas esferas da sociedade. A saúde já vinha sendo menorizada nos anos mais recentes, com a mercadorização e a redução da oferta de serviços públicos. Contudo, a hierarquia de formas institucionais ficou abalada. O trilema saúde-economia-liberdade tem motivado acesa controvérsia. O colapso económico é mais grave do que as mortes provocadas pela covid-19? O valor atribuído à vida humana tem sido claramente dependente do quadro institucional existente.

  • 2 Ver Mazzucato, Mariana (2020), “Capitalism’s Triple Crisis”, Project Syndicate, 30 de março. Consul (...)
  • 3 Ver Reis, José (2020), Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos. Coim (...)

5Boyer destaca o papel atribuído ao Estado com o advento da pandemia, como sublinharam também muitos outros economistas, como Mariana Mazzucato ou José Reis. O Estado volta a ter o papel central na criação de valor e na inovação.2 Este ressurgimento não configura necessariamente nenhum tipo de estatismo, mas sim um aspeto fundamental para a regulação de uma economia que se torne capaz de cuidar de si mesma, assegurando a provisão de bens e serviços essenciais, que tenha poder de decidir os seus desígnios, capaz de quebrar dependências e limitar vulnerabilidades.3 Mas o papel do Estado não foi, nem é, internamente homogéneo, com as cidades e regiões a chamarem para si diferentes níveis de protagonismo e a clamarem por uma territorialização da política pública. Para Boyer, a pressão do capitalismo neoliberal que erodiu a capacidade de intervenção do Estado torna fundamental a sua reorganização.

6A covid-19 fez emergir várias tendências nas economias. As cadeias de produção são reduzidas em abrangência territorial e a produção relocalizada, os monopólios rejeitados, os stocks repensados. O consumo torna-se mais frugal, ligado ao bem-estar, e parece começar a despontar um novo entendimento entre a oferta dos bens públicos e privados. O investimento redireciona-se para o investimento produtivo e para a resiliência, não apenas a produtividade. A despesa pública reorienta-se para a saúde, educação e investigação, e consolidam-se dúvidas sobre a privatização de muitos domínios, como o da própria saúde, com um regresso do Estado social. Outras mudanças que podem surgir são: a expansão do teletrabalho e a discussão dos direitos dos trabalhadores no que toca à relação laboral; o fim da ilusão com a finança, com a redução de fluxos internacionais de capitais e da importância das bolsas no financiamento das empresas, e com a diminuição da inserção internacional das cadeias de valor globais.

7Para Boyer, as sociedades contemporâneas – marcadas pelas plataformas web e pela sociedade da vigilância –, podem, em resposta à pandemia, caminhar em vários sentidos: para uma sociedade concorrencial extrema, para uma república dos comuns, ou ainda para um controlo social pan-ótico. Segundo esta obra, os novos tipos de capitalismo que irão emergir poderão ser um capitalismo de Estado, colocando este ator no centro nevrálgico de todas as decisões; um capitalismo transnacional da informação, onde o protagonismo é dado à dimensão online com a consolidação do papel dos gigantes da internet; ou um biocapitalismo, onde a saúde se torna o pilar fundamental de toda a economia.

8Várias estratégias podem ser utilizadas para responder à inevitável pressão sobre a dívida pública: um default parcial ou total, uma recuperação económica intensa para pagar o aumento da base fiscal, políticas de austeridade, ou a aceleração da inflação e a monetização da dívida. Para o autor é evidente que as políticas de austeridade que falharam redondamente na resposta à crise financeira de 2008 não irão contribuir para a recuperação e a resiliência económica e social. É fundamental acelerar mudanças estruturais nas economias, reinventando a vinculação com a sociedade e o ambiente. Um mundo globalizado precisa de governação transnacional com consciência.

9A análise da pandemia global fica ainda marcada por um vocabulário impróprio herdado do passado. Boyer reafirma que a racionalidade económica dominante, ainda ancorada em princípios da escola neoclássica, é claramente posta em causa pela pandemia e pela incerteza radical. É a teoria que decide o que conseguimos, ou não, ver – e por isso é imprescindível uma ciência económica diferente da atual. Os princípios do estudo da complexidade e da teoria evolucionista são essenciais para pensar nos mecanismos de seleção, adaptação e sobrevivência face aos desequilíbrios nas economias perante a pandemia. Para se conseguir aprender a partir das crises sucessivas, urge a reavaliação do que é boa ciência para a política pública. O falhanço na análise da pandemia é evidente também na adjetivação excessiva da crise, como “sem precedentes” ou “inédita”, que são pouco prudentes face à recorrência de pandemias ao longo da história da humanidade. 

10O autor reforça que os efeitos da pandemia podem ser longos, como aliás sugere a memória de outras pandemias. A obsessão pela resolução rápida pode, assim, não ser a melhor abordagem. A evolução recente das economias mostra transições demasiado bruscas entre o otimismo exacerbado, o pessimismo e o derrotismo, evidentes nas bolsas ou no setor imobiliário. A mudança nas economias pode ser bem mais profunda que as consequências estritas do confinamento. Mas poderá a pandemia ser o ponto de ignição para um novo paradigma económico? Muitas transformações que demorariam muito mais tempo para ocorrer foram já precipitadas por esta mesma pandemia. O futuro mantém-se, portanto, em aberto.

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Notas

1 Ver por exemplo: Boyer, Robert (2004), Une théorie du capitalisme est‑elle possible? Paris: Odile Jacob; e Boyer, Robert; Saillard, Yves (2002), Théorie de la régulation, l’état des savoirs. Paris: La Découverte.

2 Ver Mazzucato, Mariana (2020), “Capitalism’s Triple Crisis”, Project Syndicate, 30 de março. Consultado a 01.04.2021, em https://www.project-syndicate.org/commentary/covid19-crises-of-capitalism-new-state-role-by-mariana-mazzucato-2020-03.

3 Ver Reis, José (2020), Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos. Coimbra: Edições Almedina.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Hugo Pinto, «Boyer, Robert (2020), Les capitalismes à lépreuve de la pandémie»Revista Crítica de Ciências Sociais, 126 | 2021, 158-161.

Referência eletrónica

Hugo Pinto, «Boyer, Robert (2020), Les capitalismes à lépreuve de la pandémie»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 126 | 2021, publicado a 27 janeiro 2022, consultado a 06 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/12522; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.12522

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Autor

Hugo Pinto

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra | Faculdade de Economia, Universidade do Algarve
Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal
hpinto@ces.uc.pt
orcid: https://orcid.org/0000-0002-8497-4798

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