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Caroline Moser; Fiona Clark (orgs.), Victims, Perpetrators or Actors? Gender, Armed Conflict and Political Violence

Tatiana Moura
p. 145-148
Referência(s):

Caroline Moser; Fiona Clark (orgs.), Victims, Perpetrators or Actors? Gender, Armed Conflict and Political Violence. London/New York: Zed Books, 2001, 208 pp.

Texto integral

1A maioria das medidas de construção da paz levadas a cabo pela Organização das Nações Unidas, pelos Estados e por algumas ONGs limita-se aos domínios tradicionais da manutenção da paz, reconstrução de infra-estruturas e ajuda humanitária de emergência. Neste tipo de iniciativas, a participação das mulheres é frequentemente negligenciada. No entanto, coexistem com estas práticas formas alternativas de construção da paz, que incluem a prática da não-violência, o reconhecimento e respeito pelos direitos humanos ou a capacitação das mulheres nas esferas económica, cultural, social e política, contribuindo para uma abordagem integrada que não exclua nenhum grupo (Mazurana e McKay, 1999: 1).

2Victims, Perpetrators or Actors? Gender, Armed Conflict and Political Violence é uma obra centrada precisamente numa abordagem da relação entre diferença sexual e conflitos armados. Este livro é o produto de uma conferência global sobre “Diferença Sexual, Conflitos Armados e Violência Política”, realizada em Junho de 1999 no Banco Mundial, em Washington D.C., que contou com a participação de representantes de ONGs e agências internacionais oriundas da América Latina, Médio Oriente, África, Ásia e Europa. Caroline Moser é antropóloga social e especialista em políticas sociais, além de coordenadora de um projecto do Banco Mundial sobre a violência na Colômbia. De entre os trabalhos já publicados podem referir-se as obras Violence in a Post‑Conflict Context: Urban Poor Perceptions from Guatemala (Moser e McIlwaine, 2001) e Gender Planning and Development: Theory, Practice and Training (Moser, 1995). Fiona Clark é investigadora independente, colaborou com C. Moser no Banco Mundial e foi responsável pela conferência que deu origem a esta publicação.

3O livro divide-se em sete partes temáticas, contendo um total de treze capítulos. Após a introdução das organizadoras (Moser e Clark), seguem-se dois textos de enquadramento (Cockburn e Moser) e dez estudos de caso agrupados por tipos de abordagens (Turshen, Zarkov – as políticas de vitimização: abuso sexual e violência; Sharoni, Butalia – identidade sexual, poder e actuação; Ibañez – mulheres enquanto actores nos conflitos armados e violência política; Meertens – questões de identidade em situações de deslocamento; Cordero, Mulholland, Moser e McIlwaine – actuação e identidade na construção de uma paz sustentável; e Krog – diferença sexual e violência na Verdade e Reconciliação), cada um apresentando uma narrativa sobre aspectos particulares de uma dimensão de identidade sexual dos conflitos armados ou da violência política.

4O objectivo de fundo desta obra é o de reflectir sobre os papéis, interesses e necessidades específicos de mulheres e homens enquanto actores em situações de conflito armado e de violência política. As autoras pretenderam, desta forma, contribuir para uma mudança na abordagem dos conflitos armados e da violência política, que, apesar de ser um tópico já clássico na literatura, não tem incluído a reflexão sobre a especificidade da participação efectiva das mulheres. Com efeito, tem sido dominante nas análises da violência política e dos conflitos armados a adopção de estereótipos sexuais. Por um lado, verifica-se a omissão da participação das mulheres nas forças armadas, guerrilhas, forças paramilitares ou nas operações de paz (Enloe, 1993). Por outro, tem-se recorrido à estereotipificação, ao essencialismo, à universalização ou à divisão simplista dos papéis, rotulando os homens como perpetradores da violência e actores activos durante os conflitos (associados à agressividade) e as mulheres como vítimas e defensoras da paz (associadas à passividade) (Boutros-Ghali, 1992; United Nations, 1996; Yuval-Davis, 1997; Lentin, 1997; Kelly, 2000; Jacobs et al., 2000). Esta lacuna, na opinião das autoras, tem importantes consequências para o conflito em si mesmo e para a fase de reconstrução pós-bélica.

5Ho-Won Jeong, em Peace and Conflict Studies – An Introduction (2000: 77), considera que as identidades sexuais são um elemento essencial da compreensão da estrutura social e da origem da violência, uma vez que são usadas como justificação de um modelo de relações humanas hierárquicas. A construção de categorias femininas e masculinas, antiteticamente construídas no contexto ocidental, está directamente ligada às relações de poder decorrentes da atribuição de significados às identidades sexuais. Esta categorização foi usada para criar uma hierarquia de valores e relações de poder desiguais entre os seres humanos, encarada pelas feministas como fruto do sistema patriarcal, que perpetua a cultura da violência a vários níveis da sociedade (Boulding, 1976). Neste livro, e em particular na análise contextual de Cockburn, é analisada a importância das relações de poder decorrentes de construções locais de masculinidades e feminilidades, e do modo como estas estão ligadas às questões de actuação e participação, através da comparação das diferentes leituras que podemos obter quando adoptamos uma de três abordagens possíveis na análise de conflitos armados e violência política – assumir as diferenciações sexuais, ignorar estas diferenciações ou problematizar estas mesmas diferenciações. Optando por uma abordagem feminista, a autora aplica-a a quatro momentos do conflito – antes de irromper a violência armada, durante a guerra, em processos de construção da paz e em períodos de pós-guerra concluindo que, em cada fase, as actuações feminina e masculina (especificamente contextualizadas nos sistemas existentes), as identidades que geram e as relações de poder entre elas, comprometem os papéis de mulheres e homens enquanto actores sociais. A mesma preocupação pela formulação de um quadro operacional que garanta a inclusão de preocupações específicas das mulheres nas negociações de paz e na reconstrução pós-bélica marca o segundo capítulo de enquadramento de Caroline Moser. A fundamentação lógica para este quadro começa pelo reconhecimento de que tanto o conflito como a violência são moldados por diferentes papéis, relações de poder e identidades sexuais atribuídos segundo estereótipos. Desta forma, mulheres e homens enquanto actores sociais sentem a violência e o conflito de diferentes modos, têm diferentes necessidades e interesses e diferente acesso a recursos como o poder e a tomada de decisão. A autora descreve este quadro em quatro secções: categoriza a violência (política, económica e social), adoptando assim uma visão holística e criticando a tendência de classificar a violência relativa a identidades sexuais como “social”, argumentando que o posicionamento de mulheres e homens em termos destes três tipos de violência é moldado pela atribuição de papéis sexuais na sociedade, enquanto vítimas ou perpetradores; identifica factores causais da violência em diferentes níveis (individual, inter-pessoal, institucional e estrutural), com o objectivo de verificar por que motivo a violência afecta de modo diferente mulheres e homens; examina os custos e as consequências do conflito e da violência; e, finalmente, apela ao desenvolvimento de uma abordagem política integral uma vez que, até muito recentemente, a análise da violência e as intervenções de redução da violência não têm incluído uma perspectiva centrada sobre a identidade sexual, tendendo a dar prioridade a um tipo de violência em particular e a um conjunto de factores causais e grupos alvo. Esta necessidade de uma abordagem política integral, mais alargada, é partilhada por outras autoras, como Dyan Mazurana e Susan McKay (1999).

6Estas grelhas analíticas são tratadas em vários estudos de caso, que se dividem em duas áreas de discussão: a questão da actuação, identidade e relações de poder nos conflitos armados e na violência política e a questão da identidade e tipos de actuação na reconstrução pós-bélica e construção da paz. Nas duas abordagens o principal objectivo é o de questionar ou tentar inverter estereótipos, circunscrevendo os estudos a um contexto geográfico específico. Na primeira linha de discussão, incluem‑se temas como a desconstrução das representações sexuais nos conflitos (caso da ex‑Jugoslávia, analisado por Dubravka Zarkov), a aplicação da categorização da violência (desenvolvida anteriormente por Moser) e a análise de factores causais dos conflitos (casos do Ruanda e de Moçambique, analisados por Meredeth Turshen), o conflito enquanto espaço de capacitação das mulheres e de reflexão sobre as prioridades dos movimentos de mulheres (estudos de Simona Sharoni e Urvashi Butalia), o desafio ou a inversão de estereótipos durante e após os conflitos armados e violência política (estudo de caso de Ana Cristina Ibañez sobre as mulheres ex‑combatentes em El Salvador). A segunda linha de discussão prende-se com o período pós-conflito armado e violência política, de reconstrução e construção da paz, analisando os processos através dos quais mulheres e homens reconstroem as suas vidas e renegoceiam os seus papéis sexuais (explícito no estudo de caso de Donny Meertens), através de novos modelos de organização, de formas inovadoras de trabalho, de determinação de níveis de confiança em organizações locais (Isabel Coral Cordero, Marie Mulholland, Caroline Moser e Cathy McIlwaine).

7No entanto, um dos principais objectivos deste livro, senão o principal, é o de apelar à necessidade de desenvolver uma perspectiva inclusiva e integrada, que tenha em vista a redução de todos os tipos de violência, que tenha presente que mulheres e homens sofrem de forma diferente estes tipos de violência, e que necessitam de respostas diferentes. Este apelo está bem presente no último capítulo sobre testemunhos de violência na Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul e sobre formas de reconstrução de uma sociedade saída de um período de conflito armado e violência política, em particular quando Krog argumenta que “(a) simples presença de mulheres e do seu modo de pensar instintivo e inclusivo [no processo de reconstrução] fará com que as pessoas actuem pelo menos num contexto mais amplo” (p. 216).

8Esta obra resulta num contributo de grande valor para os estudos sobre conflitos armados e violência política por dois motivos. Em primeiro lugar, porque tenta ultrapassar a imagem simplista e universalista das mulheres enquanto principais vítimas durante os períodos de conflito e enquanto “construtoras naturais da paz”, recusando a abordagem essencialista que de há uns anos a esta parte tem caracterizado alguma da literatura feminista sobre movimentos pacifistas. A importância da participação concreta das mulheres em iniciativas de redução da violência e de reconstrução pós-bélica tem sido justificada de diversas formas, desde o pacifismo ‘natural’ inerente ao feminino, que por vezes se torna redutor por reproduzir estereótipos que deveriam ser ultrapassados, passando pelo sentido maternal de responsabilidade, crenças religiosas, militarismo ou luta colectiva contra a violência e opressão. No entanto, a construção da paz tem uma especificidade cultural e local, tal como os conflitos armados que a tornam necessária. E por não se tratar de uma fórmula ou definição global, as iniciativas locais de redução da violência, reconstrução ou reabilitação pós-conflito, que incluem as abordagens tradicionais de construção da paz ou iniciativas alternativas, devem ser tidas em consideração e desenvolvidas. É desta especificidade que nos dá conta Victims, Perpetrators or Actors? Gender, Armed Conflict and Political Violence. Em segundo lugar, a importância do contributo deste livro justifica-se pela tentativa de manter e espelhar a diversidade que caracteriza o movimento de mulheres ou o feminismo em geral. Na opinião de Mazurana e McKay (1999), tal como as abordagens que não consideram as diferenciações sexuais privilegiam as experiências masculinas e negligenciam os impactos específicos dos conflitos e da violência sobre as mulheres, as análises que empregam categorias monolíticas de “mulheres” e “experiências de mulheres” falham por não considerarem a diversidade e estratificação entre as próprias mulheres, que resultam em diferentes respostas, mecanismos e posições individuais num determinado contexto.

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Bibliografia

Boulding, Elise (1976), The Underside of History: A View of Women through Time. Boulder, CO: Westview.

Boutros-Ghali, Boutros (1992), An Agenda for Peace. New York: United Nations Publications.

Enloe, Cynthia (1993), The Morning After: Sexual Politics at the End of the Cold War. Berkeley: University of California Press.

Jacobs, Susie et al. (2000), States of Conflict: Gender, Violence and Resistance. London/New York: Zed Books.

Jeong, Ho-Won (org.) (2000), Peace and Conflict Studies – An Introduction. Burlington: Ashgate.

Kelly, Liz (2000), “Wars against Women: Sexual Violence, Sexual Politics and the Militarised State”, in Susie Jacobs et al. (2000), States of Conflict: Gender, Violence and Resistance. London/New York: Zed Books.

Lentin, Ronit (org.) (1997), Gender and Catastrophe. London/New York: Zed Books.

Mazurana, Dyan; McKay, Susan (1999), Women and Peacebuilding. Montreal: International Centre for Human Rights and Democratic Development.

Moser, Caroline (1995), Gender Planning and Development: Theory, Practice and Training. New York/London: Routledge.

Moser, Caroline; McIlwaine, Cathy (2001), Violence in a Post-Conflict Context: Urban Poor Perceptions from Guatemala. Washington, D.C.: World Bank Publications.

United Nations Organization (1996), An Inventory of Post-Conflict Peace-Building Activities. New York: UNO.

Yuval-Davis, Nira (1997), Gender and Nation. London: Sage Publications.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Tatiana Moura, «Caroline Moser; Fiona Clark (orgs.), Victims, Perpetrators or Actors? Gender, Armed Conflict and Political Violence »Revista Crítica de Ciências Sociais, 64 | 2002, 145-148.

Referência eletrónica

Tatiana Moura, «Caroline Moser; Fiona Clark (orgs.), Victims, Perpetrators or Actors? Gender, Armed Conflict and Political Violence »Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 64 | 2002, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 12 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1241; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1241

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Autor

Tatiana Moura

Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde frequenta o mestrado “As sociedades nacionais perante os processos de globalização”. Assistente de investigação do Núcleo de Estudos para a Paz do CES (projecto “Conhecimento crítico e movimentos ambientalistas: o ecofeminismo entre o Norte e o Sul”).
tatimoura@hotmail.com

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