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Maria Manuel, Paula Rego’s Map of Memory. National and Sexual Politics

Rui Bebiano
p. 167-169
Referência(s):

Maria Manuel, Paula Rego’s Map of Memory. National and Sexual Politics. Lisboa: Hants, Ashgate, 2003, 220 pp.

Texto integral

1Foi no princípio da década de 80, longe já da tempestade cultural do pós-Abril, que começaram a surgir os primeiros estudos sistemáticos acerca do Estado Novo que puderam ser concebidos sem um manifesto parti-pris. Esse então novo espaço de análise, retirado de início à prática exclusiva do jornalismo de investigação por alguns historiadores, passou pouco depois a ser também abordado pela ciência política, pelos estudos literários, pela sociologia, pelas ciências da educação ou pela antropologia, num processo de crescente permuta de saberes. Vozes do Povo, uma obra colectiva acabada de editar pela Celta, funciona como testemunho notável dessa pluralidade disciplinar, aplicada, neste caso, ao reconhecimento do processo de folclorização em Portugal. No entanto, este esforço manteve-se durante muito tempo confinado a observações dominadas por uma perspectiva essencialmente historicista e retrospectiva, empenhada em observar, descrever e interpretar o colectivamente vivido em função dos factos e dos fenómenos produzidos no interior do tempo-passado que o acompanhava. Quer isto significar que os fenómenos de integração cultural produzidos ao longo da época em causa, nomeadamente aqueles que puderam ir sendo armazenados pelo território de memória, afirmando-se através de um trajecto de extensa duração que incluía o reflexo das sucessivas práticas vivenciais, permaneciam praticamente ignorados.

2Não se questionava assim o papel dinâmico e integrador das experiências de vida, e menos ainda os reflexos traumáticos que estas pudessem conter e transportar até ao presente. Ao longo de sensivelmente vinte anos, omitiram‑se, nas abordagens propostas pelas ciências sociais e humanas – apesar de mais cedo terem sido integradas na criação literária e artística –, tanto a memória legada da cultura do salazarismo que sobreviveu à sua derrocada, como a referência a experiências capazes de deixarem marcas profundas no psiquismo individual e colectivo, como ainda o fortíssimo impacte de uma propaganda política intensa e de uma educação fortemente dirigida e autoritária. O mesmo aconteceu com a reminiscência de uma sexualidade vivida dentro de parâmetros extremamente rígidos, ou com as ondas de choque da violência, transmutada em guerra a partir de um dado momento, que se manteve sonegada dos relatos e afastada do quotidiano. Apesar da imediata visibilidade do Labirinto da Saudade, publicado em 1978 por Eduardo Lourenço – onde se falava já da necessidade de se proceder a “uma autêntica psicanálise do nosso comportamento global” – mantinha-se o esforço de levantamento de um imaginário de ruptura, assente nas novas convicções democráticas e europeístas, que preferia fechar o álbum do passado a observá-lo na sua continuidade.

3Neste contexto, o livro de Maria Manuel Lisboa (MML) sobre a pintura de Paula Rego (PR) articula-se com um esforço ainda pioneiro. A partir de uma abordagem detalhada de parte importante da obra da pintora – principalmente aquela que se desenvolveu a partir de 1980 – a autora procura mostrar de que forma, após um período centrado em trabalhos com acrílico e de colagem, esta evoluiu para “uma arte narrativa mais naturalista”, coincidente com um período ao longo do qual “a dimensão do pessoal e do familiar contaminou a sua preocupação política e pedagógica com a vida nacional portuguesa” (p. 15). Será sobre este pano de fundo que, de uma forma particularmente original, MML irá identificar uma memória dinâmica, centrada numa análise muito detalhada da obra da artista. Esta articula os interesses mais pessoais de PR com um background de infância – o tempo vivido em Portugal, desde o nascimento até à mudança para Inglaterra em 1951, com apenas dezasseis anos – que, varrido para debaixo do tapete por muitos dos seus compatriotas, parece aqui revelar-se omnipresente, evocando a experiência evidente, ou subliminar, mas assumida, do salazarismo e do seu destino. Aliás, a pintora tem considerado repetidamente ser “sempre e visceralmente portuguesa”, afirmando que as suas pinturas nunca foram sobre outra coisa que não sobre Portugal (p. 4). A detalhada abordagem dos últimos vinte anos da obra de PR é, por isso, desenvolvida aqui a partir de um pressuposto, de acordo com o qual os trabalhos deste período integram uma elevadíssima carga simbólica, em condições de remeter todas as leituras para uma incontornável articulação com os sinais fundadores que integram a perspectiva distanciada, mas intensa e omnipresente, que PR possui do seu país.

4A identificação desses elementos simbólicos remete para áreas que dizem simultaneamente respeito à vida individual e à vida colectiva, através de formas de representação que têm como referente a presença da autoridade, a iconografia de raiz histórica, a vida familiar, a experiência da sexualidade, o lugar da mulher ou a quietude do tempo e da paisagem, de acordo com uma definição imagética e conceptual que se inscreve claramente dentro de um certo imaginário do universo português pré-revolucionário.

5Tal como é mostrado por MML, estas formas são construídas, na pintura da artista, a partir de um conjunto de referências que integram em larga medida os “valores de Braga” – Deus, Pátria, História, Autoridade, Família, Trabalho – matriciais na definição do salazarismo enquanto doutrina e arquétipo cultural e proclamados pelo ditador em Maio de 1936. Por outro lado, a figura do próprio Salazar, enquanto protótipo-homem providencial destinado a promover e a modelar um ideal de cidadão, encontra-se presente na própria pintura de PR, revelando-se de uma forma quase óbvia em Partida e A Dança, quadros de 1988. Todavia, este referencial não é estabelecido, de forma alguma, sem uma forte contrapartida iconoclasta, a qual, como a autora deste livro sublinha, “se aproxima por vezes do profano”, definindo uma perspectiva violenta e subversiva de fragmentos de um passado, de um acontecido, que fora apresentado na sua fonte primordial como modelar e inapelável.

6Todo este esforço é desenvolvido, de uma forma coerente, muito documentada e detalhada, ao longo do volume. Desde logo na importante introdução, onde se apresentam, aos leitores de língua inglesa, os quadros basilares da política e da moral do salazarismo, na sua ligação com a vida e a obra, ambas distantes mas feitas de constantes regressos, de PR. Central é também, neste contexto, o primeiro capítulo de Paula Rego’s Map of Memory, no qual se procede a uma releitura da obra da pintora no período que antecede a década de 1980, em ligação com os processos de identificação política e pessoal de Portugal e com os reflexos que desde cedo eles foram tendo na sua obra. No segundo capítulo, procura fazer-se a identificação de um conjunto de símbolos e de figuras que, de uma maneira ou de outra, foram integrando na pintura de PR uma parte da vida pessoal e da sua comunidade de origem. O capítulo terceiro tenta principalmente a apropriação de um conjunto de sinais que funcionam como forma de integração da vida familiar e sexual numa espécie de universo primordial proposto pela autora e ao qual ela permanece unida. Numa abordagem mais específica, o último capítulo, o quarto, trata o corpo feminino e os quadros de PR sobre o aborto, procedendo, uma vez mais, a uma “leitura portuguesa” destes temas. Por fim, uma conclusão bastante prospectiva procura definir o universo da pintora por analogia com outras construções detectadas no campo geral da produção artística, mostrando-o como um mundo próprio e de alguma forma irrepetível, mantendo uma ligação ao passado que, ao mesmo tempo, foi capaz de encontrar as condições para percorrer o seu próprio caminho.

7No geral, a autora fornece-nos, através da sua leitura pessoal e comparada da obra de PR, uma perspectiva simultaneamente específica e panorâmica, que nos permite reconhecer elementos fundamentais na definição da nossa peculiar contemporaneidade. Foi ainda Lourenço quem anotou que, ao longo de décadas, tudo, ou o essencial, parecia ao português estar sempre em algum outro lado, nas Paris, Londres ou Nova Iorque “que não éramos, nem podíamos, ser”. Maria Manuel Lisboa revela-nos aqui, por interposição da sua leitura original, e de uma certa forma ousada, da obra de Paula Rego, que o inverso se passou igualmente. Algures, longe do solo materno, permanecia, na actividade criadora de uma portuguesa da diáspora, uma demanda das raízes destinada a preservar, e ao mesmo tempo a reconstruir, a memória de um conjunto de sinais e de experiências com as quais os Portugueses efectivamente conviveram. Será também por isso que a obra de Paula Rego quase sempre “dói”. Como dói, até que os reconheçamos e integremos, a lembrança de todos os traumas.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Rui Bebiano, «Maria Manuel, Paula Rego’s Map of Memory. National and Sexual Politics»Revista Crítica de Ciências Sociais, 68 | 2004, 167-169.

Referência eletrónica

Rui Bebiano, «Maria Manuel, Paula Rego’s Map of Memory. National and Sexual Politics»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 68 | 2004, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 16 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1088; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1088

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Autor

Rui Bebiano

Professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais, onde coordena o projecto «Culturas Juvenis e Participação Cívica: diferença, indiferença e novos desafios democráticos». Publicações mais recentes: “As esquerdas e a oposição à Guerra Colonial”, A Guerra do Ultramar: Realidade e ficção. Lisboa, Editorial Notícias - Universidade Aberta, 2002; “Temas e problemas da história do presente”, A história tal qual se faz, Lisboa, Edições Colibri, 2003; e O poder da imaginação. Juventude, revolta e resistência nos anos 60, Coimbra, Angelus Novus, 2003.
ruibebiano@mail.telepac.pt

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