1Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos queremos imaginar um povo feliz que temos um problema com a história, o que faz de nós um povo distraído e de curta memória. Por um complexo jogo de luz e sombras, rasuramos do longo passado episódios infelizes, atirando sobre eles sucessivas camadas de silêncio, e compensamos essa ausência com fogos-fátuos de uma mitologia delirante. Cerramos os olhos à realidade, para os abrir extasiados ao vazio do imaginário mais vertiginoso. E, no entanto, esses episódios silenciados perduram na razão directa do seu recalcamento. São os traumas que a psicanálise obriga a encarar, a verbalizar e até a reviver, sob pena de sucumbirmos à compulsão da repetição, que é a forma psíquica do destino.
2Escondemos demasiados esqueletos no armário, que um dia, quando menos esperamos, nos caem aos pés. Guardamos no bolso bombas ao retardador que vão ardendo lentamente, e que, quando explodem, nos deixam total ou parcialmente inutilizados.
3Entretanto, fingimos que tudo vai bem. Somos exímios gestores do silêncio, mesmo quando falamos. Especialmente quando falamos. Dizia, a propósito, Adolfo Casais Monteiro: “o português não é nada inclinado ao conhecimento de si próprio. Gosta imenso de falar de si, mas daí a conhecer-se, vão mundos”. Esta magnífica síntese traduz, como muito bem assinala Boaventura de Sousa Santos, “uma das contradições estruturantes da nossa personalidade colectiva, onde se casam de forma surpreendente um gosto exagerado pelo falar de si com um autodesconhecimento que a própria fala, em vez de atenuar, potencia” (Santos, 1993).
4Na verdade, este falar de si, disperso, fragmentário, gratuito e distraído, é quase sempre a outra face de um silêncio que se quer preservar. A nossa sociedade está cheia de ruídos tagarelas e de pesados silêncios. Uns e outros escondem pequenas ou grandes tragédias inominadas, mas nem por isso menos tragédias, ou talvez até a mais refinada e incomunicável das tragédias, como insistentemente nos tem lembrado, sem grande proveito, Eduardo Lourenço, justamente a propósito da maior das nossas tragédias actuais: a Guerra Colonial. Cada vez mais insistentemente designada de novo por Guerra do Ultramar…
5No tempo da Censura, fomos iludindo o silêncio com discursos transversais, enredados de subtilezas, meias palavras, metáforas, ambiguidades, analogias, e até com jogos de ironia e de sarcasmo, cujo efeito foi a desconstrução do sentido, o estilhaçar em mil pequenos sentidos do sentido global e autêntico dessa guerra.
6A começar pelo poder político: o que havia não era guerra, mas uma revolta a exigir uma contra-revolta. Os soldados não iam para a guerra, mas em “Missão de Soberania”. E, mesmo no meio militar, havia todo um glossário, entre o anedótico e o evasivo, para não chamar as coisas pelos nomes. Os mobilizados que chegavam de novo eram, respectivamente, os maçaricos para Angola, os checa-checa para Moçambique, os piriquitos para a Guiné (piriquito é pior do que terrorista, dizia-se em jeito de boas vindas…). Os generais do Estado‑Maior eram os generais de alcatifa, ou de ar condicionado, a metralhadora do inimigo era a costureirinha.
7Guerra a sério, não havia, mas sim pequenas guerras, e essas, fora das zonas de combate: nas repartições, nas messes, nos hospitais, nas lojas, nos espaços de convívio públicos e privados, onde o apelo à normalidade mais se fazia sentir, aí sim, fazia-se a guerra, pequena, banalizada e até parodiada.
As próprias mulheres ficavam com a sua guerra, que era a gravidez, a amamentação, algum pequeno emprego pelas horas da fresca. Uma loja de indiano e de chinês era uma guerra. Como vai aqui a sua guerra? – já tinha o noivo perguntado a um paquistanês que vendia pilhas eléctricas, de mistura com galochas e canela… (Jorge, 1988: 74)
8Hoje, verifica-se quão difícil tem sido recentrar, a sério e a fundo, essa questão nacional, devido às sucessivas desfocagens que vem sofrendo. E descobrimos como essas desfocagens persistem como efeitos, mesmo desaparecidas as causas. Abolida a Censura, o silêncio hoje consentido parece ser um perverso sucedâneo do silêncio antes imposto.
9É certo que se tem falado seriamente da Guerra Colonial, em já numerosos encontros, colóquios e debates, bem como através de muitos e importantes estudos e análises de natureza económica, política, militar, de incontestável mérito. É sobretudo verdade que, de forma progressiva, se vem afirmando uma pujante literatura de guerra, em que se conjuga o dissídio, a denúncia, o memorialismo e o confessionalismo, a culpa e a catarse, a força testemunhal e autobiográfica. Decisivamente, é no campo da literatura que vamos encarando de frente os nossos fantasmas. Ou seja: na solidão de um encontro pessoal e íntimo entre escritor e leitor.
10Contudo, como observa Eduardo Lourenço, “apesar de esses romancistas que viveram a guerra de África, salvarem a honra do convento, não foram as suas obras sobre os célebres acontecimentos africanos que lhes trouxeram qualquer aura. Essa parte da sua obra, têm de vivê-la como exterior às obras que os consagraram e tiveram pouco sucesso junto do público metropolitano, como A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge, ou a grande contra-epopeia de Lobo Antunes, As naus” (Lourenço, 1999: 221).
11Por seu lado, tanto o cinema como a televisão, em clara oposição ao que se verifica em países que viveram experiências idênticas, pouco se interessaram por esse tema. Destaque para Um adeus português de João Botelho, Non ou a vã glória de mandar, de Manoel de Oliveira, e Ao Sul de Fernando Matos Silva, no primeiro caso, e para a peça Um jeep em segunda mão de Fernando Dacosta, e o telefilme Monsanto, de Ruy Guerra, no segundo caso. Não tivemos ainda o nosso Coppola, justamente porque não incorporámos as nossas tragédias, nem sequer as vivemos como nossas, a não ser como acidentes lamentáveis, rapidamente ocultados, porque incompatíveis com a imagem que temos de nós como povo.
12Nesse sentido, o regime democrático, nos 29 anos que já leva, não conseguiu construir uma contra-imagem nacional suficientemente consistente para opor à imagem laboriosamente construída pelo salazarismo ao longo de 48 anos. A ideia tantas vezes repetida de que encerrámos um ciclo histórico, “o ciclo do império”, paradoxalmente não foi suficientemente forte para desencadear energias colectivas de mudança e transformação radical. Bem pelo contrário, reciclámos rapidamente esse capital, reconvertendo-o à mais poderosa e persistente imagem de “país saudoso de si mesmo como império” na feliz expressão de Lourenço, hoje, como ontem, mais sonhado do que vivido.
13O poder democrático, e seus sucessivos representantes, prisioneiro da ficção consensualista, esgota-se na busca desesperada do que nos liga, e nunca do que nos separa. Sem coragem nem arrojo, limita-se a ir a reboque de pressões e de influências que surgem quer da sociedade civil, quer da instituição militar, compreensivelmente a mais dilacerada e ainda hoje profundamente dividida por essa guerra. Em nome do consenso e da pacificação, acolhe iniciativas da Liga dos Combatentes, como a que culminou no primeiro acto público de homenagem aos ex-combatentes do Ultramar (sic): o monumento do Forte do Bom Sucesso. Pouco tempo depois, apoia a cerimónia da colocação de placas com os nomes dos militares mortos; posteriormente, a colocação da chama da pátria nesse monumento; e, já com este governo, a colocação de dois militares de sentinela permanente no referido monumento. Actos estes de enorme e evidente carga simbólica, impulsionados mais pela activíssima Associação de Comandos, do que propriamente pela referida Liga dos Combatentes, que, tendo iniciado o processo, se viu claramente ultrapassada.
14Igualmente reconheceu, com um atraso incompreensível (passados cerca de 25 anos), e sem dúvida devido ao esforço e combatividade da ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e da APOIAR (Associação de Apoio aos Ex‑Combatentes Vítimas do Stress de Guerra), finalmente a existência de uma doença designada por Perturbação Pós‑Traumática, vulgo stress de guerra, que, por cálculos aproximados, atingirá cerca de 140 000 homens. Estes são apenas dois exemplos que nos obrigam a perguntar: Se não fosse a pressão destas associações, que de comum apenas têm uma forte capacidade negocial (em tudo o resto com manifestas divergências), o que faria o poder político no sentido de encarar de frente esse verdadeiro trauma nacional?
15Mas, limitando-nos ao universo dos militares, ou seja, a Liga dos Combatentes e a Associação de Comandos, por um lado, e a Associação dos Deficientes das Forças Armadas, por outro: é fácil concluir que não as movam as mesmas razões, nem a mesma avaliação da Guerra Colonial.
16Ela continua, pois, a dividir-nos, como nos dividiu no passado: não só no binómio mais simples dos pró (que os há ainda…) e dos contra, mas antes nas complexas e várias mini‑razões, que nasceram justamente na ausência de uma grande razão.
17A razão do soldado de Quadrícula (tropa fandanga ou tropa pacaça, segundo o glossário já referido) não é a mesma das Tropas Especiais. A razão dos chefes militares (muitas vezes a guerra da cadeira, ou do prestígio) não é a mesma dos colonos (cuja solução, em muitos casos, era uma guerra de extermínio de todos os “terroristas”), nem sequer a do poder político e económico central. A razão dos oficiais do Quadro não é a mesma dos Milicianos. E, de entre estes, a razão dos que, ideologicamente amorfos, iam à guerra para comprar o Mini, não é a mesma dos que iam por assumidos imperativos políticos de direita (a defesa da Pátria pluricontinental e da Civilização Ocidental) ou então por fortes convicções de esquerda: lutar contra a guerra, na guerra.
18E nenhuma destas mini-razões é a razão ou sem-razão das mulheres, quase tão silenciosas hoje como há 29 anos, tão aparentemente resignadas ao papel que lhes estava destinado no quadro sociocultural de uma sociedade tradicional, que condiciona com frequência a mulher portuguesa ao desempenho de um papel protector e maternal em relação ao homem.
19Mas também aqui é impossível a generalização. Também na razão ou sem‑razão das mulheres, há que fazer divisões: antes do mais, entre as que ficaram (e que são, obviamente, a grande maioria) e as que “foram à guerra”. Umas e outras definitivamente afectadas pessoal, familiar e profissionalmente por essa guerra, mas não certamente da mesma forma.
20Para as que ficavam, o combate era em duas frentes: na metrópole, para garantir a sobrevivência da estrutura familiar drasticamente ferida pela ausência do namorado, do marido ou do filho; em África, para que os laços afectivos se não quebrassem e fossem uma ajuda e um suporte. A real dimensão desta tragédia vivida no feminino ficaria para sempre silenciada, não fossem as marcas, escassas mas impressivas, na literatura sobre a guerra, maioritariamente escrita por mulheres (mas não exclusivamente) e exaustivamente referenciada por Margarida Ribeiro, na comunicação apresentada ao II Congresso Internacional sobre Guerra Colonial (Ribeiro, 2002).
21Mas essa dimensão surge também referenciada em obras de carácter testemunhal ou jornalístico, como Lágrimas de guerra de Mário Brochado Coelho, ou na mais recente Marcas da Guerra Colonial de Jorge Ribeiro. Em qualquer um deles é possível avaliar a fragilidade dos laços que teimavam em ligar dois mundos completamente distintos, e o irremediável silêncio em que se iam transformando, apesar de todos os sacrifícios pessoais para que tal não acontecesse.
É bom que em Portugal as nossas famílias saibam quais as dificuldades inegáveis que aqui enfrentamos, até para que mais tarde, quando voltarmos, não nos olhem como turistas em regresso, ou como se fossemos exactamente os mesmos que viram partir para aqui. Tenho vivido a minha parte de sofrimento. É justo que tome parte do banquete dos homens verdadeiros,
22diz-nos Mário Brochado Coelho no seu “diário de guerra” (Coelho, 1989: 178), para continuar mais adiante:
É o lavar dos cestos de um conjunto de infelicidades pessoais que todos os meus familiares e amigos em Portugal estão longe de supor ou avaliar. Umas coisas não se contam para não assustar, e outras por serem perigosas de contar, graças à tradicional violação da correspondência. Por essas e por outras razões, acho perfeitamente natural que nas cartas que vêm de Portugal haja sinais evidentes de um total alheamento, cómico por vezes. (Coelho,1989: 219).
23Este sentimento de incompreensão dos reais contornos da experiência-limite da guerra, e das suas dramáticas consequências na estrutura da personalidade de quem a vive, esbarra do outro lado com uma impotência, um bloqueio, de efeitos igualmente devastadores e irreversíveis. Escreve Lobo Antunes, em Os Cus de Judas:
Tenho uma filha que não conheço, uma mulher que é grito de amor sufocado num aerograma, amigos cujas feições começo inevitavelmente a esquecer, uma casa mobilada sem dinheiro que não visitei nunca, tenho vinte e tal anos, estou a meio da minha vida, e tudo me parece suspenso à minha volta, como as criaturas de gestos congelados, que posavam para os retratos antigos. (Antunes, 1979)
24Essa vida interrompida, suspensa, congelada, só podia suscitar nas mulheres que ficaram duas respostas: a da resignação ou a da revolta. Sabemos que a primeira foi, por razões culturais, económicas, sociológicas, a mais comum nas mulheres portuguesas, sobretudo das classes mais baixas. Elas não poderiam suportar o remorso e a culpa de aumentarem ainda mais o sofrimento e o desespero. “Aturei um cabo, durante uma noite inteirinha, de carta na mão e em choro convulso e contínuo, por a namorada ter cortado com ele. Outro, de outra companhia, não suportou notícias desse tipo e suicidou-se” (Ribeiro, 1999: 287). Por isso engoliram o silêncio e as lágrimas que se calhar lhes pareciam obscenas comparadas com as dos companheiros.
Dessa época guarda a lembrança muito viva das mulheres que lhe escreviam, as noivas e viúvas de África. E das esposas que não podiam abrir a boca em casa e desabafavam no papel, derramando as dores do quotidiano. Eram mulheres muito sofridas, ignoradas, oprimidas pela resignação e pelo medo. (Caires, 1994: 57)
25São as novas vítimas da guerra. Muitas atingidas por essa ferida invisível que afecta milhares de ex-combatentes: o stress de guerra. Invisível porque ela própria se disfarça e mascara com outras patologias (depressão, alcoolismo, estados de pânico, fobias, etc). Invisível também, porque os seus padecentes e famílias, e mesmo o próprio Estado, tudo fazem para a esconder como pecado ou culpa secreta, que se deve expiar no silêncio anónimo, ou mesmo secreto, dos hospitais psiquiátricos ou dos consultórios médicos, quando não mesmo na mais funda solidão.
26Solidão apenas mitigada nos convívios regulares de batalhões ou companhias, a que comparecem, tantas vezes surpreendidos pela força desse apelo e dos sentimentos tão opostos e desencontrados que ele encerra: uma inquietante mistura de dor e de felicidade. Naquilo que muitos vêem como “catarse colectiva”, como ajuste de contas colectivo, exorcização de fantasmas, extravasar de recordações paradoxalmente traumáticas e pacificadoras, junto dos únicos que as podem entender: os camaradas e amigos que com eles desceram aos infernos do ódio e da violência, e nessa estranha viagem descobriram o verdadeiro sentido da coragem, da abnegação, da solidariedade e do companheirismo. Como se do pior nascesse o melhor, num percurso dramaticamente dividido entre a náusea e o encantamento, entre a angústia e o sonho. É um pacto de vida e de morte, indestrutível e intransmissível.
27Por isso as mulheres ficam de fora desse ritual. Mesmo as poucas que os acompanham, como refere Jorge Ribeiro:
A generalidade das mulheres e dos filhos mantêm-se na confraternização entre uma postura atónita pelo que ouvem contar e a figura de corpo presente, constatando em muitos casos o extravasar de mais um ano de assaltos à memória, ao longo do qual voltaram a acumular-se pequenos e grandes recalcamentos. Traumas de guerra cuja explosão e exteriorização por vezes são essas mesmas mulheres e esses mesmos filhos a suportar e a sofrer, saldando‑se afinal, por novas e inocentes vítimas da guerra colonial” (Ribeiro, 1999: 287)
28Inocência que nem como tal pode ser vivida, porque se esconde por detrás de uma culpa absurda e incompreensível, o que leva uma delas a desabafar “gostava de ter vivido com ele tudo o que ele por lá passou” (Ribeiro, 1999: 286).
29E, na verdade, muitas foram as mulheres que viveram a guerra, não certamente pelas mesmas razões, ou sequer do mesmo lado.
30Começando naturalmente pelo famoso Movimento Nacional Feminino, a única iniciativa concertada e consequente do regime, no sentido de vencer a proverbial apatia e alheamento das mulheres (contrariando até a imagem tradicional), fazendo delas uma coluna avançada do exército português. Foi sem dúvida a face mais visível, e até espectacular, da participação das mulheres na guerra, pelo que tem merecido a atenção de vários estudiosos, existindo hoje um razoável acervo para a sua história e acção efectiva. Num balanço muito sintético, podemos dizer que o projecto que nasceu da vontade de Cecília Supico Pinto, com o apoio entusiástico de Salazar e a benção de Cerejeira, e definido à partida como “um movimento independente do Estado, sem ser político, apenas patriótico”, se transformou numa poderosa máquina de propaganda, e numa fantástica rede de informação e contra-informação. O MNF promoveu peditórios nacionais e campanhas como a célebre Operação Saudade, instituiu os famosos aerogramas, e chegou a interferir na própria esfera estritamente militar, tendo sido por sua acção que foi aumentado o número de helicópteros e aviões na zona de intervenção, que começaram a efectuar-se evacuações nocturnas, e que foi alterado o transporte de feridos entre Cabo Delgado e Lourenço Marques.
Curiosamente não foi o controverso sentido altruísta e aparentemente ingénuo da venda de senhas e angariação de donativos que manchou desde cedo a sua imagem. As operações no terreno, “mexendo” perigosamente com o sentir mais íntimo do soldado, abalaram irremediavelmente a torre das boas intenções do MNF, e o atrevido maternalismo desacreditou a instituição. Repugnava sobretudo o pretensiosismo ridículo e insuportável de quem se convencia estar a substituir a mãe, a esposa, a noiva. Para mais em momentos de infortúnio, quando desfilavam pelas enfermarias com saquinhos de rebuçados, cigarros, ladrilhos de marmelada, e abraços da família (que não conheciam) para os rapazes mutilados. (Ribeiro, 1999: 92‑93)
31Não devemos iludir-nos, contudo, com a propagada popularidade desta organização: Mais de 80 000 mulheres, integradas em 22 secções, dirigidas por uma Comissão Central. Muitas delas aderiam não por convicção política clara, mas por uma reacção quase instintiva de solidariedade e de humanidade, que o poder tão bem soube explorar, ou mesmo por razões bem menos elevadas e altruistas: a esperança de conseguirem o mesmo que as chefes do Movimento – livrar os filhos da tropa, ou pelo menos mantê-los na retaguarda, “sem ir lá fora”. Ou ainda conseguir-lhes emprego após o período de mobilização.
32Igualmente, tal sucesso não foi extensível às outras duas organizações ligadas ao MNF: as Madrinhas de Guerra e a Cruz Vermelha Portuguesa. Paradoxalmente, a primeira, tendo sido a iniciativa de maior notoriedade do referido movimento, foi, simultaneamente, a razão do seu declínio:
Perderam, portanto, o controlo numa das suas principais instituições – as madrinhas de guerra. Elas deixaram de ser as confidentes e as encorajadoras, para passarem a ser mulheres jovens, alegres e namoradeiras. As revistas femininas mais lidas encheram-se de apelos de potenciais afilhados e a guerra passou a ser falada por outras vozes e com outras palavras – entendida como desnecessária, denunciada como tal. (Espírito Santo, 2002: 333)
33Quanto à Cruz Vermelha, apesar de mais discreta e menos comprometida politicamente, não deixava de depender directamente do governo e das suas directrizes.
34O mesmo não se passou com esse pequeno grupo constituído pelas enfermeiras pára‑quedistas, verdadeiras heroínas que levaram o cumprimento das suas missões humanitárias de assistência aos feridos ao limite da quase imolação. Mas o seu número foi reduzidíssimo.
Durante a guerra inscreveram-se 126 concorrentes para os nove cursos que foram ministrados em Tancos. Mas só 47 obtiveram o brevet. O Quadro de Enfermeiras pára‑quedistas era de 21 postos (9 oficiais e 12 sargentos) mas nunca esteve completo. O máximo que registou ao serviço foram 14. (Ribeiro, 1999: 100)
35O mesmo se não passou igualmente com as missionárias de variadas congregações: Filhas de S. Paulo, dos Missionários do Espírito Santo de Angola, Congregação das Irmãs de Nossa Senhora de África, as Irmãs Brancas, a Sociedade Missionária Portuguesa de Cucujães, etc. As missionárias portuguesas, juntamente com muitas estrrangeiras, lutaram por ideais humanitários, em obediência estrita à sua consciência humana e religiosa, o que lhes custou pressões e ameaças várias, a prisão, a expulsão e até a própria morte. Tiveram a coragem de se juntar aos padres italianos para denunciar um dos episódios mais negros da Guerra Colonial: o massacre de Wiriamu.
36E há, finalmente, as que foram à guerra para acompanhar os maridos mobilizados, e que também o não fizeram todas pelas mesmas razões: algumas refugiaram-se das agruras do clima (em sentido real e figurado!) nos vários Stella Maris coloniais, e fizeram a sua guerra privada, tricotando enredos, medos e segredos. Eram as mulheres do cabelo passado a ferro, ou em forma de colmeia, de Lídia Jorge, “as que esperavam em fila que os seus homens desempenhassem um papel histórico naquela marcha” (Jorge, 1988: 114). Mas outras lutaram por compreender a estranha realidade em que aterraram, não só por razões afectivas, mas por imperativos de compromisso ético e político. Dessas, muitas exerceram as suas profissões, na quase esmagadora maioria de professoras. Pelas condições concretas de trabalho, que, apesar de não totalmente liberto de constrangimentos, as fazia contactar com uma realidade de certa forma estranha ao puro universo militar dos maridos, é muito possível que se tenham e os tenham confrontado com experiências sociais e humanas do colonialismo muito para além da máquina de guerra a que eles se confinavam. Naturalmente, uns mais do que outros, mais uma vez conforme as suas razões.
37O silêncio em que ainda permanecem estas mulheres parece-me muito diferente do silêncio das que cá ficaram. Se o destas me parece tragicamente próximo da resignação e da impotência, pelo assombro e pelo desconcerto de um dia acordarem junto de um estranho, o daquelas pode conter chaves para decifrar as estranhas metamorfoses da guerra no corpo e na alma dos que acompanharam até África.
38Além disso, como muito bem observa Margarida Ribeiro, essas mulheres
registaram essa experiência, ouviram, observaram, traçaram relações com o poder, e foram revelando um olhar-outro, elaborando uma razão-outra, que se tornou uma ferramenta fantástica de representação das falsas razões do conflito bélico. (Ribeiro, 2002: 220)
39“Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm muito menos ainda”, proclamava Salazar em 1930. E se houve um traço genialmente perverso na ditadura que nos dominou durante 48 anos, foi a sábia gestão do silêncio. Um silêncio que Marcelo Caetano apodava de “seriedade e honestidade”, em contraste com o “teatro” do congénere regime fascista italiano.
40Passados todos estes anos, a nossa opinião pública parece ainda sujeita a inquietantes princípios de secretismo e ocultismo que, aliados a estratégias várias de branqueamento da história, conduzem a uma total incapacidade de compreensão e transmissão do passado às novas gerações. As várias razões ou sem-razões das mulheres envolvidas de alguma maneira na Guerra Colonial não podem ser dispensadas, quer para a história da tragédia, quer para a da sua negação que nos trouxe o 25 de Abril. Porque, como nos diz ainda Lídia Jorge, “se ninguém fotografou, nem escreveu o que aconteceu durante a noite, acabou com a madrugada. Não chegou a existir.” (Jorge, 1988: 215).