As mulheres e a Guerra Colonial
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1Os textos reunidos neste número da Revista Crítica de Ciências Sociais tiveram a sua origem no colóquio “As Mulheres e a Guerra Colonial”, organizado pelo Centro de Estudos Sociais em colaboração com o Centro de Documentação 25 de Abril e realizado na Universidade de Coimbra, nos dias 22 e 23 de Maio de 2003, com a participação de especialistas nacionais e estrangeiros de diversas áreas.
2O terreno da guerra tem sido ao longo dos séculos um espaço essencialmente masculino; no entanto, desde a Antiguidade que é referido o papel das mulheres, habitualmente decidido pelos homens, incumbindo-as da eterna função de apoiar: apoiar a guerra, gerando guerreiros, apoiar, como mães dos guerreiros, naquela que é porventura a relação mais sentida e a imagem predominante da relação da mulher com a guerra, apoiar os maridos, irmãos e todos os homens que são enviados para a guerra, apoiar na assistência aos feridos e desprotegidos, apoiar no regresso e na reconstrução do pós-guerra, apoiar no terreno, de forma nunca assumida e contabilizada como um bem de consumo especialmente apropriado para satisfazer os apetites sexuais dos guerreiros e, finalmente, ser vítima da violação dos guerreiros, situação ainda hoje pouco olhada, ou olhada com complacência, como se a violência sexual fosse intrínseca à cultura militar. Ser vítima, mas essencialmente apoiar, assistir, estar presente, mas na sombra, lugar consentido e esperado na ordem que impõe a guerra, cuja filosofia se desenha na relação dialéctica entre uma ordem política patriarcal que determina a guerra e a ordem militar (baseada nessa ordem patriarcal) que domina e executa a guerra.
3Com a organização deste colóquio, o Centro de Estudos Sociais e o Centro de Documentação 25 Abril pretenderam fazer uma primeira reflexão sobre a temática da Guerra Colonial de uma perspectiva feminina que focalizasse os vários aspectos históricos, sociais e políticos da questão, privilegiando, no entanto, a representação literária que foi pioneira na abordagem e tratamento multifacetado do tema. O lastro autobiográfico que esta literatura regista ao colocar a ênfase narrativa na dimensão vivencial de um sujeito individual, cuja experiência e testemunho o convertem em sujeito histórico e em narrador da história, conferem a esta literatura um valor não apenas literário. Como é sabido, desde a Primeira Grande Guerra Mundial a literatura de guerra é também uma literatura contra o esquecimento, exprimindo‑se como um excesso de memória individual contra uma falha da memória colectiva. E é essa tensão dialéctica em que é gerada que lhe confere uma função histórica, social, política e cultural que não podemos ignorar numa reflexão interdisciplinar sobre a guerra.
4Em “África no Feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial”, Margarida Calafate Ribeiro analisa e interpreta o papel de apoio reservado às mulheres no contexto da guerra, de um ponto de vista público e privado, concentrando a atenção naquelas que protagonizaram uma situação, porventura inédita, nas guerras coloniais do século XX: as mulheres portuguesas que acompanharam os maridos em missão militar em África, durante o período da Guerra Colonial. Manuela Cruzeiro em “As mulheres e a Guerra Colonial – um silêncio demasiado ruidoso”, denuncia criticamente os vários silêncios com que a sociedade portuguesa cobriu a maior tragédia da sua contemporaneidade, a Guerra Colonial, dedicando uma especial atenção à representação feminina destes silêncios. Nesta linha, Helena Neves, através da análise de uma série de entrevistas, vocaliza alguns dos silêncios evocados por Manuela Cruzeiro, começando assim a levantar o véu sobre as vivências da intersujectividade, ou seja, sobre os afectos entre as mulheres e os homens em tempo de guerra.
5Com “‘Até ao fim do mundo’: Amor, rancor e guerra em Hélia Correia”, Maria Manuel Lisboa, inaugura a série de ensaios dedicados à abordagem literária do tema das mulheres e a guerra. A partir da peça de teatro de Hélia Correia, O rancor, Maria Manuel Lisboa aborda o entendimento clássico e moderno do papel da mulher no contexto da guerra, particularmente a questão da sexualidade feminina e da paixão, enquanto forças contrapostas ao instinto belicoso masculino. Por sua vez, Roberto Vecchi em “Incoincidências de autoras: fragmentos de um discurso não só amoroso na literatura da Guerra Colonial”, analisa a experiência traumática da guerra e a sua representação pelo olhar feminino, colocando-o numa margem periférica, e elegendo-o, por isso, como um “olhar testemunhal” por excelência, lançando assim a hipótese de que, talvez por isso, se inscreva neste olhar, deslocado e errante, a força questionadora de uma nação que detona por dentro a imagem “lógica” e pseudo‑holística das narrações hegemónicas da declamada “Nação atlântica” portuguesa.
6Ana de Medeiros oferece-nos a dimensão comparativa de dois olhares femininos ficcionais sobre duas guerras coloniais europeias em África: a Guerra Colonial portuguesa, através do olhar feminino português, lançado pela personagem principal de A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, e o olhar ficcional da menina argelina que assiste à guerra da Argélia em L’Amour, la fantasia, de Assia Djebar. Realçando a qualidade subversiva do olhar feminino presente nos dois textos em questão, a ensaísta destaca a afirmação dos sujeitos femininos nas duas histórias, inscrevendo-as na História. Perseguindo a dimensão comparativa de olhares sobre uma guerra, Laura Cavalcante Padilha leva-nos ao encontro da dimensão africana da guerra com o ensaio “Dois olhares e uma guerra”. A partir da leitura das obras poéticas Sangue negro, de Noémia de Sousa, e de É nosso o solo sagrado da terra, de Alda Espírito Santo, Laura Cavalcante Padilha apresenta dois olhares africanos sobre a guerra, em perspectiva simultaneamente étnica e de diferença sexual. Para além disso, no seu texto discute-se o duplo gesto de nomeação do conflito, a mudança, no universo discursivo, do sistema de referências imposto pelo colonialismo e, consequentemente, a encenação da interioridade de novos sujeitos históricos femininos, membros plenos das nações independentes saídas da luta.
7Finalmente, e para assinalar as duas formas portuguesas de percepcionar a África vivida in loco nos tempos da Guerra Colonial nas suas dimensões femininas de participação (através da enfermeiras pára-quedistas) e presença (através das mulheres de militares que se encontravam em África em missão militar), propomos a leitura de dois depoimentos recolhidos por Margarida Calafate Ribeiro, no âmbito do seu trabalho de investigação sobre as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial. Um de Elsa Adler Gomes da Costa, que acompanhou o seu marido em missão militar em África; um outro, de Ivone Reis, enfermeira pára-quedista com uma vastíssima experiência de África nas três frentes de guerra, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
8Para além de registar este importante passo das mulheres portuguesas, pretendemos também, com estes depoimentos, transmitir aos nossos leitores a palavra vocalizada que caracterizou o colóquio, através da participação activa do público numeroso que ao longo dos dias nos acompanhou. Neste espaço de reflexão, a presença de ex-combatentes com as suas mulheres, de membros da Associação de Deficientes das Forças Armadas e da Associação APOIAR, de uma representante do Movimento Democrático das Mulheres e de mulheres que viveram a Guerra Colonial, acompanhando os seus maridos ou familiares cá ou lá, acrescentou ao colóquio uma nota vivencial absolutamente única que não poderíamos deixar de referir. Sob a forma do testemunho ou do contributo para a discussão, destacamos entre outras intervenções: o testemunho de um adulto, adolescente ao tempo da Guerra Colonial, e das suas percepções de então em relação às novidades que chegavam à aldeia em que vivia, os rapazes que partiam e voltavam e os que não voltavam, a ansiedade das mulheres, a importância do correio e o crescimento da sua consciência política em relação à realidade portuguesa; o testemunho do drama humano e familiar dos homens com stress pós-traumático com o relato da maneira como as mulheres os acompanharam, os divórcios, a violência, a incapacidade de amar; o testemunho dos deficientes das Forças Armadas e o acompanhamento que as suas mulheres lhes deram, quando foram evacuados, ao longo dos sucessivos tratamentos e internamentos e ao longo de toda a vida; o testemunho de uma mulher do Movimento Democrático das Mulheres que veio dar voz às corajosas mulheres da resistência ao fascismo que, em trabalho político junto de outras mulheres e em manifestações, alertaram para a imoralidade da Guerra Colonial; e, finalmente, assistimos ao testemunho de mulheres de militares de carreira ou de milicianos que esperaram por eles em Portugal e de outras que atravessaram com eles essa experiência em África. No final de um congresso sobre “As Mulheres e a Guerra Colonial”, o relato, por vezes dramático, das experiências vividas há trinta anos, mas, muitas vezes, conjugadas ainda no tempo presente, foi uma experiência que nenhum dos presentes poderá, daqui em diante, ignorar
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro, «As mulheres e a Guerra Colonial», Revista Crítica de Ciências Sociais, 68 | 2004, 03-06.
Referência eletrónica
António Sousa Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro, «As mulheres e a Guerra Colonial», Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 68 | 2004, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 15 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/rccs/1075; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/rccs.1075
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