1A grande adesão à chamada para publicação do dossiê “Cidades do interior, interior das cidades”, desta edição da Ponto Urbe - cerca de 40 trabalhos inéditos -, deve-se a diversos fatores, sendo, talvez o mais importante, o crescimento quantitativo e qualitativo de pesquisas voltadas para pensar o “urbano” em seus mais diversos enfoques.
2Nas décadas de 1970/1980, em termos de produção do conhecimento, a Antropologia testemunhou um esforço teórico, realizado em algumas universidades espalhadas pelo mundo, voltado à constituição e consolidação do que hoje conhecemos como “Antropologia Urbana” (Hannerz, 2015 [1980]). A invenção (Wagner, 2010) desta subárea, assim como da Antropologia no Brasil, conformam o que Peirano (2006) designa como uma Antropologia at home, em que os estudos de alteridade próxima acompanham o processo de alteridades amenizadas. Ainda que, na atualidade, se discuta a dicotomia at home/além mar, a autora aborda a singularidade de um fazer comprometido, teórica e politicamente, com a construção da nação.
3Nos artigos que compõem este dossiê, percebe-se a herança de várias das linhagens entremeadas que constituem a Antropologia da/na Cidade, com destaque para as contribuições de alguns precursores, como o professor Gilberto Velho, no Museu Nacional, pesquisador de contextos urbanos no Brasil, em uma perspectiva de antropologia das sociedades complexas. Da mesma forma, a costura entre a política e o urbano, como apontaram Ruth Cardoso e Eunice Durham, na USP, aparece na referência de vários autores do dossiê a José Guilherme Magnani (orientando de Ruth Cardoso), com seus estudos sobre os territórios urbanos, pedaços, margens, circuitos, dinâmicas e fluxos que reinventam a vida cotidiana. Merece destaque também a escola formada por Ruben Oliven, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dedicada à Antropologia dos grupos urbanos, que remonta à confluência da Antropologia e da Sociologia e influencia os trabalhos de Cornélia Eckert e de Ana Luíza Carvalho da Rocha (orientanda de Gilberto Velho), citadas em diversos artigos, dando a ver os entrecruzamentos destas linhagens.
4Sem incorrer na tentativa de realizar uma revisão bibliográfica sobre esse campo, pretendemos apenas ratificar que a Antropologia Urbana hoje é uma subárea de conhecimento devidamente legitimada no contexto do amplo escopo de interesses antropológicos. Não apenas tida como área consolidada, a Antropologia Urbana é gigante, abrangendo trabalhos sobre lazer, margens, violência, processos de urbanização, sociabilidades, usos da cidade, moradia, movimentos sociais e formas diversas de fazer política nas cidades.
- 1 Em 2017, os antropólogos argentinos Ariel Gravano e Ana Silva publicaram, na revista Iluminuras, um (...)
5Contudo, o crescimento da Antropologia Urbana é de tal magnitude, que é possível observar também o aumento expressivo de trabalhos que pretendem discutir o urbano em outras escalas, mais precisamente debatendo sobre questões pertinentes a cidades de média e pequena escala situadas nos “interiores” do Brasil. Se antes as metrópoles eram as grandes protagonistas dos estudos na e da cidade, atualmente é expressivo o número de pesquisas sobre cidades de menor porte, debatendo fronteiras entre “rural” e “urbano”, discutindo os trânsitos dos sujeitos entre cidades de diferentes escalas, repensando a expansão do capital para os interiores do país e, por fim, problematizando as relações entre territórios de populações tradicionais e cidades médias (ou pequenas) do contexto envolvente. É interessante notar como esse crescimento quantitativo e qualitativo dos trabalhos voltados para cidades de menor porte vem se desenvolvendo em outros países da América do Sul1.
6Diante disso, ao propormos o presente dossiê, vimo-nos diante de trabalhos com temáticas muito diversas, mas com algo em comum: a alta qualidade teórica e etnográfica de todas as propostas enviadas. Se, por um lado, esse foi um fator que nos regozijou, por outro, dificultou nossas escolhas. Precisávamos estabelecer recortes que fossem, simultaneamente, justos e coerentes, tendo em vista que a composição final do dossiê só poderia contar com 08 artigos. Portanto, decidimos contemplar pesquisadores/as em diversos estágios de formação. Optamos por textos cujas principais características residem na originalidade das contribuições teóricas e etnográficas, atentando para materialidades do urbano, práticas cotidianas, discussões sobre outros “lugares” legítimos para se pensar em fazer Antropologia Urbana. E, como recortes temáticos, demos destaque para as “paisagens” (naturais/artificiais) problematizadas como elementos constitutivos do urbano no Brasil; processos de especulação imobiliária e gentrificação; territórios existenciais como resistência às forças repressivas e ordenadoras da cidade; elementos expressivos que conformam a identidade de contextos urbanos interioranos (os sons, as expressões rituais, o campo do sensível, a sexualidade, o estabelecimento de vínculos e afetos e, finalmente, a espiritualidade), dentre outros.
7Pretendemos, dessa maneira, trazer para a discussão outras faces desse urbano “interior”, profundamente marcadas pela capacidade imaginativa de (re)criar as cidades a partir das relações com o mundo do sensível, materializada por percepções específicas de sons, paisagens, afetos. No que se refere aos afetos, destacamos que os textos apontam para diversas direções: os vínculos que se estabelecem entre sujeitos “na rua”, as relações afetivas entre vivos e mortos em contextos urbanos de menor escala, a construção simbólica da cidade a partir de interpretações nativas que relacionam “afeto” e “espaço urbano”. Assim, reunimos textos de Lanna Beatriz Lima Peixoto e Flávio Leonel Abreu da Silveira (UFPA); Cristian Leandro Metz e Ana Luiza Carvalho da Rocha (FEEVALE); Tiago Lemões (UFPel); Marcus Vinícius Nascimento Negrão (UFPA); Ribamar José de Oliveira Júnior e Lore Fortes (UFRN); Telma de Sousa Bemerguy (Museu Nacional); Fernanda Rechenberg (UFAL); Maria Fantinato (Columbia University).
8Esperamos com essa iniciativa aquecer e conceder mais visibilidade aos debates acerca das diversas questões relativas a Antropologia Urbana no Brasil, questionando inclusive questões de ordem teórico-metodológica para lidar com cidades de menor escala. Arriscamos dizer que a discussão sobre “cidades do interior” na Antropologia brasileira ainda tem muito a crescer, tendo em vista o processo de expansão do ensino superior experimentado no Brasil entre 2003 e 2016 através de programas como o REUNI. Tal processo ocasionou a criação de novos cursos de Ciências Sociais e Antropologia em novas universidades espalhadas pelo interior do Brasil, assim como possibilitou o surgimento e a interiorização desses mesmos cursos em universidades mais consolidadas também situadas em cidades de médio porte. O mesmo ocorre com o crescimento e expansão dos cursos de Pós-Graduação. Assim, os resultados obtidos a partir dessas iniciativas ainda estão por florescer em maior quantidade, alimentando um debate que promete ser de longa duração. Deixamos aqui nossa pequena contribuição como uma centelha que se juntará às outras próximas fagulhas para iluminar e aquecer esse debate.
9Boa leitura!