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Dossiê: Cidades do Interior, Interior das Cidades

Novas formas de morar? Os (des)caminhos da expansão imobiliária no litoral norte de Maceió, Alagoas1

New ways of living: the (misleaded) ways of real state expansion in the north coast of Maceió, Alagoas
Fernanda Rechenberg

Resumos

Este trabalho propõe uma reflexão sobre o processo de transformação urbana, decorrente da recente intensificação da expansão imobiliária no litoral norte da cidade de Maceió (Alagoas – Brasil), especificamente nos bairros Garça Torta e Riacho Doce. Lócus de tradicional atividade pesqueira nas praias de águas quentes, protegidas por uma extensa barreira de corais, os bairros são também periferias urbanas cujos moradores enfrentam cotidianamente a precariedade dos serviços de transporte, segurança, saúde e educação. Nos últimos anos, iniciaram-se as construções de condomínios fechados horizontais, e mais recentemente a construção de condomínios verticais na beira da praia. À diferença das memórias e experiências cotidianas dos moradores, as imagens veiculadas nos websites das construtoras e imobiliárias mostram um “paraíso tropical” destinado à população de alta renda. Pretende-se explorar os contrastes evidenciados entre os discursos dos novos empreendimentos e as práticas cotidianas dos moradores para melhor compreender os (des)caminhos deste processo de gentrificação.

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Notas da redacção

Versão original recebida em / Original Version 05/02/2019

Aceitação / Accepted 25/05/2019

Texto integral

Introdução

  • 1 Este artigo é uma versão do trabalho apresentado na XII Reunión de Antropologia Del Mercosur, no an (...)

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. (Calvino 1990:30-31)

  • 2 Conforme comentário de economista veiculado no telejornal “Bom dia AL” na TV Gazeta no dia 09 de ab (...)

1“Essa faixa estreita e cara será toda ocupada por edifícios”. Em abril de 2013, anunciava-se em um programa televisivo o novo cenário paisagístico destinado ao litoral norte de Maceió, através da construção das rodovias que integram a parte alta da cidade à sua faixa litorânea norte2. Três anos depois, durante uma saída etnográfica, os proprietários de um bar pertencente à uma tradicional família da Garça Torta comentavam, um tanto resignados: “aqui vai ser a nova Ponta Verde”.

  • 3 O litoral norte de Maceió abrange os seguintes bairros: Jacarecica, Guaxuma, Garça Torta, Riacho Do (...)

2O primeiro comentário, em tom otimista, anunciava o desenvolvimento e aporte de recursos a uma área que recebeu poucos investimentos nos últimos 20 anos, destacando as belezas naturais do litoral, as rodovias que abrem a região para um novo fluxo de pessoas, e o pequeno estoque de imóveis disponível no já concorrido litoral norte3. Analisando o fenómeno como um conjunto de fatores de ordem macrológica, a noticia apresentava a cidade“como resultado de forças econômicas transnacionais, das elites locais, de lobbies políticos, variáveis demográficas, interesse imobiliário e outros fatores de ordem macro” (Magnani 2012:257). Encobria o que faz de toda cidade, uma cidade: as ações, as redes de sociabilidade, os laços que vinculam pessoas e lugares.

  • 4 Pajuçara, Ponta Verde, Jatiúca, e mais recentemente, Cruz das Almas.

3O segundo comentário, assentado na memória e na experiência cotidiana, sinalizava as repercussões de tais investimentos no âmbito local e micrológico. Ao mencionarem o bairro da Ponta Verde, os moradores aludiam não apenas à intensa verticalização deste bairro que foi, outrora, uma vila de pescadores. Falam também da prática dos moradores dos bairros verticalizados da orla de Maceió4 de procurarem outras praias para o lazer, deixando o mar poluído e frequentemente impróprio para banho da cidade para os turistas desavisados.

  • 5 Até 1960, a ocupação urbana de Maceió concentrava-se nas áreas portuárias e lagunares, expandindo-s (...)

4Se a cidade de Maceió experimentou nas últimas décadas um crescimento acelerado de sua área urbana5, os bairros Garça Torta e Riacho Doce ainda são considerados um “canto” ou uma “prega” da cidade: bairros onde o crescimento é mais lento e a urbanidade segue convivendo com práticas tradicionais como a pesca artesanal em jangadas e a fabricação de bolos à base de macaxeira e coco assados em fornos de barro de uso coletivo. Situados a cerca de 10 quilômetros do centro da capital, Garça Torta e Riacho Doce são bairros com praias balneáveis de águas mornas ladeadas por uma extensa barreira de corais. São também periferias urbanas cujos moradores enfrentam cotidianamente a precariedade dos serviços de transporte, saneamento, fornecimento de água e luz, segurança, saúde e educação.

Vista panorámica de Garça Torta. Fotografia de Daniel Gontijo.

Fonte: https://abraceagarca.wordpress.com/​

5Nas últimas décadas, um incremento significativo de moradores vindos de outros bairros, do interior do estado e de outras cidades do país delineou uma modificação nos bairros que alude à duas direções: a periferização, com o partilhamento dos terrenos e o aumento das construções nos morros, caracterizada pela precariedade das habitações e do acesso aos serviços de infra-estrutura, e o início de um gradual processo de gentrificação, com a vinda de uma parcela de moradores de camadas médias, entre artistas, servidores públicos, empresários, professores e estudantes universitários, os quais alugaram casas de pescadores ou construíram suas habitações próximas à praia. Se por um lado, as relações de vizinhança e de parentesco são tradicionalmente estruturantes da vida cotidiana nestes bairros, por outro, a vinda de novos moradores e a própria construção de novas casas por quem já reside nos bairros, aproveitando o baixo preço dos terrenos recém divididos em lotes para construir casas de aluguel, implica uma constante renovação nos vínculos e laços de sociabilidade.

6Uma nova problemática surge com o amplo processo de expansão imobiliária que elege o litoral norte como o “novo pólo de desenvolvimento da cidade”. Impulsionado pela inauguração em novembro de 2013 do complexo Parque Shopping Maceió no bairro Cruz das Almas, e o início das obras de duplicação da rodovia AL 101 Norte, tal expansão coloca-se entremeada ao processo de segregação urbana que orienta a produção social dos espaços nas grandes cidades desde a segunda metade do século XX. Nessa perspectiva, insere-se nestes bairros uma lógica de separação e diferenciação social a partir da construção de “enclaves fortificados” (Caldeira 2000), espaços privatizados, fechados e monitorados nos quais sofisticadas tecnologias de segurança impõem ao território novas determinações de segregação espacial, até então desconhecidas.

  • 6 Faço referência aqui aos condomínios horizontais Morada da Garça, Atlantis e Reserva da Garça, e os (...)

7Nos últimos anos, pelo menos cinco empreendimentos imobiliários6 foram construídos ou já iniciaram as construções e vendas das unidades residenciais, entre condomínios fechados horizontais e verticais. À diferença das memórias e experiências cotidianas dos moradores, as imagens veiculadas nos websites das construtoras e imobiliárias mostram o bairro como um “paraíso tropical”. A proximidade com a praia, o contato com a natureza, a possibilidade de se usufruir de um “mar particular” e o investimento em uma zona em expansão com potencial transformação têm sido os principais argumentos acionados para a venda dos imóveis. Não é difícil perceber como a publicidade constrói um novo cenário de valores pautados no individualismo e na segregação social, muito diversos das “práticas cotidianas” (Certeau 1994) de seus moradores, as quais em grande medida orientam-se por laços de sociabilidade e vizinhança estreitos e duradouros, próprios de um “pedaço” (Magnani 1984; 2012).

8Comentários como “aqui vai sair três torres”, “nesse lote vão construir um prédio” têm se tornado rotineiros, e se somam às observações dos moradores que em seus trajetos cotidianos acompanham terrenos sendo cercados, técnicos realizando medições, placas de construtoras erguendo-se em meio à áreas não construídas. Os rumores em torno dos relatos de compra e venda de casas têm sido frequentes. Alguns moradores mais antigos relatam que em uma mesma quadra ou rua de acesso ao mar, as casas têm sido paulatinamente adquiridas por um mesmo comprador. Novos moradores que chegam ao bairro em busca de casas de aluguel já se deparam com contratos de apenas um ano, sinalizando o prazo para a venda dos terrenos ou para o início das obras dos novos empreendimentos. Nesse clima de incerteza e impotência diante de um futuro definido alhures, o barulho de um trator no terreno ao lado já cria o temor de mais uma venda e início de obras. Pouco a pouco, o cenário de um bairro verticalizado vai se materializando nos diálogos, jocosos ou temerosos, que atualizam notícias e especulações em torno dessa “comunidade de destino” (Maffesoli 2006).

  • 7 São elas: “Comunicação e Cultura” (Graduação em Comunicação Social), “Antropologia Urbana (Graduaçã (...)
  • 8 Mesmo habitando ambos os bairros em diferentes momentos, tenho sido menos afetada por tais dramas c (...)

9Diante do caráter emergente desta problemática, o presente artigo apresenta um esforço reflexivo de interpretar as recentes transformações do litoral norte de Maceió à luz das leituras, discussões e incursões etnográficas realizadas em três disciplinas vinculadas ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas, as quais focalizaram a experiência e os processos de transformação urbana tomando como lócus de investigação os bairros Garça Torta e Riacho Doce, em Maceió7. O artigo parte, ainda, de minhas observações e vivências enquanto moradora dos bairros há oito anos, período em que pude aprender sobre códigos, sociabilidades e moralidades locais, bem como conhecer e partilhar alguns dos dramas e desafíos cotidianos junto aos moradores8.

Os muros, a sociabilidade e o aumento da violência

10Ciente de que uma cidade pode ser apreendida de distintos modos a partir de diferentes escalas, reforço a necessidade de compreender a cidade e suas crises com um olhar “de perto e de dentro” (Magnani 2012), focalizando, sobretudo, a valorização da experiência ordinária e cotidiana que conforma o dia a dia dos moradores locais. Trata-se de privilegiar a abordagem etnográfica, a pesquisa relacional, local e micrológica, considerando a observação das “situações ordinárias” (Agier 2011) como foco privilegiado para compreender as tensões que permeiam o atual momento de incertezas quanto ao futuro do litoral norte de Maceió.

11Ao descrever as “avenidas” do bairro da Liberdade, em Salvador, Michel Agier observa certos bairros populares enquanto espaços que, “geralmente, não foram feitos pelos serviços de urbanismo e, no entanto, são essenciais para a sociabilidade urbana” (Agier 2011:108). O entremeio de vielas, ruelas e becos, embaralham os limites entre público e privado e favorecem a apropriação do espaço no sentido da personalização e familiarização do espaço comum próximo e de sua transformação num espaço próprio (Agier 2011).

12Garça Torta e Riacho Doce, como a maioria dos bairros periféricos de Maceió, quase não possuem calçadas para o trânsito de pedestres. Isso não impede que a sociabilidade principal aconteça nas ruas: na porta das casas e dos pequenos comércios, nas paradas de ônibus, nas praças. Utilizando o acostamento da pista, os caminhos de terra esculpidos pelas pisadas e o sobe e desce dos calçamentos irregulares e das garagens de propriedade das casas que se estendem até a rua, os moradores caminham. A pista, denominação local para a antiga Rua do Asfalto, e atual Avenida Luiz França de Albuquerque, é uma rodovia estadual que liga Maceió às praias do litoral norte de Alagoas e também é uma rota alternativa à BR 101 no trecho Maceió-Recife, caracterizando-se por um fluxo intenso de carros, ônibus, motos, bicicletas e caminhões.

13Na Garça Torta, além dos becos, sobretudo a pista é um lócus de sociabilidade importante. Na pista se concentra o pequeno comércio e um número crescente de lanchonetes, na pista estão as paradas de ônibus, as casas antigas e continuamente alteradas com a prática da autoconstrução, na pista ficam as jocosas placas travessia de bêbado que aludem à conhecida afeição entre os homens, o mar e a bebida. Da pista, vai-se à Igreja São Pedro por um beco ao lado do mercadinho, e seguindo por outro beco chega-se ao mar.

14No Riacho Doce não é diferente, mas a sociabilidade reúne-se em torno da praça, da Igreja Nossa Senhora da Conceição nos dias de missa e celebrações, e do pequeno comércio ao redor deste núcleo. A praça do Riacho Doce centraliza um comércio informal que vai desde vendedores de coco, peixes e frutas, CDs e DVDs, até as conhecidas “boleiras do Riacho”, que assam bolos a base de macaxeira e coco em fornos de barro e vendem em uma série de bancas enfileiradas na beira da pista.

15Esta forte sociabilidade de vizinhança e o sentimento de pertença implicam no reconhecimento dos membros do grupo, o qual a idéia de “pedaço”, proposta por José Guilherme Cantor Magnani (1984), caracteriza como uma forma de sociabilidade estreita e densa que permanece nas grandes cidades. O “pedaço” retrata este ambiente conhecido, um lugar onde as pessoas são chamadas pelo nome e localizadas em função de alguma relação. Segundo o autor, se por um lado a vida na metrópole dificulta a criação de laços mais permanentes, dada a alta rotatividade dos trabalhadores no mercado de trabalho, nas escolas e outras instituições e serviços urbanos, por outro, é o lugar de moradia que acaba por concentrar as pessoas, facilitando a criação de redes de sociabilidade caracterizadas por laços estreitos e mais duradouros, “que constituem a base da particular identidade produzida no pedaço” (Magnani, 1984:138). Segundo o autor, trata-se, sobretudo de morar da mesma maneira.

  • 9 No Riacho Doce, a segunda-feira é conhecida como “dominguinho”: para alguns moradores que desenvolv (...)

16As “práticas cotidianas” (Certeau 1994) dos moradores em sua relação com este espaço, nos encontros nos bancos improvisados na beira da pista ou em cima das jangadas; no abrir e fechar dos pequenos negócios na porta de casa; no ritmo de trabalho que obedece a uma lógica própria do lugar9, nos “bicos”, nos afazeres domésticos ou nas relações de vizinhança, vão conformando um tom, uma qualidade específica nas formas de habitar a Garça Torta e o Riacho Doce. Para Maffesoli (1996), trata-se de um “localismo”, um “gênio do lugar” que acentua o ethos ligado a um espaço, através dos pequenos rituais da existência cotidiana.

17Maria Angélica da Silva, autora do documento elaborado para o pedido de tombamento no segmento que compreende os dois bairros do litoral norte, ressalta que o valor comunitário dos bairros é o principal argumento para a solicitação (Silva 2015). As narrativas dos moradores, reunidas neste documento, apontam um tempo no qual os espaços eram permeáveis, e as cercas, se existiam, não impediam o uso comum da área. Quando iniciaram as construções das casas muradas, Dona Zareli, moradora antiga e já falecida, se referia a esta nova forma de habitar que chegava ao bairro como “muro da vergonha”, em protesto às restrições impostas à liberdade dos trajetos e permeabilidade dos espaços.

  • 10 A vulnerabilidade feminina no espaço público é um problema da cidade como um todo. Em reconheciment (...)

18Hoje, os muros são muitos, e é justamente nos trechos dos bairros em que estes se erguem escondendo as casas que a sociabilidade de rua se esvazia e a percepção da violência aumenta. Nos últimos anos, o aumento da sensação de insegurança tem sido corrente na fala de muitos moradores. Os pontos de ônibus são os locais de maior vulnerabilidade, já que os assaltos são feitos por motociclistas que têm a identificação protegida pelo capacete. São abordagens rápidas e que acontecem a qualquer hora do dia, mesmo com o movimento na pista. Especialmente as mulheres costumam ir acompanhadas ao ponto de ônibus, ou permanecem no portão de sua casa, de amigos e parentes ou em frente a pequenos comércios esperando a chegada do ônibus para então correrem dispostas a alcançá-lo no ponto10.

19A vulnerabilidade das mulheres jovens ficou especialmente evidente no ano de 2016, quando sequencialmente, várias adolescentes foram sequestradas e estupradas a caminho ou no retorno da escola. No mesmo ano, foi possível acompanhar também a tensão decorrente de uma série de assaltos à casas e sítios nesses bairros. Segundo os moradores, um grupo de homens armados invadia as residências e anunciava a continuidade dos roubos nos dias subseqüentes, aumentando o temor das famílias, em especial àquelas residentes dos sítios mais isolados, no Riacho Doce. Esses casos geraram uma forte comoção local e moradores interditaram a pista em protesto à falta de policiamento.

  • 11 O desfecho do episódio foi relatado da seguinte forma pelo caseiro de um dos sítios: “parece que er (...)

20Para os moradores, essas situações estão diretamente relacionadas à ausência do policiamento na região. De fato, não há ronda policial nem posto ou delegacia nas proximidades, situação que favorece a atuação das milícias locais na resolução dos conflitos. Durante as ocorrências de assaltos à casas e sítios, os moradores, temerosos, organizaram uma cota em dinheiro para garantir a atuação da milícia, tendo em vista a ineficiência da ação policial nesse caso. Nesse período, os motociclistas residentes nos bairros evitavam transitar pelas estradas dos sítios com capacete, para que pudessem ser identificados como moradores pelas milícias locais, que circulavam à procura dos assaltantes11.

  • 12 Benedito Bentes é o bairro mais populoso de Maceió e figura nas estatísticas da cidade com altos ín (...)

21Os assaltos, e em certa medida os estupros, eram atribuídos à moradores da parte alta da cidade, mais especificamente ao bairro Benedito Bentes12 e aos novos loteamentos populares construídos entre este bairro e o Riacho Doce e a Garça Torta. Apesar de situados na chã, como é chamada a parte alta da cidade, o acesso à praia é facilitado por inúmeras estradas de chão e antigas trilhas abertas para a comunicação e o deslocamento dos moradores nas partes alta e baixa da cidade.

22Nas áreas de maior densidade e sociabilidade de rua, como a área do mercadinho na Garça Torta e a praça no Riacho Doce, a presença dos moradores nas ruas garante um controle eficaz das pessoas estranhas que circulam no bairro. Essa eficácia tende a diminuir na medida em que aumenta a vinda de pessoas de outras regiões da cidade e do estado para afixarem moradia no litoral norte. Ainda que muitos moradores mencionem a redução do uso do espaço público ao longo dos anos, a liberdade em se viver na praia segue sendo uma recusa à aglomeração urbana e o enclausuramento dos grandes centros. Os moradores da Garça Torta e do Riacho Doce se vêem confrontados com o aumento da violência e da criminalidade em um território da cidade até pouco tempo pautado por valores que se opunham ao individualismo e à fortificação dos espaços característicos dos grandes centros urbanos.

23Segundo Teresa Caldeira (2000), o medo do crime violento é a principal justificativa para a construção dos enclaves fortificados, no âmbito do processo de segregação urbana que orienta a produção social dos espaços nas grandes cidades desde a segunda metade do século XX. A construção de condomínios fechados atende a um segmento da população que está sistematicamente abandonando o espaço público, redirecionando o lazer, a sociabilidade e mesmo o consumo para o interior destes espaços monitorados. As ruas, este chão que acolhe os caminhantes, que promove os encontros e as sociabilidades, tendem a ficar cada vez mais esvaziadas, sendo destinadas aos pobres, aos marginalizados, àqueles que não têm teto ou condições de abrigo. Mas o que acontece quando esta lógica de rejeição à vida pública e da heterogeneidade social imposta pelos condomínios fechados aterrisa em um lugar intensamente ocupado e vivido nas ruas, nas praças, na praia? Quando a proteção fortificada vem a zelar por aqueles que não vivenciam a sensação de insegurança presente do lado de fora dos muros?

Uma nova maneira de morar?

24Estampada no grande outdoor de um futuro prédio residencial na beira da pista, a frase “Seu mar particular” define bem quais valores são acionados para seduzir o futuro habitante do local. Erguidos nas proximidades de um beco familiar conhecido como Jurubeba, entre a Garça Torta e o Riacho Doce, este e outro outdoor anunciam em um futuro próximo a transformação radical da paisagem com a construção de dois grandes prédios residenciais “pé de areia”, na estreita faixa de terra entre a pista e a praia. Até pouco tempo, o terreno era uma passagem alternativa para a praia. Hoje, com as construções iniciadas, traz uma mensagem clara de ruptura com os tempos em que a circulação de pedestres se fazia livre entre os terrenos.

25O Riacho Doce Beach Residence Flat, em fase final de construção, será o primeiro edifício a beira mar na Garça Torta. Com 15 pavimentos, piscina, quadra de vôlei de praia, playground, play baby, fitness, deck solarium, redário e gazebos na área comum, o flat oferece também serviços “pay-per-use” tais como lavanderia, camareira, baby sitter, massagista, personal trainer, restaurante, esportes na praia, entre outros. A chamada principal indica o potencial para investimento, presente na maior parte destes novos empreendimentos imobiliários: “É para investir. É para morar. É para veranear”13. Ilustrada com a fotografia de um casal de padrões estéticos hegemônicos e notadamente dissonantes dos moradores locais, as propagandas enfatizam também o caráter pioneiro deste empreendimento, mostrando em imagens projetivas o impacto deste primeiro prédio em meio a um bairro de casas.

Imagens projetivas das construções do Riacho Doce Beach Residence Flat e Vista da Garça Residence. O prédios serão construidos lado a lado, mas ambas as imagens ignoram a presença do prédio vizinho na publicidade.

Fontes: :http://riachodoceflat.com.br e http://recordinc.com.br/​project/​vista-da-garca

26Ao entrevistar moradores da Jurubeba, localidade de famílias de pescadores situado ao lado do novo prédio, Amanda Régia Amorim Morais dos Santos (2019) mostra como uma estratégia de marketing para as construtoras (a forte luz dos holofotes ligados à noite para iluminar os cartazes à beira mar), traz impactos diretos no viver dos moradores (um conjunto de espécies marinhas afugentadas pela luz e suas consequências diretas na pesca). Além do barulho, da barreira à ventilação natural, do sombreamento da praia e dos impactos da ausência da luz solar à fauna e flora marinha, os moradores ainda vêem o surgimento de rachaduras em suas casas com o impacto da grande construção.

27Ao lado, o Vista da Garça Residence, cujas construções ainda não iniciaram, propõe ser um condomínio de alto padrão, com apartamentos espaçosos “exclusivo para pessoas que adoram estar com o pé na areia sem abrir mão do conforto, da beleza e da qualidade em cada detalhe”14. O prédio será construído no terreno que hoje abriga dois restaurantes com sede em outros bairros de Maceió, que em parceria com a construtora imobiliária investiram em uma filial na praia com o objetivo de atraírem um público com potencial de compra.

28A perspectiva dos condomínios fechados como “universos autocontidos” conforme pesquisados por Teresa Caldeira em São Paulo traz matizes interessantes no contexto do litoral norte de Maceió, tendo em vista que o enclausuramento e o isolamento figuram apenas em parte entre os valores acionados. A existência de áreas de lazer dotadas de ciclovias, espaço gourmet, área fitness, piscina, playground e até sala de cinema reforçam essa dimensão de autocontenção; por outro lado, o argumento de habitar uma residência “pé na areia” é decisivo na valorização destes imóveis.

29A sedução do lugar acionada nas propagandas evoca um repertório de imagens e valores oriundos do ethos individualista próprio dos grandes centros urbanos. Alain Corbin (1989), em estudo sobre o imaginário ocidental acerca das praias, descreve o interesse dos citadinos no ambiente e nas populações das zonas litorâneas, quando sua chegada nestas áreas obriga a “gente das praias” a cederem espaço a um novo teatro social. O tipo particular de turismo que se atrai por estas freguesias litorâneas e sua representação idílica têm suas raízes na vida urbana e na tentativa de se libertarem das mazelas que caracterizam a “vida mental” (Simmel 2005[1903]) da metrópole, compondo muitas vezes um “quadro adocicado” da vida dos habitantes da praia.

30Vejamos a publicidade do condomínio horizontal Morada da Garça:

O último e único. Em meio à crescente verticalização de toda a orla de Maceió, o Condomínio Morada da Garça reina sozinho como o residencial de casas na beira da praia da cidade. Seguindo a lógica do mercado, a valorização de seus 52 lotes de 518m² até 771m² será e já tem sido enorme, pois a tendência é que ele confirme sua posição como o único e último condomínio horizontal à beira-mar de Maceió. Entre Guaxuma e Garça Torta está o seu paraíso exclusivo de rentabilidade sem igual.15

31Apostando em um discurso de comprometimento ambiental, focado na convivência equilibrada com as belezas naturais da região e o uso de tecnologias sustentáveis, a propaganda do condomínio constrói o morador como um “privilegiado” que soube fazer do seu lar um “paraíso”. Paradoxalmente, a construção do condomínio aconteceu em meio à polêmicas por afetar diretamente o curso de um mangue responsável pelo equilíbrio do ecossistema costeiro, o que provocou alagamentos no bairro vizinho, Guaxuma, cuja área litorânea é habitada sobretudo por uma população de classe média e alta.

  • 16 Paradoxalmente, o argumento falacioso de uma “democratização do litoral norte” também vem sendo pro (...)

32O discurso da exclusividade acionado nas propagandas do Condomínio Morada da Garça confirma as previsões dos economistas de que, nessa faixa estreita e supervalorizada entre as barreiras e o mar, a grande concorrência impulsionaria as construções verticais em toda a orla16. Isso foi possível devido a uma alteração da legislação, aprovada na Câmara Municipal de Maceió, que permitiu a verticalização de todo o litoral norte, flexibilizando a Lei municipal 3.943 de 1989 que limitava as edificações a seis pavimentos na primeira quadra da praia em toda a orla marítima da cidade. Segundo Andreas Krell (2008), a liberação prevista no Código de Edificações e Urbanismo de Maceió, de 2004, além de inconstitucional, mostrou o alinhamento entre os órgãos políticos e o setor imobiliário, com o grande número de pedidos, imediatamente após a aprovação, de alvarás de construção de prédios altos no litoral norte de Maceió junto aos setores competentes.

Resistências e Divergências

33Ao discutirem os processos de “gentrification” a partir de cinco etapas (o abandono, a estigmatização, a regeneração, a mercantilização e a resistência), Daniel Sorando e Álvaro Ardura (2016) apontam a atuação fundamental de três agentes na formação do tripé de base destes processos: o sistema financeiro, as empresas imobiliárias e as administrações públicas. Embora o conceito de “gentrification” faça referência à apropriação urbana dos espaços centrais por segmentos de camadas altas, as alterações no modelo de distribuição urbana tornam evidente a descentralização destes processos de enobrecimento, que tanto podem referir-se à renovação de casarios antigos como à construções inteiramente novas (Leite, 2002). O sentimento do lugar como foco das necesidades emocionais e materiais é ameaçado pela mercantilização do territorio, pois subordina os valores de uso aos valores de troca mercantil. Talvez por este motivo, o espaço urbano tem se convertido no motivo e lugar dos principais movimentos de resistências contemporâneas (Sorando e Ardura 2016).

34Em 2005, durante a elaboração do Plano Diretor da cidade, uma série de mobilizações com a participação ativa de especialistas nas áreas do direito, urbanismo e meio ambiente, incluindo a ação do Ministério Público na proposição de recomendações que impedissem a construção de prédios altos, não foram suficientes para barrar a alteração na lei. Em 2015, ano da revisão decenal obrigatória do Plano Diretor de Maceió, já havia sido iniciadas as construções de dois prédios à beira mar na Guaxuma, e de dois condomínios horizontais na Garça Torta. A possibilidade de discutir alterações no código com base na necessidade de promover uma interlocução com a sociedade civil mobilizou alguns moradores e frequentadores a criarem em 2014 o movimento “Abrace a Garça”17, com o objetivo principal de “incentivar a participação popular através de discussões sobre o modelo de crescimento pensado – ou não pensado – para a cidade” (Abrace a Garça 2015). Realizando ações de mobilização popular como abaixo-assinados e oficinas e rodas de conversa com os moradores locais, o movimento participou ativamente das audiências públicas, elaborando um documento com propostas para a revisão do Plano Diretor. Passados quatro anos do inicio dos trabalhos de revisão, este continua sem conclusão, revelando que a instância municipal parece dedicar a este tema uma estratégia da paralisia, enquanto a liberação de novos empreendimentos e as obras de verticalização correm em alta velocidade no litoral norte.

35O caminho da patrimonialização de um trecho específico entre estes dois bairros, como possibilidade de barrar a construção de grandes prédios, também tem enfrentado a paralisia da ação municipal. Em 2015, a arquiteta e professora da Universidade Federal de Alagoas, Maria Angélica da Silva, encaminhou ao Conselho Municipal de Cultura uma solicitação de tombamento dos bairros Garça Torta e Riacho Doce. O documento é um consistente estudo sobre a memória dos bairros, contendo narrativas de moradores pertencentes às mais antigas famílias locais. Há quatro anos, a autora aguarda uma resposta acerca da apreciação do documento.

36O movimento de resistência, entretanto, não é unânime, e a percepção das transformações nos bairros aponta para diferentes entendimentos. Além de posicionamentos políticos divergentes entre o movimento Abrace a Garça e as associações locais de moradores, muitos moradores reconhecem que a construção dos novos empreendimentos e a vinda de novos moradores acarretarão mais prejuízos do que beneficios aos bairros, mas evitam a identificação com o Abrace a Garça. O movimento é formado principalmente por moradores e frequentadores do bairro pertencentes às camadas médias e intelectualizadas, muitos dos quais vindos de outras regiões da cidade e do país, e identificados com a pauta do direito à cidade através de uma urbanização includente.

37As transformações vividas pelos moradores mais antigos não são de agora. Foi com a chegada de novos moradores dotados de uma condição financeira estável, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, interessados no aluguel e compra de casas e terrenos próximos à praia, que muitas famílias antigas da Garça Torta venderam seus locais de moradia e recuaram para as ruas do lado de cima da pista, em casas pequenas e sem quintal. Muitos desses moradores e seus filhos e filhas passaram a trabalhar nas casas dos recém-chegados, situação que oportunizou novas condições de trabalho local, mas também evidenciou o aumento das diferenças sócio-econômicas nos bairros. Nesse sentido, não se pode deixar de reconhecer as contradições da luta contra a gentrificação, pontuadas por Sorando e Ardura (2016): os ativistas não conseguem de desfazer da sensação de que seus atos facilitam os negócios contra aqueles que se manifestam (Sorando e Ardura 2016:149).

  • 18 Esses dados referem-se à uma pesquisa informal de preços realizada por mim, em busca de novo local (...)

38Por outro lado, a valorização simbólica dos bairros se converte em ganhos reais e imediatos para alguns moradores: donos de alguns pequenos negócios vêem aumentar o número de fregueses, e os aluguéis de algumas casas sofreram reajustes de 20% a 40% no intervalo de um ano18.

39Atualmente, o movimento Abrace a Garça se mantém enquanto uma instância de vigilância das ações ligadas à duplicação da AL 101 Norte e da construção de novos prédios, acompanhando reuniões e audiências, assessorando moradores e expondo as irregularidades deste processo de expansão imobiliária, como foi a caso da denúncia de uma saída irregular de esgoto ou “língua negra” e a abertura de uma vala que permitia seu escoamento para o mar, ao lado de um dos prédios em construção no bairro de Guaxuma, vizinho à Garça Torta.

Entre o turismo e a preservação ambiental: qual o lugar das práticas cotidianas?

40A praia da Garça Torta é notadamente mais atrativa ao visitante do que o Riacho Doce. Isso se deve ao que alguns moradores e visitantes chamam de “charme” ou “magia da Garça”, e que podemos entender como um lento processo de enobrecimento que inicia com a vinda de pessoas de fora em meados da década de 1980, com maior poder aquisitivo e dotadas de maior capital cultural, e vai progressivamente abrindo caminho para que esse bairro seja simbolicamente redimensionado na cidade de Maceió.

  • 19 Conforme apontado em trabalho dos alunos Amanda Lorena, Charlyelle Laurindo Santos, Ilda Lourenço, (...)

41Atualmente, a praia da Garça Torta atrai um numero crescente de veranistas nos finais de semana, e os bares materializam uma espécie de segmentação entre os freqüentadores19, que vai dos bares frequentados sobretudo por moradores locais, aos bares e restaurantes que atraem um público externo, desde jovens que percorrem um circuito “alternativo” em seus itinerários urbanos, pessoas ligadas ao surf e outros esportes náuticos, o público LGBT, até famílias de camadas altas atraídas para a Garça depois que um conhecido restaurante da cidade inaugura, em 2015, uma filial na praia.

  • 20 Devo esta observação sobre as distintas práticas de cuidado das crianças nos bairros aos alunos Hel (...)

42A praia, como espaço público, torna visível a coexistência desses diferentes universos culturais: moradoras locais catam mariscos na maré baixa e banham-se de bermuda e regata; casais gays trocam beijos; pescadores preparam a jangada para mais um dia de lida no mar; famílias bebem cerveja artesanal e degustam “ceviche” a beira mar enquanto seus filhos são cuidados por babás vestidas de branco, grupos de crianças locais divertem-se nas ondas da maré alta com pedaços de isopor20; a música techno soa alto em terrenos baldios que improvisam “raves”; crianças, jovens e velhos caminham carregando bacias na cabeça com ovos de codorna e amendoim para venda aos veranistas.

43Se o olhar “de fora” que pensa a cidade em uma dimensão macrológica concebe o atual aporte de investimentos como um momento privilegiado que insere a região nos trilhos do desenvolvimento livrando-a da estagnação, não é esse o entendimento dos moradores ao acionarem os “jogos da memória” (Eckerte Rocha 2005), conforme mostram as pesquisas que focalizam narrativas de antigos moradores destes bairros (Carvalho e Oliveira 2017; Silva 2015). Em nossas breves incursões etnográficas, os moradores do Riacho Doce rememoraram a organização de eventos nos espaços públicos, tais como o “festival de beiju”, que reunia boleiras e beijuzeiras na praça, e o “menino do Riacho”, um concurso de beleza entre os rapazes da região. Cristina, que ainda hoje assa seus bolos e beijus em um forno de barro familiar a beira da praia, relembra como era bom o tempo em que ônibus cheios de turistas estacionavam no terreno baldio ao lado, e sua família organizava um pequeno comércio para a venda de bolos e café na beira da praia. Tempo de fartura, de movimento, de diversão. O aumento na construção de casas na beira da praia e a consolidação de um corporativismo organizado no segmento do turismo afastaram os turistas das belas praias de Riacho Doce, imortalizadas no romance de José Lins do Rego.

Saída de campo com estudantes no bairro Riacho Doce. Cristina e suas sobrinhas trabalhando no forno de barro. Fotografias da autora.

  • 21 O estado de Alagoas é conhecido pela arte e expressões culturais tradicionais, em especial os “folg (...)

44No litoral norte, os turistas são direcionados principalmente à Paripueira, município vizinho a Maceió, e mais recentemente à praia de Ipioca, em estabelecimentos comerciais do tipo “day-use” ou em pacotes promocionais que incluem apresentações culturais “para-folclóricas”21 e passeios de barco e jangada. A exclusão destes bairros do “trade” turístico, tanto dá espaço a um novo perfil de frequentador da praia como às iniciativas de pequena escala dos moradores na realização de “bicos” e na abertura de pequenos comércios direcionados aos moradores locais, especialmente no Riacho Doce. Assim, enquanto Garça Torta vai se consolidando como um destino “alternativo” para as camadas médias e altas, a praia de Riacho Doce reúne principalmente moradores e seus familiares e amigos, sendo o lócus de uma sociabilidade local.

  • 22 Organização não governamental, sem fins lucrativos que promove diversas ações relacionadas à conser (...)

45 Em meio ao cenário de novas apropriações e usos nestes bairros, a proposta de criação da unidade de conservação municipal na região traz novas questões para os diferentes agentes envolvidos nas mudanças correntes no litoral norte. Realizado pelo Instituto Biota de Conservação22, o projeto ARIE (Área de Relevante Interesse Ecológico) das Tartarugas foi um dos 24 selecionados pela Fundação SOS Mata Atlântica para apoio à criação e implementação de Unidades de Conservação municipais no país. A ARIE Costeiro Marinha das Tartarugas abrange uma área aproximada de 50 km², situada na zona costeira do litoral norte de Maceió, entre os bairros de Garça Torta e Ipioca.

46Em maio de 2017 foi realizada no Pratagy Beach Resort a obrigatória consulta pública sobre a criação da ARIE. Apesar dos mencionados esforços da equipe em contatar moradores dos bairros incluídos na área de preservação, em especial os pescadores, a audiência contou apenas com a presença de ambientalistas, representantes do poder público, professores universitários, empresários e moradores do litoral norte, predominantemente de camadas médias e altas. A ausência dos pescadores e moradores dos becos e loteamentos não foi em nada surpreendente, em que se pese o fato de a audiência ter sido realizada em um resort de luxo, um verdadeiro “enclave fortificado” interdito à população de baixa renda.

47Uma situação emblemática durante a audiência foi a interpelação de um conhecido empresário, responsável por empreendimentos imobiliários e de lazer no litoral norte, à equipe do projeto, se estes “fariam algo” em relação às moradias ditas irregulares situadas às margens do Riacho Doce e de outros rios e arroios que deságuam no mar. A culpabilização dos pobres na sujidade das praias e dos rios não é algo novo e emerge como principal argumento para a retirada das populações residentes em áreas escolhidas para uma requalificação dos espaços, apontando para uma possível “ambientalização dos conflitos sociais” (Lopes, 2004) decorrentes do uso do solo urbano.

48É sobretudo quando o discurso da proteção ambiental entra em jogo, que as categorias acionadas para descrever os habitantes da região tendem a acreditar na consistência e coerência da cultura como um corpus unificado de símbolos compartilhados, particularmente na ênfase dada à categoria “tradicional”. Nesse contexto, torna-se fundamental compreender a “diversidade desconexa de atividades” destes bairros, no qual a mistura do velho com o novo forma um cenário cultural sincrético o qual pode ser bastante desconfortável (Barth 2000).

49A pesca de jangada, a feitura de bolos artesanais, as festas religiosas e outras práticas ditas tradicionais não estão dissociadas da música alta que anima a conversa nas calçadas, dos conflitos entre vizinhos, dos variados arranjos domésticos, econômicos e habitacionais que caracterizam o bairro como periferia urbana. Nesse contexto, torna-se fundamental o entendimento de que as áreas de preservação são “lugares praticados” (Certeau 1994), nos quais homens, mulheres e crianças atuam cotidianamente, encontrando, à sua maneira, soluções para as situações ordinárias da vida urbana.

À guisa de novas questões

50Para Caldeira (2000), nos processos de segregação urbana em curso nas cidades brasileiras, há uma elaboração simbólica que transforma enclausuramento, isolamento, restrição e vigilância em símbolos de status. Vemos como este prestígio relacionado à rejeição da vida pública opõe-se frontalmente ao estilo de vida dos moradores desses bairros, onde prevalece uma “lógica do doméstico”, um “familiarismo” (Maffesoli 1996) que se apropria e personaliza o espaço público (Agier 2011). Essa personalização, no entanto, difere em muito do sonho de se ter um “mar particular” oferecido pelas construtoras, o qual responde à busca por um estilo de vida pautado no individualismo, no isolamento e na busca pela homogeneidade social. O paradoxo destes condomínios não está apenas no acionamento de valores discordantes os quais se materializam nesta nova forma de habitar: o condomínio (a segurança e a autocontenção) e a praia (a liberdade, o paraíso natural), mas também na rejeição à heterogeneidade social, a qual está na base de todo o “enclave fortificado”. Ainda que os rumos decorrentes desse aporte de investimentos e de acordos e decisões políticas definidas alhures sejam incertos, cabe indagar quais formas sociais, no âmbito desta heterogeneidade, serão recusadas e quais serão incorporadas, nessa apropriação cultural que é própria dos processos de gentrificação.

51No interior dos apartamentos decorados simulados nas imagens computadorizadas, as paredes da sala e do quarto exibem fotografias em preto e branco com cenas e enquadramentos que aludem a uma Maceió de outrora, confrontando-nos com os implacáveis cenários descritos por Ítalo Calvino (1990), nos quais é sempre necessário louvar a cidade dos cartões-postais preferindo-a à atual, mas contendo o pesar em relação às mudanças, pois a velha cidade provinciana só pode ter seu charme restituído diante da magnificência e prosperidade da metrópole.

52Do lado de fora, na beira da pista, o outdoor que insiste na “particularização” da praia permanece na paisagem, lembrando o morador que uma nova lógica de uso e apropriação dos espaços está por vir. Desgastada pela maresia, a mensagem permanece, e reforça a potência simbólica da segregação social, capaz de construir espaços privados em locais legalmente públicos.

53É possível que nos próximos anos os bairros Riacho Doce e Garça Torta atravessem diferenciadamente as transformações impulsionadas pela especulação imobiliária. Levando em consideração, nos termos de Michel Agier (2011), que o sentido do lugar é fortemente condicionado pela existência de uma troca simbólica e social, ou seja, de que o espaço físico é sobredeterminado pela simbólica das relações sociais aí localizadas, cabe indagar quais respostas táticas serão acionadas pelos moradores para lidarem com o aparente desequilíbrio de forças instaurado pela mercantilização. As “paisagens urbanas pós-modernas”, que envolvem a fragmentação econômica das antigas solidariedades urbanas e uma reintegração fortemente influenciada pelas novas formas de apropriação cultural (Zukin 2000), podem se apresentar com matizes inesperadas diante da força de um corpo coletivo que recusa os muros e vive intensamente as ruas, os becos, a praia, e suas incertezas.

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Notas

1 Este artigo é uma versão do trabalho apresentado na XII Reunión de Antropologia Del Mercosur, no ano de 2017, em Posadas, Argentina, com financiamento parcial da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (FAPEAL). Agradeço as coordenadoras e os participantes do GT “Identidades urbanas, lugares e memórias” pelos comentários e contribuições ao trabalho.

2 Conforme comentário de economista veiculado no telejornal “Bom dia AL” na TV Gazeta no dia 09 de abril de 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/al/alagoas/bom-dia-alagoas/videos/t/edicoes/v/litoral-norte-de-maceio-recebera-grandes-investimentos-este-ano/2506289/. Acesso em 13 de outubro de 2017.

3 O litoral norte de Maceió abrange os seguintes bairros: Jacarecica, Guaxuma, Garça Torta, Riacho Doce, Pescaria e Ipioca. Em sua extensão, o litoral norte se divide entre clubes e associações de lazer, agrupamentos domiciliares e de pequenos comércios, e extensas áreas de coqueirais com tapumes que identificam a propriedade das corporações do segmento imobiliário. Isso significa que as extensas áreas não construídas no litoral norte pertencem, em grande parte, à construtoras que aguardam o momento certo para o lançamento de seus empreendimentos.

4 Pajuçara, Ponta Verde, Jatiúca, e mais recentemente, Cruz das Almas.

5 Até 1960, a ocupação urbana de Maceió concentrava-se nas áreas portuárias e lagunares, expandindo-se na década de 1980 para as praias próximas ao porto e sobretudo, para a região conhecida como Tabuleiro dos Martins, na parte alta da cidade. No ano 2000, há um crescimento significativo da ocupação urbana em direção ao norte, seja na parte alta da cidade, seja na orla marítma. Em 1960, a população de Maceió era de 170.134 habitantes; em 1980, 409.191; no ano 2000, a população de Maceió era de 797.759 (IBGE 2000); em 2010, a população total de Maceió era de 932.748 habitantes (IBGE 2010) e em 2018 era de 1.012.382 (IBGE 2018).

6 Faço referência aqui aos condomínios horizontais Morada da Garça, Atlantis e Reserva da Garça, e os condomínios verticais Riacho Doce Beach Residence e Vista da Garça Residence.

7 São elas: “Comunicação e Cultura” (Graduação em Comunicação Social), “Antropologia Urbana (Graduação em Ciências Sociais), e “Antropologia Urbana” (Mestrado em Antropologia Social), ministradas respectivamente no segundo semestre de 2016 e primeiro semestre de 2017. Agradeço, sobretudo, aos alunos destas disciplinas, os quais “embarcaram” na proposta e desenvolveram ótimos trabalhos sobre esta problemática, a partir de diferentes recortes empíricos e conceituais. Alguns estudantes prosseguiram as investigações nos bairros, sob enfoques diferenciados, resultando em pesquisas de conclusão de curso (Bortoleto 2017; Caetano 2018), e em uma dissertação de mestrado em Antropologia Social (Santos 2019).

8 Mesmo habitando ambos os bairros em diferentes momentos, tenho sido menos afetada por tais dramas cotidianos, a exemplo de outros moradores de camadas médias, que habitam casas com poço ou reservatório de água, têm carro próprio, e não dependem dos serviços públicos locais de educação e saúde. Entendendo estas diferenças nos modos de habitar enquanto produtoras da diferença sócio-espacial, é importante mencionar o meu próprio lugar de agente nesse processo de gentrificação. Para Sorando e Ardura (2016), esse duplo lugar é a “kryptonita” dos ativistas, na medida em que expõe as contradições da luta contra a gentrificação.

9 No Riacho Doce, a segunda-feira é conhecida como “dominguinho”: para alguns moradores que desenvolvem suas atividades no próprio bairro, é um dia em que não se trabalha.

10 A vulnerabilidade feminina no espaço público é um problema da cidade como um todo. Em reconhecimento a esta vulnerabilidade que afeta especialmente as mulheres usuárias do serviço de transporte público, foi aprovada a lei municipal “Parada Segura”, que autoriza o motorista de ônibus a parar em qualquer trecho, após às 20 horas, para o desembarque de passageiras mulheres.

11 O desfecho do episódio foi relatado da seguinte forma pelo caseiro de um dos sítios: “parece que eram 10 [assaltantes], 4 foram presos, 3 a polícia matou e 3 quem matou foi o pessoal aí”.

12 Benedito Bentes é o bairro mais populoso de Maceió e figura nas estatísticas da cidade com altos índices de violência.

13 Fonte:http://riachodoceflat.com.br/. Acesso em 21 de outubro de 2017.

14 Fonte: http://recordinc.com.br/project/vista-da-garca/. Acesso em 21 de outubro de 2017.

15 Fonte: http://moradadagarca.com.br/. Acesso em 06 de outubro de 2017.

16 Paradoxalmente, o argumento falacioso de uma “democratização do litoral norte” também vem sendo propalado pelos agentes do segmento imobiliário, conforme apontou Luana Teixeira (2015).

17 Ver https://abraceagarca.wordpress.com/. Acesso em 10 de janeiro de 2019.

18 Esses dados referem-se à uma pesquisa informal de preços realizada por mim, em busca de novo local de moradia entre os anos de 2018 e 2019. Nesse período, pude acompanhar moradores de classe média deixando o bairro em razão do aumento no preço dos aluguéis.

19 Conforme apontado em trabalho dos alunos Amanda Lorena, Charlyelle Laurindo Santos, Ilda Lourenço, Karla Patrícia de Lima e Everton Nunes.

20 Devo esta observação sobre as distintas práticas de cuidado das crianças nos bairros aos alunos Hellen Monique Caetano, Giovana Oliveira, Tayná Almeida de Paula, Emily Matos, Franklin Lessa e José Esmerino Neto.

21 O estado de Alagoas é conhecido pela arte e expressões culturais tradicionais, em especial os “folguedos populares”, tais como Guerreiro, Reisado, Pastoril. Alguns empreendimentos turísticos investem em “pocket-shows” com bailarinos profissionais os quais estilizam traços diacríticos da cultura popular alagoana, como os folguedos tradicionaise até mesmo o toré indígena.

22 Organização não governamental, sem fins lucrativos que promove diversas ações relacionadas à conservação de tartarugas e mamíferos marinhos e seu hábitat.

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Índice das ilustrações

Legenda Vista panorámica de Garça Torta. Fotografia de Daniel Gontijo.
Créditos Fonte: https://abraceagarca.wordpress.com/​
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/docannexe/image/6490/img-1.png
Ficheiro image/png, 455k
Legenda Imagens projetivas das construções do Riacho Doce Beach Residence Flat e Vista da Garça Residence. O prédios serão construidos lado a lado, mas ambas as imagens ignoram a presença do prédio vizinho na publicidade.
Créditos Fontes: :http://riachodoceflat.com.br e http://recordinc.com.br/​project/​vista-da-garca
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/docannexe/image/6490/img-2.png
Ficheiro image/png, 541k
Legenda Saída de campo com estudantes no bairro Riacho Doce. Cristina e suas sobrinhas trabalhando no forno de barro. Fotografias da autora.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/docannexe/image/6490/img-3.png
Ficheiro image/png, 165k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Fernanda Rechenberg, «Novas formas de morar? Os (des)caminhos da expansão imobiliária no litoral norte de Maceió, Alagoas»Ponto Urbe [Online], 24 | 2019, posto online no dia 26 junho 2019, consultado o 08 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/6490; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/pontourbe.6490

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Fernanda Rechenberg

Universidade Federal de Alagoas

E-mail: fernandarechenberg@gmail.com

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