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Dossiê: Cidades do Interior, Interior das Cidades

Antropologia em qual cidade? Ou por que a “Amazônia” não é lugar de “antropologia urbana”

Anthropology in which city? Or why the "Amazon" has not been the place for "urban anthropology"
Telma de Sousa Bemerguy

Resumos

Nesse artigo apresento uma reflexão sobre discursos, eventos, práticas e teorias do campo da antropologia urbana no Brasil que possibilitem compreender os estranhamentos recorrentes provocados pela ideia de uma Amazônia Urbana. A partir da análise sobre o cerne dessa hesitação, apresentarei uma contribuição às reflexões sobre a carência de pesquisas de antropologia urbana em contextos urbanos de menor escala e em cidades não conformadas à imagem da metrópole no Brasil, destacando como as políticas para a interiorização do acesso ao Ensino Superior podem afetar esse quadro.

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Notas da redacção

Versão original recebida em / Original Version 05/02/2019

Aceitação / Accepted 25/05/2019

Texto integral

Antropologia em qual cidade? Ou por que a “Amazônia” não é lugar de “antropologia urbana”1

  • 1 Nesse artigo busquei condensar questões com que tenho me deparado ao longo de minha experiência “mi (...)

“Que imagem de Amazônia nós carregamos dentro de nosso espírito? O que sabemos desse conjunto de representações que nos leva a agir e pensar sobre uma Amazônia real, a expressar ideias e conceitos sobre os seus primeiros habitantes, a sua história, a sua situação atual? Tais imagens, apesar de estarem dentro de nós, não nos pertencem. São rigorosamente exteriores e arbitrárias, convenções que não criamos, cujos pressupostos frequentemente desconhecemos. Depositadas em nossas mentes, resultam do entrechoque de concepções engendradas por gerações passadas, formuladas em lugares próximos ou distantes de nós. Mas são elas que dirigem nossas perguntas e ações, e muitas vezes governam nossas expectativas e emoções”.

(OLIVEIRA, 2008: 14-15)

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  • 2 Nesta sessão utilizarei itálico quando me referir à cidade de Santarém por duas razões: 1) para des (...)

2Paraense, nascida e criada na cidade2 de Santarém no interior do Estado do Pará, no início de 2015 me mudei ao Rio de Janeiro para iniciar o mestrado no Museu Nacional. Naquele ano, a disciplina de Teoria Antropológica I seria ministrada por um dos muitos professores etnólogos que compõem o quadro do programa. Já estávamos no meio do semestre, quando o professor compartilhou comigo que havia sido convidado a participar como palestrante em um evento na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), local onde realizei minha graduação. O evento estava marcado para o semestre seguinte e aquela seria sua primeira visita à cidade de Santarém.

  • 3 Segundo os militantes do movimento, o projeto de criação do Estado do Tapajós é fruto de uma “luta (...)

3Tempos depois, já no 2º semestre, nos esbarramos na fila do restaurante do Museu Nacional e, por coincidência, fazia poucos dias que ele havia retornado de viagem, o que levou a uma conversa rápida sobre quais tinham sido suas impressões sobre a cidade e sobre a universidade. Naquele momento ele mencionou algo que chamou minha atenção. Falando de maneira geral, ele disse que havia ficado impressionado com “o quanto era forte à questão do Tapajós” na cidade. A conversa logo foi interrompida e não consegui perguntar ao meu professor o que ele queria dizer com aquilo. A dúvida se colocou, pois sabia que ali, “Tapajós” consistia em um referente extremamente polissêmico, situação sobre a qual me interessava refletir analiticamente. “Tapajós” é o nome de um dos rios que banha Santarém o qual, segundo a história local, é uma referência ao nome dado pelos colonizadores portugueses ao grupo indígena que encontraram naquela região ainda no século XVI, os Tapajó. Hoje, o termo é reivindicado por populações indígenas no curso de processos de identificação. A expressão “região do Tapajós”, por sua vez, é comum para se referir de modo genérico à Santarém e a outras cidades próximas banhadas pelo rio. A palavra também compunha de maneira bastante premente à paisagem da cidade, na medida em que era amplamente utilizada para nomear comércios, ruas e instituições públicas. O termo era conhecido também por estar associado à luta pela criação de uma nova unidade federativa na região, o Estado do Tapajós, caso que naquele momento cogitava etnografar para construir minha pesquisa de mestrado.3

4Com esse interesse em mente, me pareceu que poderia ser interessante saber a que “Tapajós” aquela primeira impressão de meu professor sobre Santarém estava associada. Mantive aquela curiosidade e pouco tempo depois, quando já havia definido que realizaria trabalho de campo em Santarém junto a agentes envolvidos na mobilização pela criação do novo Estado, decidi procurar pelo professor para esclarecer minha dúvida. Em função de vários desencontros, um tempo considerável tinha se passado quando finalmente pude abordá-lo no intervalo de uma das aulas que estava ministrando naquele momento. Como já esperava, ele não se lembrava de nossa breve conversa. Então, muito rapidamente eu tentei explicar por que aquela questão me interessava.

5Contei-lhe então que havia definido meu tema de pesquisa e que minha dissertação seria junto a um movimento social que militava pela criação de um Estado que haviam batizado de Tapajós. Naquele ponto da pesquisa, suas primeiras impressões me interessavam, pois havia notado recentemente que a polissemia do termo Tapajós permitia um certo imbricamento entre os processos de produção de pertencimento afetivo à região, à cidade de Santarém e ao novo Estado (Bemerguy 2017). Comentei rapidamente, então, que, em minha última visita à Santarém, tinha me dado conta de que havia muitas referências à palavra Tapajós espalhadas pela cidade e que fiquei me perguntando se, por acaso, seria isso que teria motivado aquele comentário inicial.

6Como meu professor realmente não conseguiu lembrar o que quis dizer naquele primeiro momento, ganhei uma nova reflexão sobre porque ele acreditava que o “Tapajós” havia chamado sua atenção. Assim, ele me disse que acreditava que seu comentário estava muito atravessado por imagens das leituras de etnografias realizadas naquela região e que deveria ser interpretado à luz do que o Rio Tapajós representava nas descrições de viajantes e no campo da etnologia indígena. Em seguida fez a observação que me levou a começar esse artigo com a descrição dessa situação: “Muito interessante a situação que você vai abordar. Seria assim um trabalho inspirado nos ‘estudos de comunidade’?”.

  • 4 Ao longo de todo trabalho utilizarei aspas quando me referir a Amazônia para marcar que não o uso s (...)

7Naquele semestre, eu estava realizando o curso de antropologia urbana e a leitura da bibliografia me provocava a pensar se minha proposta de pesquisa junto a esse movimento que atuava na cidade de Santarém permitiria localizar tematicamente meu trabalho como um estudo urbano. Assim, provoquei-o a falar sobre essa questão e perguntei por que sua primeira reação foi associar minha pesquisa ao campo dos “estudos de comunidade” e não ao campo da “antropologia urbana”. Ele respondeu, então, que aquela sugestão havia lhe ocorrido em função do conjunto de questões que os trabalhos de “estudos de comunidade” levantaram, ou seja, por acreditar que a contribuição teórica apresentada por essas etnografias poderia ser útil para minha pesquisa. Nesse momento, mais uma vez precisamos interromper a conversa, pois o intervalo havia acabado e o professor precisava retomar a aula. Agradeci a atenção e saí da sala decidida a refletir sobre a questão que apresento nesse artigo: por que a “Amazônia” não é pensada como um lugar de “antropologia urbana”4?

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9A situação com a qual escolhi abrir esse artigo representa apenas uma das tantas situações concretas de interação em espaços acadêmicos que me fizeram refletir sobre as dificuldades de escapar dos enquadramentos temáticos associados à “Amazônia”. Nesse contexto, tem sido bastante interessante observar como a cidade de onde eu venho é localizada e fixada dentro desse marcador mais amplo carregado de representações que, até então, pouco (ou ao menos eu achava) atravessava meu cotidiano em Santarém. Em boa parte dos circuitos acadêmicos localizados fora da região Norte, sobretudo no centro-sul, aprendi que o lugar de onde vim e onde fazia pesquisa indubitavelmente se chamava “Amazônia”, região para onde muitos colegas sonhavam em “viajar” para realizar seus “trabalhos de campo à la Malinowski” (Velho 1980: 14).

10Nesse contexto, me vi continuamente provocada a considerar o conjunto de generalizações históricas (Said 1990) que incidia sobre o lugar que havia elegido como lócus para meu trabalho de campo, aprendendo na prática e a cada nova conversa sobre meus interesses de pesquisa, como a “Amazônia” não era um “terreno livre para o pensamento e ação” (Ibid). Desse modo, entre essas interações casuais e o acúmulo de leituras sobre a história da região, passei a observar como essas “generalizações” estavam associadas à manutenção das fronteiras de uma “geografia imaginativa” (Ibid) que atribuía a esse espaço uma posição/representação específica no contexto da geopolítica nacional. Correntemente representada como a “última fronteira” a ser “conquistada”, no processo de contínua “invenção do Brasil” a “Amazônia” tem sido continuamente pensada como um “vazio geográfico” (Oliveira 2008). Imaginada como uma “terra sem homens”, entre imaginários coloniais que ora a transformavam em “inferno verde” ora em um “paraíso perdido” (Gondin 1994), fica evidente como recai sobre a região uma ordem discursiva que remete a um enredo associado à natureza, ao anacronismo, ao exotismo, ao atraso, ao subdesenvolvimento.

11A persistência de representações e termos forjados ao longo do projeto colonial civilizatório inúmeras vezes (re)conduzido na região tem chamado atenção de pesquisadores ao longo de trabalhos realizados em diferentes contextos amazônicos (Rodrigues 2008; Castrob 2013; Oliveira 2014; Uribe 2017; Noleto 2018; Bemerguy 2019). Nesse quadro, me parece haver um interesse compartilhado em explorar analiticamente a profundidade histórica das situações sociais abordadas, de modo a destacar a dimensão durável da empreitada colonial e a capilaridade de seus efeitos nas mais diversas dimensões da vida das populações que habitam a região. Indagando as dificuldades da Antropologia brasileira em abarcar a complexidade da diversidade sociocultural da “Amazônia”, tomo essa abordagem como inspiração para apresentar uma reflexão que também pretende ser um convite a problematizar as formas sutis pelas quais se reproduzem – inclusive entre os antropólogos – representações e posturas de fundo colonial sobre os lugares.

12Penso que imaginários sobre a “Amazônia” fortemente arraigados no senso-comum perpassam – em alguma medida - a forma como determinadas vertentes da antropologia brasileira tem reagido à região. Desse modo, retomando a provocação de Oliveira (2008) citada acima, penso que se considerarmos a produção dessa “geografia imaginativa” desde as representações que muitos antropólogos “carregam em seus espíritos”, veríamos o quanto este espaço é “inventado” (Said 1990) como um lugar onde (só?) seria possível fazer antropologia a partir de um encontro com uma “alteridade radical” (Peirano 1998; 1999), um encontro com o “outro”. Esse quadro me parece ter uma relação estreita com o fato de a “Amazônia” não ser pensada como um lugar de “antropologia urbana”, ponto sobre o qual apresentarei algumas considerações nas páginas que seguem.

  • 5 Essa afirmação está embasada em levantamentos realizados na plataforma Scielo e no Banco de teses e (...)
  • 6 De modo a reforçar esse destaque me parece importante apresentar algumas referências encontradas a (...)

13Esclareço que o objetivo desse artigo não é afirmar que não existem pesquisas de antropologia urbana na Amazônia. Apesar de proporcionalmente em números menores5, há um conjunto significativo de trabalhos etnográficos relacionados a temática do urbano realizados a partir das cidades da região6. Seguindo Oliveira (2008), meu objetivo é chamar a atenção para a existência de uma determinada “imagem de Amazônia” e que, certamente, essa “imagem” não produz esse lugar como um espaço privilegiado para pesquisas de “antropologia urbana”, levando a uma escassez de investigações classificadas como tais na região. Nesse sentido, a proposta desse artigo é seguir discursos, eventos, práticas e teorias do campo da antropologia urbana que parecem estar relacionados à produção desse quadro e às dificuldades de superá-lo. Penso que enfrentar o cerne dessa hesitação corrente em torno da ideia de uma Amazônia urbana pode contribuir para as reflexões sobre a carência de pesquisas de antropologia urbana em contextos urbanos de menor escala e em cidades não conformadas à imagem da metrópole.

14Para tanto, em diálogo com Sigaud (2013), buscarei apresentar uma revisão bibliográfica interessada tanto na “teoria antropológica” quando na “história da antropologia”. Para a antropóloga, conhecer a história da antropologia ultrapassa o entendimento da teoria. “Uma história da antropologia é a história de como foram se constituindo os antropólogos e as instituições” da disciplina (Ibid). Nesse quadro, os pontos de vista teóricos constituem apenas uma parte da história. “A história são as instituições, os conflitos, as pessoas, os indivíduos”. (Ibid). Com essa distinção em mente, e ainda seguindo o objetivo de pensar em imagens, produção de imaginários e invenções, gostaria de esclarecer que irei tratar a noção de antropologia urbana de duas maneiras distintas ao longo do trabalho: 1) como um conjunto de trabalhos que fornecem contribuições teóricas e metodológicas de várias ordens para pensar os fenômenos na/da cidade ou, para citar Sigaud (2013), a antropologia urbana como “teoria antropológica”; 2) como um campo temático constituído através de escolhas de pesquisa possíveis feitas por antropólogos de carne e osso suscetíveis às dinâmicas dos “campos científicos” (Bourdieu 1983) e de seus departamentos e universidades; algo que pode ser localizado como uma leitura em função da “história da antropologia”.

Sobre tipologias entrelaçadas e o urbano em teoria

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  • 7 Ultrapassa os objetivos desse artigo retomar com profundidade o lugar ocupado pela Escola de Chicag (...)

16 Quais seriam as particularidades da individualidade e da vida mental do homem urbanita? Que características poderiam ser mobilizadas para definir um espaço como urbano? Existem fenômenos tipicamente da cidade? Essas questões estiveram na base das discussões constitutivas do campo da antropologia urbana. Fruto de uma conjunção de reflexões realizadas no bojo de um acelerado processo de urbanização observado em várias partes do mundo entre o final do século XIX e o início do século XX, as pesquisas antropológicas sobre ou em contextos urbanos podem ser remontadas a partir dos trabalhos pioneiros realizados pela Escola de Chicago7, os quais tiveram grande influência nas pesquisas sobre o urbano que viriam a ser realizados no Brasil (Mendoza 2005). Ali, em uma discussão tributária aos trabalhos de Simmel (1902) e Weber (1921), os trabalhos de Louis Wirth e Robert Redfield provocaram um intenso debate, que se tornou fundamental para compreender as definições tipológicas estruturantes que estiveram na base do processo de constituição do campo da antropologia urbana.

17Em 1938, Wirth publicou o conhecido ensaio denominado “O urbanismo como modo de vida”, onde propôs uma definição sociológica da cidade baseada no tamanho dos assentamentos, na heterogeneidade dos indivíduos e na predominância de relações sociais largamente superficiais, transitórias e impessoais. Em consonância com as questões de sua época, para Wirth a cidade não era uma “criação instantânea, mas um produto do crescimento” gerado por um processo acelerado de transformação (industrialização/urbanização) de uma sociedade anterior, a folk. Redfield (1947), por sua vez, em uma proposta de pesquisa mais alinhada às metodologias da Antropologia, partiu dos resultados de trabalhos de campo realizados em uma pequena comunidade do México para formular uma definição sobre o que seria a sociedade folk. Para o autor, a “sociedade folk” ideal era uma espécie de anti-cidade com características que deveriam ser pensadas pelo exercício de sua oposição à sociedade urbana moderna. Assim, se a cidade era um “assentamento grande e denso” habitado por urbanitas individualistas de comportamentos e estilos heterogêneos que experienciavam relações sociais fragmentadas e impessoais (Wirth, 1938), a sociedade folk era uma comunidade de menor tamanho caracterizada pela predominância das relações face-a-face, pela força estruturante das relações de parentesco, pela centralidade do sagrado e pela homogeneidade existente entre indivíduos, normas, valores e crenças (Redfield 1947).

18Na medida em que ambos propuseram tipologias para pensar os contextos que buscavam compreender, as características enumeradas por cada autor ao longo desse exercício de abstração terminaram por produzir dois tipos ideais em oposição que seriam descritas por Redfield (1947) nos termos de um continuum folk-urbano. Assim, medindo gradações das características típicas de cada uma das definições, seria possível aprofundar a compreensão sobre as diferenças entre os modos de vida urbano e rural e seguir os efeitos desestruturantes da urbanização em modos de vida tradicionais. O debate sobre as especificidades da vida urbana realizado no bojo das pesquisas desses dois autores embasou a produção de uma dicotomia que levou o campo da antropologia urbana a se estruturar pela sua oposição ao não-urbano: o primitivo, o folk, o rural (Pardo e Patro 2012). Desse modo, em um contexto onde os interesses de pesquisa seguiam pautados pelos problemas sociais associados ao processo de urbanização, o paradigma do continuum folk-urbano acabou por embasar uma série de pesquisas sobre o “problema” da migração do campo-cidade, as quais em alguma medida - pela própria natureza dicotômica da indagação proposta – acabaram tendo o efeito de reificar classificações em torno do que seria urbano e do que seria rural/tradicional.

19Em vista das conceituações estabelecidas, não demorou muito para que o paradigma do continuum folk-urbano passasse a ser criticado por inúmeros autores em função das limitações teóricas que estabelecia. Em um balanço sobre o campo, Frúgoli (2005: 139) retoma as críticas apresentadas ao modelo no contexto estadunidense, afirmando que as “referências apriorísticas que circunscreviam a chamada cultura urbana foram uma a uma relativizadas (não propriamente negadas)” e que um novo campo de referências para reflexão e pesquisa se estabeleceu. Agier (2011: 33-34), por sua vez, destaca que a própria base do método etnográfico demanda que o antropólogo urbano se “emancipe de qualquer definição normativa e a priori de cidade para poder procurar a sua possibilidade por toda a parte, trabalhando para descrever o processo”.

  • 8 É importante destacar que a leitura do campo da antropologia urbana na chave de uma antropologia na(...)

20No Brasil, contexto que nos interessa mais diretamente, diversas publicações demonstram que desde o início do processo de institucionalização do campo nos anos 70 também houve uma rejeição a “referências apriorísticas” sobre o urbano nos moldes apresentados por Wirth. Gilberto Velho, referência fundamental no processo de institucionalização da antropologia urbana no país, em texto publicado em 1976 juntamente com Luís Antônio Machado Silva, esclarece que não pretende “isolar o urbano como fenômeno e trata-lo como um domínio autônomo dentro da ciência social”, afirmando que não estão entre seus objetivos analíticos a tarefa de “distinguir fenômenos urbanos” e demarcar os “limites entre o rural e o urbano” (Velho e Machado 1976: 71). Em 1980, quando o campo da antropologia urbana começava a ganhar institucionalidade no país e o modelo do continuum folk-urbano seguia influente no âmbito internacional, Oliven (1980: 29), por sua vez, apresentou críticas ao trabalho de Wirth e ao forte valor explicativo que o autor atribuía ao urbano per se, afirmando que este “confundia a cidade com a causa de vários processos sociais, quando ela é muito mais a consequência deles e/ou o lugar onde eles ocorrem”. No bojo dessas discussões foi sendo construído, no contexto brasileiro, o entendimento de que de que era um equívoco pensar a noção de cidade como uma variável independente tal como fazia Wirth, rejeitando-se a ideia de uma “cultura urbana” que seria a explicação dos fenômenos e não algo a ser explicado. Ao final, essas formulações críticas estiveram na base do que seria a prática da antropologia urbana no Brasil, onde os interesses têm se orientado mais pela perspectiva de fazer antropologia na cidade e não da cidade, como propuseram alguns dos pesquisadores pioneiros de Chicago (Magnani 2013)8.

21De maneira geral, nos inúmeros balanços produzidos sobre as pesquisas de antropologia urbana feitas no Brasil e no mundo, parece haver algum consenso sobre o caráter reducionista e limitador de definições tipológicas sobre o que seria o urbano ou sobre o que definiria uma cidade como tal. Portanto, se fôssemos nos ater somente à dimensão teórica que o campo de estudo da antropologia urbana provoca e sugere, sobretudo no Brasil, não caberia refletir sobre quais/em quais cidades têm se refletido sobre as questões que o campo suscita. Está evidente o longo processo de escrutínio e críticas dirigido a classificações e conceitos que tinham como efeito uma associação do urbano à metrópole e os inúmeros esforços analíticos em prol de desessencializar a categoria. Porque então certas cidades e as experiências vividas ali seguem fora do raio de interesse do campo? Porque a “Amazônia”, particularmente, não costuma ser pensada como um lugar de antropologia urbana? Para compreender melhor este cenário proponho deixarmos um pouco de lado as possibilidades abertas no plano das elaborações teóricas e passarmos a examinar como a antropologia urbana tem sido posta em prática no Brasil.

Entre aldeias, cidades e comunidades: o contexto brasileiro e a antropologia urbana na prática

22De modo geral, a história do processo de institucionalização do campo da antropologia urbana deixa evidente que o entendimento vigente da prática antropológica como o estudo de um “outro” distante e “desconhecido” gerou inúmeros debates a respeito da validade ou não de antropólogos reivindicarem o urbano e as cidades como objeto de estudo da disciplina. Esse quadro resultou em que muitos dos esforços em afirmar a legitimidade desse novo campo fossem produzidos pela constante demarcação da diferença entre aqueles que seguiam defendendo o entendimento clássico do que seria a antropologia e aqueles que acreditavam nas potencialidades das pesquisas “at home”. A leitura de alguns dos primeiros textos de Gilberto Velho sobre o tema (1973; 1976; 1980; 1981) deixa claro que no Brasil o processo não foi diferente. Na década de 70, quando o antropólogo publicou A Utopia Urbana, livro considerado um marco pioneiro para as pesquisas de antropologia urbana no país, o centro das questões dominantes da antropologia no Brasil eram a “etnologia, as relações inter-étnicas e o estudo dos grupos camponeses e/ou de situações tradicionais, como os que constituíram o objeto dos estudos de comunidade” (Velho 1981). Em elaborações críticas à insistência de que “antropólogo tem que é estudar índio” (1980:19), os textos de Velho demonstram que no contexto brasileiro o processo de institucionalização se deu em meio a tensões similares àquelas observadas no contexto norte-americano.

23Entre debates, alfinetadas e prováveis conflitos entre os poucos antropólogos brasileiros atuando no país nos anos 70/80, vemos como foi sendo estruturado um campo de pesquisas historicamente marcado por oposições como mato/asfalto (Corrêa 2011), urbano/rural, moderno/tradicional, distância/proximidade. Se mantivermos em mente as questões apresentadas na sessão anterior e os debates sobre/em contextos urbanos que, sobretudo na América Latina, estiveram fundamentalmente atrelados à problemática de um processo de urbanização/industrialização que era ao mesmo tempo temido e desejado enquanto ideal de modernização (Gorelick 2005), temos o contexto para situar-nos porque nesse momento foram as metrópoles que despertaram a atenção dos primeiros antropólogos que se dispuseram a observar o “urbano” no Brasil. Assim, a própria “antropologia urbana” que de fato era realizada no país acabava por reiterar os binarismos que recortavam de maneira explícita o campo no período. Nesse quadro de um campo dividido pela diferenciação, não é difícil concluir quais foram os caminhos que levaram a “Amazônia” a ser situada na outra ponta dos debates. Território de inúmeras populações indígenas e tradicionais, a região aparece no cenário da antropologia brasileira e internacional como um verdadeiro “paraíso” para os etnólogos e naturalistas (Da Costa 2009).

24Diante de todo esse quadro, creio estarmos em melhor posição para compreender a situação narrada no início desse texto: com esse conjunto de questões em mente, relativas tanto à "história da antropologia" quanto à "teoria antropológica", deixa de ser surpreendente que um antropólogo brasileiro não associe de pronto o campo da “antropologia urbana” à “Amazônia”. As “imagens” sobre a região e a memória da prática antropológica hegemonicamente conduzida ali tornam improváveis as conexões entre os dois referentes. Aqui, portanto, vemos como as possibilidades abertas pela dessencialização do “urbano” e das “cidades” feita no plano da “teoria” acabaram sendo obliteradas pela dinâmica particular da “história da antropologia” no Brasil. Nesse ponto, penso que ter em conta a persistência e a durabilidade dessa espécie de zoneamento temático territorializado que perpassa o processo de demarcação dos campos de pesquisa antropológica no país é um dos caminhos para refletir sobre a hesitação em pensar a “Amazônia” como um lugar de “antropologia urbana”.

25Ainda sobre os efeitos produzidos sobre a “antropologia urbana” que de fato têm sido posta em prática no país, me parece interessante retomar a centralidade do debate sobre a proximidade e o exercício metodológico do estranhamento. Em um texto seminal publicado em 1978, Gilberto Velho buscou demarcar as particularidades e a legitimidade do trabalho etnográfico em contextos urbanos destacando o caráter fundamentalmente analítico do distanciamento. Contrapondo-se ao entendimento hegemônico existente sobre a prática antropológica no período, o autor argumentou que era um equívoco assumir que percorrer grandes distância em busca do exótico garantiria um encontro com o desconhecido, da mesma maneira como era um equívoco supor que a proximidade sempre implicaria em um encontro com o conhecido. Ter “familiaridade” não significa “conhecer” todas as dimensões de uma realidade (Velho 1978). Essa elaboração reverberou no campo e o texto se tornou uma espécie de introdução obrigatória a todos os interessados em aprender a fazer antropologia nas cidades brasileiras.

  • 9 Para uma discussão sobre o lugar ocupado pela Escola de Manchester no processo de constituição do c (...)

26A proposta de Velho para um “estranhamento do familiar” provocou os antropólogos a se aproximarem de seus universos de origem, levando-os a se defrontarem com situações próximas, mais ou menos “conhecidas” (Velho 1981). Nesse ponto, é importante lembrar que nesse momento o campo da antropologia urbana passava por importantes mudanças de enfoque e perspectiva. No bojo dos trabalhos realizados no que ficou conhecido como a Escola de Manchester9, “os antropólogos que pesquisavam nas cidades passaram progressivamente a voltar seu interesse para a investigação de sistemas e de redes de relações” (Ibid). Assim, o pesquisador brasileiro, “geralmente em sua própria cidade, passou a se valer de sua rede de relações previamente existente e anterior à investigação, a partir da qual passou a realizar sua reflexão antropológica” (Ibid). Apesar de todas as potencialidades dessa proposta reflexiva que muito me inspira, penso que a virada teórica que consolidou a possibilidade de as próprias redes do pesquisador se tornarem objeto de pesquisa contribuiu para a produção de um imaginário que associa a prática da “antropologia urbana” ao espaço das grandes cidades e metrópoles. Argumento, assim, que nesse aspecto reside a principal explicação para as dificuldades reiteradas em pensar a “Amazônia” como um lugar de “antropologia urbana”.

27Reforço que não estou dizendo que o conjunto de questões levantadas pelo campo da antropologia urbana em termos estritamente teóricos anula a possibilidade de se refletir sobre essas questões fora das grandes cidades e das metrópoles. Como bem procurei demonstrar na sessão anterior, no plano teórico essa questão já não se coloca mais. Meu argumento é de outra ordem. Acredito que a partir da proposição de Gilberto Velho (1978) há uma consolidação das possibilidades de pesquisa a partir das “proximidades” e do “familiar”, algo produzido (ao mesmo tempo em que produz) pelo fato de que muitos pesquisadores passaram a realizar suas pesquisas em suas próprias cidades. Mas que cidades eram essas? Nesse ponto é importante não perder de vista que no período em que escreveu Velho, apenas duas instituições no país ofereciam acesso à pós-graduação em Antropologia: o Museu Nacional, no Rio de Janeiro e a Universidade de São Paulo, em São Paulo. Com o passar do tempo, penso que a distribuição desigual da rede pública de ensino superior se tornou um dos fatores que reiteraram que o lugar de “antropologia urbana” era nas metrópoles. Sugiro que este cenário é um dos elementos a se considerar para analisar as camadas de representações e práticas que explicam porque de maneira hegemônica a “Amazônia” – região historicamente e reiteradamente imaginada como a periferia exótica do país – segue não sendo pensada como um lugar privilegiado para pesquisas sobre/em contextos urbanos.

Na cidade, da cidade, antropologia em qual cidade?

  • 10 Muitos dos dados encontrados estavam organizados pelo recorte regional norte, nordeste, centro-oest (...)

28Nesse ponto, me parece interessante retomar alguns dados para demonstrar quais tem sido as cidades que estiveram no raio de alcance das redes “próximas” dos antropólogos urbanos ao longo do tempo e como a “Amazônia” entra nesse quadro. Na medida em que acredito que o interesse pela formação no campo da antropologia também pode ser possibilitado pelo acesso a discussões oferecidas por áreas afins, penso que seja necessário nos atermos de maneira ampla às desigualdades regionais ao acesso ao ensino superior e à pós-graduação no país. De modo geral, as análises (Marques e Cepeda 2012; CGEE 2016; Feldman-Bianco 2018) demonstram que, apesar da comparação entre períodos (1996-2014, 1980-2010; 2004-2012) revelar que as políticas de expansão realizadas na Era lula (2002-2010) produziram um extraordinário processo de desconcentração da distribuição das Instituições de Ensino Superior (IES) pelo país, ainda há uma “assimetria flagrante” entre as regiões e o Norte do país, a qual permanece muito atrás nos números (Marques e Cepeda 2012)10.

29Em livro recentemente publicado pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) encontramos informações para refletir sobre como esse cenário se apresenta no campo da antropologia. Em seu texto, Feldman-Bianco (2018), uma das organizadoras da publicação, retoma Otávio Velho para nos lembrar que, “apesar da existência de uma tradição antropológica antiga no país”, a disciplina somente se institucionalizou enquanto tal entre a década de 50 e 70, quando foi fundada a ABA, em 1953, e quando foi criado no Rio de Janeiro o programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, em 1968. Em 1980, doze anos após a fundação desse programa, tínhamos em funcionamento no país sete cursos de mestrado e dois de doutorado em Antropologia, oferecidos nas cidades de São Paulo, Brasília, Recife, Natal e Porto Alegre (Ibid). No bojo do processo de redemocratização, até o final da década de 90 mais quatro programas foram criados nas cidades de Santa Catarina (1985), Curitiba (1991), Niterói (1994) e Belém (1998) (Ibid).

30Assim, a formação em Antropologia chega à “Amazônia” pelas portas de uma de suas grandes metrópoles vinte anos após a fundação da primeira pós-graduação na área. O programa, no entanto, seria encerrado em 2004 quando o mestrado em antropologia que oferecia foi integrado ao programa em ciências sociais (Ibid) também oferecido pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Três anos depois, a formação específica na área voltaria a ser oferecida na região, quando em 2007 um programa de pós-graduação em antropologia foi criado em Manaus, outra grande metrópole regional. Em 2010, a formação em Antropologia passou mais uma vez a ser oferecida na UFPA e por fim, recentemente, em 2017 a Universidade Federal de Roraima passou a oferecer o curso de mestrado na área (Ibid). Portanto, mesmo depois de todas as políticas de expansão do ensino superior conduzidas no governo Lula (2002-2010), temos um cenário de três programas de pós-graduação em antropologia em funcionamento atualmente na Amazônia. Do total de 38 cursos de pós-graduação na área em exercício ao final de 2017 (mestrados acadêmicos e profissionais e doutorado), apenas 5 estão localizados na região (Ibid).

31Portanto, em termos gerais o quadro de distribuição das universidades e dos programas de pós-graduação no país nos mostra que o “próximo” e o “familiar” (Velho 1978) das cidades da “Amazônia” dificilmente seria acessado já que pouquíssimos na região tinham e continuam tendo menos possibilidades de chegar à universidade e à pós-graduação. De modo geral, penso que este quadro estrutural de desigualdade no acesso à educação tem uma relação direta com a manutenção dos imaginários e dos enquadramentos temáticos que recaem sobre a “Amazônia”, os quais, pelo efeito do “obliteramento da sociodiversidade da região”, garantem assim o espaço para a perpetuação dessas mesmas imagens, referências e interesses de pesquisa (Lacerda 2014: 15). Não são raras as análises que tem procurado refletir sobre como representações dominantes sobre a Amazônia e sobre os campos de investigação da antropologia se relacionam com a manutenção da escassez de pesquisas sobre determinados temas na região. Lacerda (2014) apresentou uma reflexão nessa direção recuperando o quadro de etnografias e análises sobre movimentos sociais e mobilizações sociais. Gontijo e Erick (2015: 28) fizeram apontamentos sobre essa questão recuperando os universos de interesse dos estudos sobre diversidade e sexual e de gênero, afirmando que “pouco ou nada se escreveu sobre esses e outros temas em contextos rurais e interioranos e/ou em situações etnicamente diferenciadas, sobretudo amazônicas”. Não à toa, ambos subtemas têm estreita relação com o cenário das grandes cidades.

32Nesse ponto me parece importante destacar que iniciativas interessadas em pensar o urbano e as experiências vividas nas cidades da região não necessariamente representam rupturas com o quadro hegemônico de temas associados a “Amazônia” ou a “antropologia urbana”. Cito como exemplo as pesquisas sobre etnologia urbana que ganharam espaço na Universidade de São Paulo (Andrade e Magnani 2013), as quais tem sobretudo a metrópole Manaus como cenário e as experiências das populações indígenas como foco de interesse. Com essas questões em mente, sugiro que a compreensão do processo de manutenção dos zoneamentos temáticos territorializados que recortam o campo ultrapassa o universo da teoria e somente poderá ser analisado em toda sua complexidade se também levarmos em conta as desigualdades estruturais de acesso ao ensino e à formação em pesquisa. Deve-se manter em mente que as temáticas e enquadramentos de interesse da disciplina seguem fluindo dos programas antigos aos novos e que, mesmo após as mudanças proporcionadas pelas políticas de expansão do acesso ao ensino superior, hierarquias institucionais, regionais e entre objetos/temas de pesquisa seguem sendo perpetuadas no campo da antropologia no Brasil (Simões, 2018; Trajano Filho, 2018).

Sobre novos enquadramentos e novas cidades “possíveis”

  • 11 Conforme definição proposta por Velho (1994), projeto é entendido como uma conduta organizada para (...)

33Utilizando as palavras de Velho (1994) destaco que só é possível entender um “projeto” - individual ou intelectual - se observarmos também seu “campo de possibilidades” correspondente11. Como venho argumentando, a “antropologia urbana” enquanto um “projeto” intelectual datado inserido em um contexto estrutural específico - desde a dinâmica dos departamentos, às disputas inerentes ao “campo científico” (Bourdieu 1983) da antropologia de forma mais abrangente, até à localização das universidades em que o projeto se consolidou - possuía por isso um “campo de possibilidades” particular para a elaboração de suas questões e para a realização das pesquisas. Penso que entre a persistência de uma imagem de antropologia forjada pela tríade viagem-distância-alteridade, imagens anacrônicas da “Amazônia” e uma imagem da “antropologia urbana” fortemente associada ao espaço das metrópoles, havia um “campo de possibilidades” muito restrito para que as experiências particulares vividas em cidades amazônicas despertassem o interesse dos antropólogos.

  • 12 Nesse ponto me parece importante mencionar iniciativas promovidas por antropólogos que tem ou tiver (...)
  • 13 Disponível em
  • 14 Disponível em

34Nesse ponto, penso que, apesar das análises demonstrarem que assimetrias permanecem existindo, não podemos perder vista as importantes mudanças promovidas pelas políticas de expansão da rede pública de ensino superior12 e as novas “proximidades” “possíveis” à antropologia urbana em função desse processo. Segundo informações disponíveis no site do Ministério da Educação, a expansão da Rede Federal de Educação Superior teve início em 2003 com uma política de interiorização dos campi das universidades federais13, mas seria entre 2005 e 2007 que o setor receberia uma “drástica injeção de recursos”, quando são criadas oito novas universidades federais e o Programa Universidade para todos (PROUNI) em 2005, e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) em 2007 (Marques e Cepeda 2012). A política de expansão das universidades públicas no país operou com alguns mecanismos distintos que previam desde uma expansão quantitativa das vagas, dos cursos e do número de instituições a uma expansão do acesso através de novos mecanismos de ingresso, como Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e das diversas políticas de reserva de vagas (Ibid). Nesse quadro, o ponto que mais interessa à discussão que proponho é o fato de que as políticas de ampliação demarcaram uma meta de expansão geográfica, a qual fica clara no tópico sobre a “ordenação territorial” da rede prevista no documento base do REUNI (Ibid). No âmbito desse objetivo específico iniciou-se um processo amplo de interiorização das universidades para dentro dos Estados e em direção às periferias urbanas, o qual possibilitou que populações de “regiões mais afastadas ou menos desenvolvidas” acessassem o ensino superior (Ibid). Segundo informações disponíveis no site do Ministério da Educação, desde o início do processo de expansão da rede federal de Educação Superior, o número de municípios atendidos pelas universidades passou de 114 em 2003 para 237 até o final de 2011 e desde então foram criadas 14 novas universidades e mais de 100 novos campi que possibilitaram a ampliação de vagas e a criação de novos cursos de graduação14.

  • 15 Os dados sobre os cursos foram reunidos a partir de levantamento nos sites das instituições e progr (...)

35Assim, após as políticas de expansão e interiorização das universidades na região norte atualmente temos três graduações em antropologia em funcionamento oferecidas nas cidades de Santarém (PA), Benjamin Constant (AM) e Boa Vista (RR); seis graduações em ciências sociais nas cidades de Porto Nacional e Tocantinópolis (TO), Manaus (AM), Belém (PA), Rio Branco (AC), Macapá (AM) e Porto Velho (RO) e uma licenciatura em ciências humanas na cidade de Rorainópolis (RR). Para além dos três programas de pós-graduação em Antropologia situados nas cidades de Manaus, Belém e Boa Vista – todos criados a partir dos anos 2000 - tivemos ainda a criação de diversos programas interdisciplinares afins ao campo da antropologia. No Pará atualmente a UFPA oferece o mestrado “Cidades, territórios e identidades” na cidade de Abaetetuba (2017), o mestrado em “Linguagens e saberes na Amazônia” em Bragança (2013), o mestrado em “Educação e Cultura” em Cametá (2014) e o mestrado em “Estudos antrópicos” em Castanhal (2017). A UFOPA, por sua vez – uma das universidades criadas pelo REUNI - oferece o mestrado em “Ciências da Sociedade” (2017) e o doutorado em “Sociedade, Natureza e Desenvolvimento” (2013) na cidade de Santarém. A Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – outra universidade criada pelo REUNI - oferece o mestrado em “Dinâmicas territoriais e sociedade na Amazônia” (2011). A partir de 2017, a Universidade Federal do Tocantins passou a oferecer o mestrado em “Estudos de cultura e território” na cidade de Araguaína; em Palmas o mestrado em “Comunicação e Sociedade” foi criado em 2016. No mesmo ano, a Universidade do Estado do Amazonas passou a oferecer o mestrado em “Ciências Humanas” nas cidades de Manaus e de Tefé. Na Universidade Federal de Roraima em 2012 foi criado o mestrado em “Sociedade e fronteiras”. Recentemente, em 2017, foi criado um curso similar na Universidade Federal do Amapá, o mestrado em “Estudos de fronteira”15.

36Penso que ainda não é possível dimensionar o impacto produzido pelas políticas que possibilitaram um acesso regionalizado e interiorizado ao ensino e à pesquisa (Marques e Cepeda 2012). O último balanço produzido sobre o campo da antropologia no Brasil contempla dados do período de 2004-2012 (Feldman-Bianco 2018). Apesar das análises indicarem dificuldades à consolidação de programas com “cara própria” e que não sejam uma extensão dos interesses e abordagens irradiadas dos centros mais antigos de formação (Trajano Filho 2018), penso que a chegada do ensino superior à cidades nunca antes contempladas com a possibilidade de formação em ciências sociais e antropologia cria um terreno fértil para a transformação do campo e dos conceitos da “antropologia urbana”, na medida em que torna possível que novas “proximidades” sejam exploradas analiticamente. Penso também que este é o caminho mais promissor para avançar sobre os entraves criados por representações limitadas sobre a “Amazônia”, as quais continuam a produzir apagamentos de questões possíveis e consequentemente de sujeitos, trajetórias, lutas e experiências que acabem comprimidas entre as muitas “imagens” que recaem sobre a região.

37

Considerações finais

38A ideia de “viagem” tem atravessado os debates sobre a natureza particular da produção antropológica desde o início da consolidação da Antropologia enquanto disciplina. Durante muito tempo, as experiências de cruzar oceanos, percorrer longas distâncias, afastar-se do “conhecido” rumo a uma viagem de encontro com o “outro” foram pensadas como definidoras do que seria a particularidade da prática antropológica (Peirano 1998). Pelos termos da experiência de trabalho de campo que correntemente tratamos como uma espécie de rito de passagem em nossa formação, a tríade viagem-distância-alteridade parece conformar uma espécie de imaginário durável sobre aquilo que um antropólogo “deve fazer”. Penso que esta imagem de Antropologia – apesar de haver sido enormemente criticada e transformada ao longo do tempo – segue orientando certas expectativas em torno de nossos trabalhos, constituindo uma camada de sedimentação simbólica persistente que, não raras vezes, perpassa os questionamentos dirigidos a nossas escolhas de pesquisa.

  • 16 Agradeço aos pareceristas anônimos pelos comentários que me instigaram a pensar como as referencias (...)

39Este artigo é fruto de reflexões acumuladas entre minha graduação em Antropologia, cursada na Universidade Federal do Oeste do Pará e os quatro anos que tenho transitado pelos espaços de formação e debate do programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Ao longo de minha formação, e de meu investimento de pesquisa, me mantive atenta às imagens inspiradas pela referência a “Amazônia” e logo se tornou evidente a perspectiva hegemônica sobre a região constantemente a (re)produz como um lugar para onde se “viaja” e raramente como um lugar de onde se vem. Com essas questões em mente, no curso de minha formação, tenho procurado traçar caminhos para exercer uma espécie de insubordinação controlada às expectativas geradas por essa “Amazônia inventada” pelos antropólogos, buscando maneiras de tensionar a tríade viagem-distância-alteridade que – como uma sombra – persegue insistentemente aqueles que têm a região como o contexto de suas pesquisas. Esse objetivo tem perpassado de maneira transversal minha trajetória de pesquisa e voltar-me à “proximidade” e ao “familiar” (Velho 1978) e às características e efeitos distintivos de minha inserção etnográfica particularmente “posicionada” (Abu-Lughod 1991) tem me parecido um caminho produtivo para exercer essa insubordinação. Não é minha pretensão, contudo, reivindicar algum tipo “de superioridade moral ou vantagem que possa ter fazendo antropologia” (Ibid: 466). Muito menos é meu objetivo questionar a legitimidade e a importância dos temas e abordagens hegemônicos de pesquisas etnográficas conduzidas na região. Com as provocações apresentadas aqui, pretendi apenas destacar que há muito mais a ser feito e também muito mais a ser valorizado das produções que emergem fora das grandes cidades e fora dos principais centros de antropologia do país16.

40Nesse artigo, busquei apresentar o resultado de um exercício reflexivo sobre os desafios e os estranhamentos enfrentados em uma busca por inserir-me entre as muitas “imagens” duráveis que incidem sobre a “Amazônia” e sobre a antropologia que se faz ali, enfrentando a hesitação com que tenho me deparado em torno da ideia de uma Amazônia urbana. Ao longo do texto, procurei destacar como apagamentos foram produzidos no bojo das dinâmicas particulares da “história da antropologia” no Brasil e que questões suscitadas no plano das discussões teóricas não reverberaram a ponto de transformar rapidamente práticas arraigadas. Sugiro que as considerações apresentadas a partir das cidades da Amazônia podem ser utilizadas para refletir sobre o quadro mais geral de carência de pesquisas de antropologia urbana sobre/em pequenas e médias cidades. No curso dos esforços em avançar sobre essa carência, penso que os efeitos das políticas de interiorização das universidades e das novas “proximidades” que passaram a ocupar a universidade não devem ser perdidos de vista. Em um contexto de desmonte das políticas de democratização do acesso ao Ensino Superior, retomar os apagamentos gerados pela concentração geográfica da rede e destacar as novas possibilidades que a interiorização pode criar para a antropologia, para a “antropologia urbana” e para a “Amazônia”, não se trata somente de um exercício analítico, mas também de uma posição política.

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Notas

1 Nesse artigo busquei condensar questões com que tenho me deparado ao longo de minha experiência “mista” de formação em Antropologia, transitando entre um programa de graduação criado em 2011 na “Amazônia”, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), e o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, onde realizei meu mestrado e onde atualmente sou doutoranda. Diferentes experiências de pesquisa inspiraram as reflexões apresentadas a seguir: minha iniciação científica em projetos de cartografia social realizados juntamente com as comunidades de Terreiro de Santarém, minha pesquisa de mestrado sobre o processo de mobilização em torno da criação de um novo Estado na Amazônia e minha atual pesquisa de doutorado ao longo/sobre as rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, buscando analisar os termos e os efeitos de projetos estatais/coloniais duráveis conduzidos na região. Em 2016, uma versão anterior do texto foi apresentada como trabalho final na disciplina de Antropologia Urbana ministrada por Maria Elvira Diaz-Benitez no Museu Nacional. Em 2017, tive a oportunidade de apresentar e discutir parte dessas reflexões no minicurso “Antropologia urbana na Amazônia” ministrado na UFOPA juntamente com Paula Lacerda, a quem agradeço pelo convite e pelos comentários feitos a diferentes versões do texto. Os argumentos apresentados a seguir, claramente, são de minha inteira responsabilidade.

2 Nesta sessão utilizarei itálico quando me referir à cidade de Santarém por duas razões: 1) para destacar que este era o termo naturalizado com que eu significava minha relação afetivo-subjetiva com o lugar 2) para chamar atenção ao fato de que o destaque dado à categoria cidade consistiu em uma decisão ponderada motivada por meu interesse em produzir um enquadramento que me possibilitasse explorar conexões analíticas e empíricas não óbvias àqueles que trabalham em contextos etnográficos amazônicos.

3 Segundo os militantes do movimento, o projeto de criação do Estado do Tapajós é fruto de uma “luta histórica” que pode ser remontada ao período do Império. Entretanto, o caso ganhou notoriedade nacional apenas em 2011, quando se conseguiu articular no Congresso Nacional a aprovação de um projeto de decreto legislativo (PL 19/1999) determinando a realização de um plebiscito para consultar a “população diretamente interessada” sobre a criação de dois novos Estados a partir da fragmentação do território do Estado do Pará: o Tapajós e o Carajás. Os votantes rejeitaram as propostas. Contudo, após a derrota, os índices de votação apenas nas regiões que comporiam os novos Estados foram recuperados pelos militantes favoráveis aos projetos para demonstrar que os Estados teriam sido criados se somente a população daquelas regiões houvesse sido consultada. Tanto no Tapajós, como no Carajás, mais de 90% da população votou SIM. Em Santarém, cidade cotada para ser a futura capital do Estado do Tapajós, os índices de votação favoráveis à criação do novo Estado chegaram a 98,63%. Minha vivência desse processo enquanto moradora da cidade me levou ao interesse em descrever como a “luta pela criação do Estado do Tapajós” foi produzida ao longo do tempo enquanto uma “causa” política com que a população da “região oeste do Pará” parecia se identificar politicamente e afetivamente. Para mais informações sobre a mobilização e sobre o processo de produção dos “acordos” em torno da proposta na cidade, na região e no Congresso Nacional, ver Bemerguy (2017; 2019).

4 Ao longo de todo trabalho utilizarei aspas quando me referir a Amazônia para marcar que não o uso somente como um termo referido à localização geográfica dessa região, mas como uma referência às imagens e invenções associadas a esse lugar. Na mesma direção, utilizarei aspas para me referir a “antropologia urbana” para indicar o campo na dimensão de suas práticas concretas e antropologia urbana sem aspas para me referir ao campo na dimensão das questões (não necessariamente mobilizadas) possibilitadas pelas discussões teóricas da disciplina.

5 Essa afirmação está embasada em levantamentos realizados na plataforma Scielo e no Banco de teses e dissertações da CAPES. Utilizando a ferramenta de busca por temas, encontrei na plataforma cerca de 100 indexações constando a palavra Amazônia/Amazon. Apesar dessa abundância, a palavra-chave “Amazônia urbana” não constava como expressão indexada. A palavra-chave “cidades amazônicas”, por sua vez, estava indexada, mas as buscas levaram a apenas um artigo. No banco de teses e dissertações da CAPES foram encontrados 353 trabalhos na busca restrita a expressão “Antropologia urbana”, grande parte deles realizados na Universidade de São Paulo (94), na Universidade Federal de São Carlos (34), na Universidade Federal Fluminense (32) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (27). Das universidades amazônicas, apenas duas possuíam trabalhos na lista: a Universidade Federal do Amazonas (3) e a Universidade Federal do Pará (7). A busca pela expressão “cidades amazônicas”, por sua vez, levou a 72 trabalhos. Dentre eles, apenas 7 eram produções da área de Antropologia, dos quais 5 foram defendidos na USP, 1 na UFAM e 1 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esses dados são representativos, pois dizem respeito aos referentes que os próprios pesquisadores escolhem por em destaque em seus trabalhos. Segue ainda por fazer um levantamento mais abrangente sobre todas as pesquisas antropológicas realizadas nas cidades amazônicas, o qual – para abarcar as possíveis mudanças proporcionadas pela expansão recente da rede de ensino superior na região – precisaria abranger não só dissertações, teses e publicações em periódicos indexados (especialmente as produzidas nos/pelos programas locais), mas também as monografias produzidas ao longo dos últimos anos nos novos programas de graduação em antropologia em funcionamento em cidades no interior dos Estados da região.

6 De modo a reforçar esse destaque me parece importante apresentar algumas referências encontradas a partir de um levantamento bibliográfico não exaustivo sobre as pesquisas em/ sobre as cidades da região. Não necessariamente os autores mencionados as classificam como pesquisas de antropologia urbana. Para coletâneas interdisciplinares de artigos interessados em contribuir às análises sobre o mundo urbano amazônico, tratando, sobretudo, do papel desempenhado pelos rios na definição das particularidades inerentes às cidades da região, ver Trindade Júnior e Tavares (2008) e Castroa (2009). Há também um número significativo de etnografias sobre a vida das populações indígenas presentes nas cidades amazônicas. Para citar apenas algumas referências, destaco Andrello (2006) e Andrade e Magnani (2013). Sobre esse tema em particular, lembro que muitos trabalhos foram realizados no bojo das pesquisas de José Guilherme Magnani sobre etnologia urbana, de modo que a lista de pesquisas orientadas pelo antropólogo é uma excelente referência para aqueles interessados em acessar mais trabalhos sobre essa discussão. Muitos dos trabalhos orientados pelo pesquisador também consistem em contribuições produzidas na interface com os debates sobre circulação e mobilidade. Outra pesquisa recente que trata sobre a Amazônia urbana através dessa discussão é a etnografia de Silva (2018) junto a artistas de rua. Para contribuições sobre a dimensão imagética característica das cidades amazônicas, ver Bemerguy (2018), Bandeira Júnior (2018) e De Castro (2018). Para uma reflexão sobre o urbano e as dinâmicas particulares de cidades fronteiriças da região, ver De Lima Oliveira (2018). O trabalho do autor consiste também em uma etnografia sobre a temática do urbano na interface com os debates sobre gênero e sexualidade. Para outra contribuição etnográfica nessa direção, ver a etnografia de Noleto (2018) sobre os imaginários sexualizados em torno da cidade de Belém. Nessa interface destaco ainda os trabalhos de Fabiano Gontijo, que tem contribuído de maneira indireta para o debate sobre a Amazônia urbana, ao realizar uma série de análises e reflexões sobre as experiências de gênero e sexualidade em cidades de médio e pequeno porte. Nessa direção, destaco também as contribuições dos trabalhos de José Miguel Nieto Olívar. Retomo ainda o balanço produzido por Da Costa (2009) sobre as pesquisas antropológicas urbanas na Amazônia, onde o autor recupera a importância dos trabalhos etnográficos sobre religiosidades populares na constituição desse campo de pesquisas. Para trabalhos produzidas nessa interface, ver Figueiredo (2008) e Maués e Villacorta (2008). Por fim, acho importante retomar os trabalhos da antropóloga paraense Jane Beltrão, que desde a década de 90 vem orientando diversas pesquisas sobre temáticas urbanas na Universidade Federal do Pará. Atualmente, coordena juntamente com Katiane Silva, o grupo de pesquisa “Cidade, aldeia e patrimônio” na instituição. Nesse ponto, destaco ainda os trabalhos realizados pelo NAURBE, núcleo de pesquisas coordenado por Edison Luis Gastaldo na Universidade Federal do Amazonas. Esse balanço não se pretende completo e reflete, sobretudo, meus interesses de pesquisa e minha trajetória de formação na pós-graduação do Museu Nacional.

7 Ultrapassa os objetivos desse artigo retomar com profundidade o lugar ocupado pela Escola de Chicago no processo de constituição do campo da Antropologia Urbana. Para esta discussão, sugiro Becker (1996) e Hannerz (2015).

8 É importante destacar que a leitura do campo da antropologia urbana na chave de uma antropologia na cidade segue não sendo hegemônica. Em publicações recentes vê-se que as disputas e os debates em torno do entendimento do que deve ser considerado como antropologia urbana permanecem sob atualização. Para um panorama dessa discussão à nível internacional sugiro a leitura conjunta de Hannerz (2015), Low (1996; 2014), Pardo e Patro (2012), e Jaffe e De Konning (2016).

9 Para uma discussão sobre o lugar ocupado pela Escola de Manchester no processo de constituição do campo da antropologia urbana, ver Hannerz (2015).

10 Muitos dos dados encontrados estavam organizados pelo recorte regional norte, nordeste, centro-oeste, sudeste, sul. Assumindo todos os riscos da imprecisão, utilizarei os dados sobre a região norte para refletir sobre o acesso ao ensino superior na Amazônia. Por esta razão também não serão incluídos dados das universidades do Maranhão, Estado que integra a Amazônia Legal.

11 Conforme definição proposta por Velho (1994), projeto é entendido como uma conduta organizada para atingir finalidades específicas e a noção de campo de possibilidades como dimensão socio cultural, espaço para formulação e implementação de projetos.

12 Nesse ponto me parece importante mencionar iniciativas promovidas por antropólogos que tem ou tiveram oportunidade de trabalhar como professores em instituições de ensino periféricas em refletir sobre os desafios e sobre as novas frentes de pesquisa possibilitadas pela interiorização. Recentemente, na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, as mesas redondas coordenadas por Fabiano Gontijo (Mesa 15) e Rafael Noleto (Mesa 20) foram espaços para reflexões nesse sentido. Informações sobre as atividades podem ser consultadas em https://www.31rba.abant.org.br/modalidadetrabalho/public?ID_MODALIDADE_TRABALHO=2, acessado em 02 de junho de 2019.

13 Disponível em

http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Itemid=81, acessado em 22 de Julho de 2016

14 Disponível em

http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Itemid=81, acessado em 22 de Julho de 2016

15 Os dados sobre os cursos foram reunidos a partir de levantamento nos sites das instituições e programas citados.

16 Agradeço aos pareceristas anônimos pelos comentários que me instigaram a pensar como as referencias bibliográficas citadas ao longo do texto são um espelhamento da formação que tenho recebido no Museu Nacional. Reconheço que o artigo carece de um maior diálogo com pesquisas produzidas em programas fora do eixo centro-sul, por isso, esta última crítica também reverbera em meu próprio trabalho.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Telma de Sousa Bemerguy, «Antropologia em qual cidade? Ou por que a “Amazônia” não é lugar de “antropologia urbana”»Ponto Urbe [Online], 24 | 2019, posto online no dia 26 junho 2019, consultado o 07 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/6464; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/pontourbe.6464

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Autor

Telma de Sousa Bemerguy

Doutoranda/PPGAS/Museu Nacional

E-mail: tsbemerguy@gmail.com

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