- 1 As discussões apresentadas neste artigo integram a dissertação da primeira autora sob orientação do (...)
- 2 As expressões entre aspas são utilizadas pelos habitantes de Salvaterra e auxiliaram a escolha dos (...)
1Este é um estudo sobre as relações entre memória e imaginário em Salvaterra-PA, com foco nas relações estabelecidas entre a sociedade e os cursos d’água na área urbana do município1. Partimos das narrativa de “filhas e filhos de Salvaterra”, senhoras e senhores apontados como “os antigos”, nascidos e criados na cidade ou que há muito tempo escolheram Salvaterra para “se plantar”2, sobre a história da cidade, suas paisagens e inúmeras significações relacionadas aos rios em um ambiente urbano. São identificados por sua comunidade de pertença como os “guardiões da memória” (Benjamin 1980), que deixam transparecer as fontes dos modos de agir no e com o lugar de um grupo e seus sentidos (Bosi 1994:75).
- 3 Na produção de ciências sociais no Pará, podemos citar vários autores desde Eduardo Galvão e Charle (...)
2A relação entre humanos e águas na Amazônia remete a um processo histórico que resultou em um universo extremamente diverso de saberes e práticas. Há muito está relação tem sido enfatizada em trabalhos acadêmicos nas diversas áreas do conhecimento3 e se mostra, como diz Carlos Sautchuk (2011:83), central à compreensão dos coletivos que habitam áreas ribeirinhas, constantemente caracterizados em função dessa relação. Porém, como este autor observa, é paradoxal a essa relevância, que as pesquisas sejam direcionadas a outros temas que não diretamente a relação com as águas.
3Hoje a Amazônia, no que diz respeito aos recursos hídricos, está marcada pela perda quantitativa e qualitativa das fontes; de gestão muitas vezes contraditória e incompatível com sua preservação. Porém, para além da análise dos efeitos e mudanças sociais ocasionadas por uma “modernidade” na região, podemos refletir sobre a relação dos amazônidas com os rios segundo uma lógica peculiar e sensível de apreensão e habitação dos espaços. Partimos da concepção de que a habitação de qualquer território pelo humano se dá por uma perene produção criativo-imaginária do espaço, que movimenta uma ética-estética de atuação e interação com ele. Em Salvaterra, isso ocasiona uma (r)e(s)xistência no modo de vida, onde estão contidos elementos estratégicos de preservação dos cursos d’água.
4É neste sentido que buscamos compor um leque de possibilidades de interpretação e diversificação epistemológica dentre as bibliografias sobre o assunto pensando Salvaterra a partir da lógica cotidiana de reprodução e criação da vida; a cidade para além da faixa de terra, que se expande nas águas. Para tanto, iniciamos esse artigo apresentando um breve histórico do município. Em seguida, apresentamos de forma geral como se dão as relação com os rios na cidade. Posteriormente, partimos para as narrativas dos moradores em uma reflexão acerca dos contextos em que as águas aparecem nas histórias da cidade, como percebem o espaço das águas ao longo do tempo e quais as principais imagens e paisagens atribuídas a eles. As principais imagens-relações identificadas em torno das águas foram: A água relacionada à vida e à morte; a água relacionada à sacralidade; a água como fonte de alimentos; e, por fim, os espaços aquáticos como lugares de habitação, onde, para além das áreas terrestres, também se expande a cidade, que só pode ser pensada a partir da relação desses dois elementos.
5Salvaterra está no arquipélago do Marajó, o maior em águas fluvio-marinhas do mundo (Seplan 2007:40), é banhada por águas ora salgadas por grande influência do oceano Atlântico, de junho a novembro durante o verão, ora doces, de dezembro a maio durante o inverno. É em torno das águas que Salvaterra desenvolve suas principais atividades econômicas, culturais e de transporte. As águas se caracterizaram como um dos principais componentes das paisagens, elemento de base para organização da vida social e cultural. Um olhar atento à região percebe que seus 20.027 (Sepof 2011) habitantes estão ligados aos rios de alguma maneira: a atividade pesqueira é a que mais absorve mão-de-obra (ibid.), as praias são os principais espaços de lazer e de turismo, e é através dos rios que se estabelece a via de ligação do município com a maior parte dos municípios vizinhos, bem como a capital do Estado, Belém.
6A ocupação humana da área estuarina remonta à fase pré-colonial de ocupação da Amazônia, onde as manifestações culturais dos primeiros habitantes deixou um legado sociocultural para as populações contemporâneas (Furtado & Souza 2006). Entrecortado por grandes e pequenos rios, furos, lagos e inúmeros igarapés esses espaços definiram também o desenho socioespacial do município, a maior densidade populacional está localizada onde a terra se encontra com a água, em sua sede, locus principal deste estudo. Estes espaços são imagens-reflexos da maneira como foi constituída a sociedade na região (Pinto 2008). É possível perceber dimensões culturais que interiorizaram as relações com o espaço das águas e constituíram um universo aquático rico em detalhes, imagens, narrativas e seres fantásticos que pulsam nos lugares praticados (Certeau 2012).
7Salvaterra foi elevada à condição de município somente em 1962. Mas, possui registros históricos europeus que antecedem 1500, ainda no final do século XV. Estudos apontam a ocupação por grupos indígenas desde 3.400 a.C. (Marin 2009: 210). Dentre os grupos indígenas que ocupavam o território estavam Sacacas, Aruans, Caias e Araris. Às margens do Rio Paracauari, indígenas se reuniam a fim de realizarem troca de artefatos, assim como para fins de defesa de seu território contra invasões externas (Sepof 2011). O espaço da cidade desde então já era caracterizado por intensa troca material e imaterial entre coletivos humanos.
8Populações negras foram incorporadas ao processo de formação histórica do município, quando africanos trazidos para a Amazônia na condição de escravos foram direcionados às fazendas do Marajó para o trabalho com o gado, a agricultura e a pesca: atividades necessárias à manutenção dos senhores locais (Marin 2009). A cultura africana deixou um precioso legado no que diz respeito a saberes e crenças no município. Os pormenores deste processo acabaram silenciados, como a influência dos rios no modo de vida da cidade. O que torna fundamental trazer à tona as memórias dos processos que deram origem às dinâmicas de urbanização em Salvaterra pelos olhos de seus habitantes, para compreender como se estabelecem vivências cotidianas entre moradores da cidade e os cursos d’água.
9No início da formação urbana, quando Salvaterra ainda era uma pequena vila, as construções eram dispostas ao longo da beirada, como é comum em comunidades ribeirinhas. O crescimento urbano de forma paralela aos rios se deu em várias cidades na Amazônia, como pode ser visto em etnografias desde Charles Wagley (1957), sobre uma pequena cidade na região do baixo Amazonas. Tal qual descreve Wagley (1957: 45) ocorre em Salvaterra, as ruas obedecem a uma sequência numérica, primeira, segunda, ..., e são cortadas por travessas, também numeradas. Mais tarde, nomes de personalidades históricas foram dados a algumas, mas como ponderou Miranda sobre a Rua Victor Engelhard, “não sei que botaram esse nome nessa rua, pra mim é 4ª!”. Tanto as ruas como as travessas começam do contato com os rios, as ruas são paralelas ao rio Paracauari e as travessas à baía do Marajó.
10Fleischer observa o mesmo em Melgaço, também no Marajó, onde este padrão é determinante nos processos de organização sócio-espaciais. Em Melgaço, houve a distinção da parte da “frente”, onde estão localizadas as instituições públicas e comércio, onde há maior estrutura urbana e moram pessoas de maior poder aquisitivo, da de “trás”, onde a infraestrutura urbana é quase inexistente e moram pessoas de menor poder aquisitivo (Fleischer 2011:65-69). Em Salvaterra ocorre organização semelhante, porém a região localizada às margens dos rios é chamada de “centro” e as áreas mais afastadas tem nomes variados, distribuído por bairros.
11A fixação no território ocorreu ao longo dos rios, assim foram se organizando os povoados, se intensificando as casas, dispondo-se as ruas. Os fluxos de movimentação dos corpos pelo território são os responsáveis pela agitação das ruas, da cidade e dos processos de mudança do ambiente urbano. A ligação entre os diversos povoados que anteriormente se dava somente pelos rios, com o tempo foi se estabelecendo também por terra, em decorrência da diversificação dos meios de transportes. A cidade foi se metamorfoseando, novos caminhos foram abertos. Mas as ruas ainda dão para o mesmo lugar, mesmo a PA154 que liga o rio Camará ao rio Paracauari, recomeça em Soure e dá para o mar. São os rios os principais comunicadores na região. Os relatos sobre as movimentações dos moradores revelam caminhadas anfíbias, da terra para a água e vice-versa.
12As águas são, como mostra Sautchuk em etnografia na vila do Sucuriju no Amapá, “interface comunicativa” (2011:89), entre os seres que as habitam, humanos ou não. O trânsito, portanto a prática desses espaços, vão se constituindo como narrativas dessas relações. Do caminhar ao navegar os moradores de Salvaterra vão “esculpindo o tempo” (Rocha 2003:120) da habitação, da casa, da cidade. Os rios não são barreiras ou fronteiras, mas caminhos de expansão através dos quais são realizadas trocas materiais e simbólicas (Diegues 1998:88). Mesmo com o adensamento da malha rodoviária, as embarcações ainda são imprescindíveis, elas compõem a paisagem citadina, como observa Malinowski nas Ilhas Trobriand (1976:93). Em Salvaterra, como na descrição desse antropólogo elas estão sempre no horizonte, a navegar, e por toda orla, em abrigos construídos para resguardar-lhes do sol e da chuva, ou somente recobertas por folhas de palmeiras.
13A importância das embarcações pode ser observada ainda com relatos como este:
Eunice: Tem o Manjaba o Manjabinho, e o Manjabão.
Lanna: Da onde vem esse apelido?
Manjabão (filho de Eunice): Porque meu pai tinha duas canoa que se chamava São Sebastião e Iemanjá. Então é de Iemanjá, vem de Iemanjá. Aí, o pessoal colocaram o apelido. Porque aqui em Salvaterra o pessoal só conhece a gente assim, por causa da embarcação.
Manoel (filho de Eunice): Desde nove anos que a gente pilota canoa aí, a vela, motor, nós conhece toda a onda, entendeu?
14Falávamos nessa ocasião sobre os apelidos dos filhos de Eunice que tiveram origens nas embarcações do pai, o “falecido Centenário”, pioneiro no transporte de pessoas entre Soure e Salvaterra, inclusive, na incorporação dos barcos com motor na travessia. Aqui é importante pensar sobre como as embarcações muitas vezes são como as extensões de seus donos e vice-versa, afinal essas pessoas passam grande parte da vida na água, amparadas por elas. Para Malinowski as embarcações “vivem a vida de seus navegantes”, não é somente construída de matéria, como também de “tradições e experiências pessoais. São objetos de culto e admiração, uma coisa viva que possui personalidade própria” (1976:91). Da mesma forma como os donos dão nome a elas, refletindo suas crenças, desejos e afetos, as embarcações também lhes nomeiam e contribuem a constituição de suas próprias identidades.
Montaria na Prainha, Salvaterra
Fonte: Peixoto 2014.
15Dessa íntima relação com as águas inúmeras imagens nascem, água morta, dormente, agitada, parada, grande, sem cabelo, inúmeras são as expressões que as caracterizam. As águas, que têm cores, cheiros, sabores, e as múltiplas associações feitas a cada um de seus aspectos, revelam toda a riqueza das significações a elas atribuídas, atrelando ainda seu caráter histórico, econômico, religioso, em que estão implícitos os atos afetivo-contemplativos que estruturam um saber-fazer em torno dos rios, lagos, igarapés. Em Salvaterra a significação dada a esses ambientes sempre está associada à vida, à fertilidade, ao sagrado, à maternidade, enfim, ao mistério do mundo. Ronda um respeito e uma solidariedade recíproca que acaba por influenciar os mais variados âmbitos da vida. A água anima as histórias narradas para além de serem seus cenários. A multiplicidade de formas que assume indica a importância desse elemento na constituição das feições da paisagem citadina.
Avô e neto na Praia Grande, Salvaterra
Fonte: Peixoto 2014.
16“Antigos”. Assim são chamados os mais velhos moradores da cidade quando citados: “no tempo dos antigos...”; “isso é o que diziam os antigos”; “os antigos é que sabem”. Expressões como essas podem ser entendidas de formas variadas e, por vezes, contraditórias. Indicam, ainda, o afastamento temporal do fato; delegam legitimidade ao narrado; eximem o narrador da autoria das histórias entregando-as aos mais velhos.
O que eu posso falar da cidade de Salvaterra? Posso falar, posso falar do que eu sei e vivi, mas principalmente sobre os meus príncipes: meu pai e minha mãe, sobre o que eles me contavam e eu levo sempre comigo.
17Com essas palavras fui recebida por Oneide em uma manhã ensolarada de setembro. “Nascida e criada” em Salvaterra. Sua família há muito tempo habita a cidade, desde o tempo em que “só tinham 15 famílias, eram 5 casas, caminho era caminho de estradinha”. Seus pais, avós e bisavós lhe contaram com propriedade sobre o início de tudo naquele lugar. Hoje, Oneide vive em uma casa localizada na segunda rua com seu marido. Ela e o marido têm uma “venda”, A Preferida, localizada ao lado da igreja, de frente para o rio Paracauari.
18Oneide nos recebeu logo avisando que nas histórias que iria contar ecoavam várias vozes, “porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem” (Halbwachs 2004:30). A reverência ao passado e aos que os precederam na função de contadores, guardadores do tempo é comum a todas as outras senhoras e senhores com quem conversamos. Os ancestrais e as expressões de suas experiências reverberam em seus predecessores através dos gestos, olhares e palavras, e assim são constituídos como tal. Suas ações exemplares garantem que a morte não seja uma barreira para a duração (Eliade 1992:47).
19Para Mircea Eliade os antepassados mortos perdem o que o autor chama de individualidade histórica e passam a figurar o arquétipo do ancestral, que ultrapassa a existência individual de qualquer componente do grupo configurando uma herança coletiva, um patrimônio do grupo. A morte representa o “ato conclusivo da história de um individuo” (Eliade 1992:47), mas a incorporação de um ancestral à história do coletivo e ao processo de construção identitária, reforça vínculos e corrobora com suas ações exemplares para os esquemas de representação do mundo da comunidade a qual pertence.
- 4 Aqui me aproximo de Gilbert Durand, que considera a existência de constelações de imagens, ou seja, (...)
20Por isso procuramos as imagens das águas nas palavras evocativas dos moradores da cidade. Os questionamos sobre a história de Salvaterra, quais as memórias da vida na cidade, imediatamente variadas narrativas nas águas nos eram apresentadas. Buscamos perceber quais as imagens que esse elemento constela em torno de si4 na (re)criação dos sentidos de existir e habitar nesse lugar. Assim tivemos acesso ao que foi escolhido para ser lembrado, para durar na história da vida dessas pessoas e às unidades de sentido que “vibram no tempo” (Rocha; Eckert 2010:121), resultado da relação dialética entre o tempo vivido e o tempo pensado. A duração é, pois, um constructo da memória na força da imaginação.
21Os moradores ouvidos foram os mais antigos moradores que viveram o debruçar da cidade sobre o rio, mesmo que pela experiência da escuta. Suas narrativas sobre a cidade, suas paisagens: “experiência humana possível pela evocação das imagens que habitam nossa memória coletiva” (Sansot 1983:35). Incitar o trabalho da memória de senhoras e senhores de Salvaterra desvela a riqueza e diversidade da configuração cotidiana das paisagens compartilhadas, uma forma de experienciá-la pelo processo auditivo. A seguir, destacamos algumas das principais imagens que convergem em torno das águas nessas narrativas, que deixam transparecer como se inserem em um complexo imaginário.
22Imagens sobre tragédias são constantes entre as narrativas sobre a história da cidade. São naufrágios ou alagamentos como são chamados no local, entidades das águas que ao mesmo tempo que são ameaças eminentes, protegem o lugar. De acordo com Oneide, Salvaterra é terra protegida, mas houve um episódio específico que arranca pesares sempre que lembrado. A “tragédia da festa de São Pedro”, quando um barco com 150 pessoas que faziam homenagens a São Pedro naufragou. Oneide uma das sobreviventes. O naufrágio do barco é um marco na história da cidade, cada pessoa transmite sua impressão, uma interpretação, um presságio sentido no momento. Eunice não estava no barco, estava em terra, e nos conta sobre o ocorrido da seguinte forma:
O pessoal falam que eles trocaram de santo, tiraram o velho antigo, e botaram um novo. Foi castigo! O pessoal que falam. O antigo que faziam festa tiraram e botaram outro. Pois é, não era! Porque que fizeram isso? Aí tem a desculpa de correnteza, tem isso, mas não é.
- 5 Mais adiante retomaremos mais aspectos da festividade em homenagem a São Pedro, quando trataremos d (...)
23A explicação dada para o naufrágio pelas autoridades em jornais da região foi a de uma manobra equivocada feita pelo condutor do barco. Porém, quando a história é narrada pelos próprios moradores, esta explicação não é suficiente, suas interpretações giram em torno de fatos como o que apresenta Eunice, então a troca da imagem de São Pedro que era utilizada durante a festa causou desgosto ao Santo, que teria castigado quem o homenageava. Outra explicação recorrente é que a cobra-grande que mora na foz do rio Paracauari teria se irritado com o barulho e movimentação das águas e ocasionado a tragédia5.
24Para Mircea Eliade (1992:43) o episódio histórico, por mais marcante que seja não é conservado por muito tempo na memória popular, não alimenta a imaginação, salvo quando o episódio é apreendido pela memória e devolvido enquanto mito. Para esse autor, os mitos são narrativas sobre instantes primordiais, atemporais, “em um lapso de tempo sagrado” (1991:53) e contá-las e recontá-las atualiza o mito e uma certa “condição humana”, “regida por um certo sistema de comportamentos” (1991:55), uma explicação do mundo de quem conta. O que, para ele, também revela uma resistência histórica à imposição de uma história linear, exterior, homogeneizante e irreversível.
25Figura constante nas narrativas dos moradores de Salvaterra é a cobra-grande, várias são as versões sobre sua existência, função e epifania. A cobra-grande é um encantado que tem papel fundamental nas narrativas, saberes e usos dos espaços aquáticos. Ela é tida como mãe dos rios que habita – não existe uma, mas várias cobras, cada cobra toma conta de um rio ou braço dele, sua morada. Diversas são as formas de reiteração da sua existência, fotos na internet, matérias de jornal, pesquisadores que encontram com ela nos estudos em rios da região.
26As narrativas fantásticas são formas de decifrar os acontecimentos da vida. Elas intercalam fatos rotineiros e grandes acontecimentos sob olhares peculiares e imaginativos. As experiências tidas e compartilhadas no espaço determinam as formas de relação com o tempo e o lugar. Nas memórias, os rios são sempre partida, chegada, estadia. Adornam as paisagens evocadas nas narrativas, mas também tem vozes, sua sabedoria guarda muitos mistérios: os santos, os “seres do mar”, cidades encantadas, navios assombrados; assim como os saberes das artes da pesca, dos rituais, das viagens, do ritmo da vida cotidiana.
27De acordo com Bachelard, “a água serve para naturalizar nossa imagem” (Bachelard 1997:23), harmonizá-la a um natural. A profundidade do reflexo aquático sugere o infinito do sonho, o infinito fazer-se da imagem. Somos naturalizados pela água na medida em que a humanizamos. O “reflexo um tanto vago, um tanto pálido” abre as portas para a imaginação, para a formação de imagens que ultrapassam a realidade, que cantam o real (ibid:18). É nesse sentido que, ao mirar-se nas águas, uma cidade se encanta. Adere a um devir, se insere em um movimento natural a qualquer sociedade, “esse ato de criar e recriar é a pulsão da interação, da relação recíproca, nas quais se encontram instintos e afins” (Eckert 2009:90).
28Encantados como a cobra-grande são seres que figuram o quadro das entidades mediadoras entre o mundo dos deuses e dos humanos (Maués 2005:262). Da relação entre o mundo do humano, o não-humano e o sobrenatural nasce o encantado: encanta-se o real. É a partir desta dialética da imaginação (Eckert 2009:94) que temos o imaginário, que não nega o real, mas o afirma, o contém e o ultrapassa. Quando a cidade conta de si mesma é como a cristalização do mirar-se nas águas, a palavra nasce da contemplação da cidade no rio. As palavras evocam a imagem-reflexo da cidade, que como nas águas é incerta, sempre por fazer-se na profundidade do ato narrativo onde o tempo é distendido, é o tempo de uma identidade de si relacional, que deixa para trás a rigidez de classificações e abre-se ao “círculo hermenêutico, a palavra do mundo em sua circularidade e reciprocidade” (Rocha; Eckert 2010:124).
29De acordo com Ana Luiza Rocha e Cornelia Eckert ao investirmos em narrativas de trajetórias e itinerários dos habitantes na cidade como procedimento metodológico, “o pesquisador, mediante seu narrador, agencia uma interlocução para arranjar um cenário de evocações em que o habitante pode ‘transcriar’ imagens e formas de ler a si na cidade refigurada no tempo da narrativa” (2010:122). Por isso memória e imaginação não se dissociam.
30Ouvimos de diferentes pessoas que há muito tempo atrás o arquipélago do Marajó não havia rios, era uma ilha chata e arredondada, seu interior era mais baixo que as laterais e abrigava uma grande área alagada e pantanosa que recolhia a água da chuva, diversas eram as espécies de animais e plantas que a habitavam. Até que uma grande seca assolou a ilha, o que fez com que os animais que dependiam das águas usassem das mais diversas estratégias para sobreviver. As cobras grandes, dominadas espírito das águas, começaram uma empreitada para viabilizar passagens para o mar nas mais diversas direções. As maiores cobras deram origem aos grandes rios que serpenteiam a região, e as menores aos furos e igarapés. Foi esse processo que possibilitou o povoamento da região.
31A escassez da água desorientou o ritmo daquele ecossistema, fazendo com que as cobras mediassem o contato entre o interior da ilha e as águas que a cercavam. Até hoje “cada rio tem uma mãe, que é uma cobra, que a gente deve respeito quando passa”, disse Cabo. O aparecimento de furos, braços de rio e igarapés ainda é comandado por elas. A essas mães também está intimamente associada à manutenção da vida no lugar. De acordo com Cabo:
A mãe do rio né. Que eles falam é as cobras que se criam no fundo. Inclusive aqui naquela ponte pra lá que tem, um dia desse até ela tava na internet. Uma cobra grande que mora lá naquela ponta, lá do outro lado que atravessa. Inclusive veio um pessoal de uma pesquisa de petróleo, uns americano aí, e viram ela lá na casa dela, no poço dela, morada dela.
Com o tempo vai caindo, com o tempo já caiu um bom bucado, é ela que derruba, disque. Porque ela talvez vai crescendo, fica com raiva do movimento que passa lá por cima, zuada de motor. Naquela época não tinha isso, né, era sossego, né. Não tinha motor, era só remo. Hoje é zuada de motor pra cima e pra baixo. Na travessia, pra quem vai pra Mãe do Rio, pras fazenda. Sabe como é! Hoje em dia não tem mais esse respeito. Aí vai caindo, lá na ponta tinha umas palmeira bonita agora não tem mais. Já caiu um bucado, um bom bucado.
32De acordo com Diegues as serpentes, assim como os dragões “são a personificação da força da água, tanto da destruidora como da doadora da vida” (1998:14). A serpente remete ao impulso da vida e da morte, estando atrelado a isso todo seu sentido mágico-místico-religioso (ibid:15). Neste trecho podemos perceber que o silêncio das águas e nas águas, característica das águas mortas é sinônimo de vida para a cidade, que a mãe de seu rio está em paz e não ameaça a manutenção da vida, inspira uma ressonância do rio e de seus filhos através do temor, mas também do respeito. Faltar com ele implica em uma quebra rítmica e desarmônica, implica arcar com as consequências da quebra da sacralidade. Vem dos rios a vida, sua manutenção e morte, ou castigo.
33De acordo com Ivete Nascimento (2006:28): “O sentimento do ‘respeito’ como um dos valores mais relevantes ao modo de vida no passado” estende-se a todas as esferas da vida. É o respeito das gerações mais jovens pelos mais velhos, o respeito pela natureza, seus tempos e seus ritmos. É a forma do cuidar: há o castigo, mas também representa proteção, pois há a cura. “O que persiste, acima de tudo, é o sentimento ambivalente de medo e fascínio para com as águas que desintegram e simultaneamente germinam, que matam e cooperam no nascimento” (Eliade 2010:167).
34“Água é vida”, essa foi uma das frases que mais ouvimos em campo. Várias culturas têm a água enquanto “elemento primordial”, ligada a uma cosmogênese, a uma cosmogonia do mundo e de todas as coisas, mas não somente. A ela está relacionada, ainda, a manutenção da vida na terra, a cura, a regeneração e a morte, a ameaça constante, o castigo divino, como no caso do dilúvio. Salvaterra é exemplo desse movimento das águas nessa constante reinvenção da vida, como afirma Mircea Eliade (2010:171), “as águas precedem toda a criação e reintegram-na periodicamente a fim de ‘purificá-la’, enriquecendo-a ao mesmo tempo com novos estados latentes, regenerando-a”.
35Quantos também não são os que chegam até ali para curar os males do corpo e do espírito? “A pessoa vem amareela, aqui ganha outro aspecto, é por causa do mar”, ponderou Eunice. Segundo Joana, um bairro foi construído ali só de doentes terminais que foram para lá em busca da cura. Houve um senhor vindo do Recife com grave pneumonia, Salvaterra foi indicação de um médico. Quando ali chegou a doença tomava conta visivelmente, as secreções deixaram seu rosto da cor roxa, respiração era quase insuficiente. Instalou-se à beira da praia, montou sua barraca, passou a tomar banho todos os dias assim que o dia clareia na maré para lavar as impurezas. Até hoje está bem, não quer jamais sair dali.
36Assim nos disse Oneide, sobre a associação da água à vida e a morte. Por essa multivalência estão associados às águas diversos cultos, ritos e divindades, que incorporam em si o sagrado cosmogônico e os benefícios relacionados ao elemento – como alimentação, fertilização, saciar a sede – quanto às diversas epifanias locais: manifestações e/ou personificações do sagrado que habitam e guardam lagos, rios, igarapés, manguezais, entre outros. Alimentado por uma dinâmica de (re)criação e devoção popular o culto às águas e às divindades à elas ligadas independem da religião estabelecida, “revelando a força sagrada que lhe é própria” (Eliade 2010:163). A padroeira da cidade não podia ser mais simbólica. Da primeira vez que estivemos em Salvaterra, caminhando pelas ruas da cidade encontrávamos a toda hora os sinais que procurávamos. Por vezes sem mesmo procurarmos. Ao nos depararmos com a igreja na orla da cidade, percebemos em sua torre uma pintura, uma mulher de cabelos negros esvoaçantes. Ao seu redor podiam ser nuvens, mas podiam ser águas. A atual igreja matriz está localizada na 5ª Rua, lá em cima uma mulher rege caminhos de barcos. Sobre isso me falou Oneide:
Eles botaram isso pra... porque você sabe que a semelhança da Nossa Senhora da Conceição é Iemanjá, na linha de umbanda, né. Isso no tempo que fizeram essa igreja o senhor que trabalhou, como se diz, o chefe, disse pro frei:
- Se você colocar lá ela em cima coloque uns barquinho ao redor. Porque nem que você não queira ela é a Nossa Senhora da Conceição aqui na terra, mas lá no mar ela é a nossa rainha Iemanjá, rainha do mar. E isto é uma coisa que vocês devem venerar, porque a vida daqui é pescaria, é, então é os barcos, pra ela proteger todo tempo. O protetor dos pescadores é São Pedro, mas ela tem essa semelhança com a rainha do mar.
Pra mim existe todas as imagens, todas: Nossa Senhora da Conceição, Santa Barbara... todas! É milhões de Maria!"
37No Pará, Nossa Senhora da Conceição foi sincretizada à Iemanjá, orixá de religiões de origem africana, associada aos mares, à fertilidade, à pesca. A santa católica acabou ganhando traços inegáveis da orixá, inclusive as cores azul e branco, em que são pintadas as duas igrejas católicas de Salvaterra. Todos os anos, no dia 08 de dezembro há uma festividade em sua homenagem em Salvaterra. “Esse ano o círio moveu céus e mares!”. Demonstrando a inegável relação, Oneide descreveu o círio de Nossa Senhora da Conceição de 2013. Oneide, fervorosa devota sempre fornecendo dicas das ligações a serem feitas. Outro incidente em que se entrecruzam as imagens de Nossa Senhora da Conceição e Iemanjá me foi contado por Camila, sobrinha de um importante pai de santo de Salvaterra, já falecido. De acordo com ela, Iemanjá passava sempre à meia noite pelas ruas da cidade, como uma visagem, mas todos sabiam que era ela, vinha do mar velar o sono de seus filhos da terra. A outra versão dessa narrativa me foi contado por Orlando:
- 6 A portuguesa a que se refere Orlando é Andreza, por anos incumbida do trabalho de manutenção e orga (...)
A santa andava de noite, porque de manhã, essa portuguesa6 tirava carrapicho do manto dela, isso não é lenda, muita gente viu. Ela andava abençoando a cidade.
38À meia noite a figura feminina sai das águas ou da igreja, de seu templo sagrado, trazendo a benção aos seus filhos. As imagens se sobrepõem e se evocam. Muitas são as características que comungam, atribuídas às mulheres e águas: a fertilidade, a gestação, a alimentação, entre outras, e pelas mesmas características são sacralizadas, emergindo como donas do mistério da vida, mães d’água. “Só tem mãe, né, nunca ouvi falar em pai”, disse Marcíria quando enumerava as mães/donas das moradas encantadas. A cobra citada na seção anterior é também mãe, remonta um feminino arquetípico.
- 7 Mundiar é capacidade dos encantados que se refere a fazer uma pessoa se perder na mata, ou atrair a (...)
39As diversas águas também dão diferentes características aos encantados que delas nascem. Em igarapés e poços há sempre grande incidência de aparições de Iaras ou Oiaras, mulheres que cuidam desses espaços, mas também encantam, seduzem e mundiam7. A elas é atribuído tanto o bem quanto o mal, ou a simples aparição. Já em rios, seus braços e lagos, há sempre o elemento antropomórfico, cobras paridas por mulheres, mulheres transformadas em sapas, peixes, ou flores, entre outros seres. No mar há Iemanjá e a Mãe de Fogo, que assombra pelo enigmático aparecer e desaparecer nas paisagens. Cultos e ritos são destinados a elas, como o Círio de Nossa Senhora da Conceição e a festa de Iemanjá, que acontece na Praia Grande, uma das praias da cidade, no mesmo período do Círio, sem falar nas inúmeras oferendas, sacrifícios e rituais de cura feitos nos seus domínios.
40As mães dos espaços aquáticos compartilham as características femininas e também àquelas das mulheres de Salvaterra, não apenas no que diz respeito a capacidade da criação e manutenção da vida, mas também à força e resistência perante a constante ameaça de subjugação, dominação, domesticação e aculturação. Traço importante e marcante da cultura da região marajoara, o culto ao feminino está marcado em registros arqueológicos (Schaan 2006:20), que supõe sua existência e ainda seu desaparecimento de registros históricos, rastro das lutas e conflitos étnicos por que passou e passa ainda hoje o território. São memórias e saberes cuja existência depende da secular tática da narração, do compartilhamento oral, e, principalmente, da experiência sensível nos leitos que os acolhem.
41O respeito a esses seres, e consequentemente a suas moradas, se dá em decorrência das dádivas por eles concedidas, no que diz respeito à fertilidade e fartura nos “encantes”, e auxílio nas horas difíceis. Mas, também, em decorrência de um temor frente às possíveis sansões que os abusos cometidos com as coisas do lugar podem ocasionar. A permanência, tanto dos recursos, quanto das próprias pessoas no lugar “fica condicionada a uma atitude de respeito e ao compromisso de não ‘abusar’” (Wawzyniak 2003: 44). As atitudes de respeito dependem muito do temperamento de cada encantado e dão origem a ritos seguidos à risca pelos que acreditam em seu poder. Como por exemplo, orações, pedidos de permissão e licença para entrarem nas águas, pescarem e nadarem, e, até mesmo, presentearem o encantado por uma solicitação atendida, procedimentos relatados tantas vezes em campo pelas pessoas.
42O silêncio é uma característica importante dos encantes, como observar Seeger no caso dos indígenas Kisêdjê, som e silêncio fazem parte da recriação dos espaços (2015:147), participam de suas significações. Para eles o silêncio marca o desconhecido, o potencialmente destrutivo, guarda um mundo liminar onde os seres, humanos e não-humanos constituem relação (2015:142). Os encantes são também espaços liminares e o silêncio é uma das formas de cuidado e respeito. Inclusive um dos locais de morada da grande cobra ganhou o nome de Sossego, em referência ao descanso do ofídio, cuja fúria poderia levar ao fundo Soure e Salvaterra. Como observou Wawzyniak (2003:45) há um empenho em decifrar a personalidade e o comportamento dos encantados para prevenir castigos e determinar o proceder nos espaços encantados. Falar em personalidade significa dizer que, mesmo que muitas vezes corporalmente diferentes, esses seres possuem “intencionalidade análoga à humana” (ibid.) e traços típicos que constituem seu perfil psicológico. Conhecê-los envolve a dedicada observação cotidiana das relações ocorridas no e com os espaços praticados continuamente, e as mudanças que nele ocorrem ao longo do tempo.
43Os encantados estão relacionados às experiências com os elementos naturais, que envolvem não somente o uso, mas também a observação, a contemplação e a interpretação dos sinais dados por eles numa paisagem de pertença. Movimento como a sazonalidade, a maré, os ciclos e tempos são estudados diariamente por meio do contato físico e intelectual, o que confere aos habitantes um conhecimento profundo sobre eles. Isso envolve também uma adaptabilidade não somente das águas, plantas e animais às ações humanas, mas das ações humanas às agências não-humanas e sobre-humanas. Estabelece-se, assim, uma comunicação complexa e sensível. Esses movimentos, além das respostas dadas às investidas humanas de toda espécie sobre o espaço, são mensageiros e/ou mensagens interpretadas e decodificadas no contexto no qual se pratica uma paisagem.
44Em narrativas sobre encantados, a sacralidade é conferida não só à entidade, mas ao próprio espaço aquático. A desobediência às regras dos espaços encantados nunca fica impune. As consequências dizem respeito à dessacralização do lugar, afastamento dos encantados e banalização de uso e acesso aos recursos ali existentes, ocasionando o desequilíbrio que pune as pessoas através da escassez, erosão, entre outras consequências. Mas existem outras punições de caráter mais individual, o que denota graus de intervenção no ambiente mais e menos aceitas por donas e donos do lugar, também indicação das regras e saberes nele necessários, como conta Orlando:
Ainda mais quando começa a perseguir, né. Pra querer fazer o que Deus não quer. Já quer fazer o que a natureza não permite. Não é verdade? Aí sim a dona, o dono se invoca: “ah já quer fazer o que eu não quero, né”. Por exemplo, chega lá um querendo construir, só que não é pra construir nada ali. Chega lá você olha, a pior é que vai mexer, jogar pedra no bicho, aí se zanga, né. Ele se zanga, ele malina.
- 8 É importante ressaltar que não é só por meio de punições que os encantados se manifestam, pois há o (...)
45Essas punições8, como diz Wawzyniak, são resultantes do “descumprimento de convenções que orientam como os indivíduos devem portar e circular em determinados espaços, horários, a quantidade de animais a serem abatidos na caça ou na pesca” (2003:45). Algumas dessas punições exigem tratamento realizado por pajés, outras são pontuais, outras irreversíveis, no caso das pessoas que, encantadas, não voltam mais ao convívio da comunidade sob forma humana. O que mostra que os elementos simbólicos funcionam, também, “como mecanismos de regular o uso e realizar a proteção de ambientes aquáticos” (Marin 2005:3), contribuindo com a (re)produção da vida e da cultura local.
46Assim, “os espíritos efetivamente agem como agentes de proteção ecológica” (Posey, 2001:283). Identifico em Salvaterra, o que diz Rafael Devos (2003) sobre os “espíritos” no Bairro Arquipélago, em Porto Alegre: os encantados revelam a apreensão social dos recursos naturais e uma “postura ética de uso do ‘bem comum’ que essas narrativas veiculam” (Devos 2003:21). Porém ao contrário do que pensa sobre o caso gaúcho, acreditamos que esses espaços devem ser sim pensados como espaços de natureza, já que é assim que pensam seus habitantes, o que não inviabiliza sua concepção enquanto um espaço público de uso comum, como o autor sugere. No que diz respeito a essa questão é necessário uma reformulação da noção de natureza, em que cultural e natural não podem ser compreendidos a partir de uma cisão, pois são lugares onde as relações entre espécies são históricas e constitutivas. É imprescindível considerar que essas noções só podem ser compreendidas a partir de sua conexão, como sugere Donna Haraway com o termo natureculture (2003, 2008).
A água pra gente é o alimento, sem ela a gente não pode viver. Eu gosto mais de água doce, porque a gente toma essa água e é bom pra peixe, têm muitos bichos que dependem dessa água, né, a capivara, o jacaré, todos esses bichos que são de beira de rio tomam água doce!
47Assim falou Lélio, sobre a importância da água em sua vida. Ainda ao indicar sua preferência pela água doce; os peixes e benefícios que ela traz, naturalmente articula nossas necessidades a de outros animais, reconhecendo sua importância para as diferentes espécies. Muito da carga de simbolismo atribuída à água é também decorrente dessa necessidade de satisfação vital da alimentação, que iguala os seres vivos. Nessa relação o elemento crucial é a dádiva (Mauss 2003). As trocas entre humanos e águas extrapola a dimensão utilitária e funcional e se estende a uma relação de respeito em que o dar, o receber e o retribuir estão imersos em simbolismo e afetividade, que regulam as formas de lidar com o ambiente em termos simbólico-práticos, com forte caráter ritualístico.
48Em função da grande importância da atividade pesqueira à economia de Salvaterra, a água que alimenta e fertiliza é recorrente nos diálogos com interlocutores. A pesca é a atividade econômica mais ligada à água, e marca a vida material e imaterial das pessoas na cidade – mesmo dos que não estão ligados diretamente a ela – que vivem submersas em um universo simbólico permeado por elementos que remetem à pesca. Para além da utilidade cotidiana da água há toda dependência econômica dos recursos dela advindos. Os peixes, os mariscos, entre outros, são os principais pratos da cozinha marajoara, como também dão sustento às famílias no local desde tempos imemoriais.
49“Aqui a vida é pescaria”, disse também Domingos, os rastros dessa atividade estão por toda parte, redes, barcos, âncoras. Esta atividade é desenvolvida durante o ano todo e seu horário segue uma dinâmica própria, marcada por um tempo dialógico, da comunicação entre ritmos das águas, dos peixes e dos humanos. Há o tempo das águas grandes e das águas mansas, que correspondem respectivamente ao inverno e ao verão, que instituem dinâmicas diferentes não só ao trabalho com a pesca, como para o transporte e se espalha por toda a cidade, se conjugam os ritmos, como observa Sautchuk na vila Sucuriju, que também vive na confluência das águas do Amazonas e do Atlântico (2011:87). O horário de trabalho e de repouso é estabelecido em decorrência do fluxo e refluxo das marés, e assim, estruturam o dia-a-dia, um ritmo cotidiano da cidade.
50Várias narrativas dos moradores têm origem na prática da pescaria e ecoam em toda a cidade. Conseguimos reconstituir várias narrativas a partir de mais de um narrador, dentre pescadores e não pescadores, como que juntando peças de quebra-cabeças. As experiências dos pescadores nas águas são responsáveis pela extensão da cidade nos rios. É do lado de lá que eles percebem e contemplam a cidade. Não somente suas narrativas carregam as águas para terra, como também as divindades que os guardam, peixes e águas, os hábitos alimentares e, ainda, toda uma forma de manejo dos recursos naturais.
51São Pedro é padroeiro dos pescadores, em junho há uma grande festa em várias localidades maraajoaras em sua devoção. Em Salvaterra, mesmo não havendo uma igreja específica com seu nome, ocorre uma grande procissão fluvial organizada em parceria entre a Igreja e os pescadores. Para São Pedro os pescadores clamam por fartura de pescado, por uma boa e tranquila pescaria. É também em decorrência da atividade pesqueira que são atribuídas características à água doce e salgada, escassez e abundância respectivamente. Junho, o mês da festa de São Pedro, é o mês em que o verão se instala e as águas salgadas do mar entram na Baía do Marajó. Neste período, há mudanças não somente no gosto das águas como na coloração e na quantidade e qualidade do pescado que entra na baía. A mudança nas águas é sentida também no bolso e na mesa.
52A intensificação da pesca nos rios da Amazônia faz com que o pescado não chegue em grande quantidade na Baía do Marajó nos meses de inverno, só a memória guarda os tempos dos grandes peixes das águas doces, no tempo da fartura (Nascimento 2006). Hoje a maior parte do pescado para comercialização vem do oceano Atlântico com o recuo dos rios. Essas são as águas esperadas com ansiedade por todos. Mas, mesmo com o avanço da pesca industrial, as duas estações continuam rendendo o pescado à região como explica Manoel, filho de Eunice:
Teve uma época que disseram que vinha um tsunami pra cá, uma galera vendeu casa e foi embora, depois passou um tempo eles voltaram. Porque o Marajó é banhado pelo oceano Atlântico, Soure fica escondido, mas Salvaterra pega de frente. Ele abre aqui. Esse rio aqui ele é tão rico de peixe que ele entra aqui e sai lá na Ponta Fina, que é outra saída. Entra peixe por lá e por aqui também. Pra desovar aqui dentro, aqui é mermo que ser um aquário, de reprodução, ele entra pra desovar e depois sai de novo. Então no inverno e no verão não falha. Aí pra dentro é filhote, é mero, tudo entra pra dentro e se esconde. Tem tudo aí pra dentro, tem cobra, jacaré-açu, tem tudo!
53Manoel falou sobre a fartura nas águas do Marajó quando começamos a perguntar sobre as riquezas presentes nelas e as histórias que trazem. Repetimos a história que as ilhas do arquipélago estariam dentro d’água, ele disse que sim, e relacionou a fartura e o movimento das águas e dos peixes nos rios que envolvem a cidade atestando a veracidade da narrativa. O peixe é símbolo de vida e fecundidade (Diegues 1998:14), é associado ao nascimento e à restauração, reforçando as características associadas às águas. Neste sentido, o peixe, não é um simples recurso, ele próprio, cada espécie, detém suas narrativas, características e encantos. A diversidade dos seres que habitam o fundo das águas estão explícitas no comentário de Manoel, que revela a complexidade da vida nas águas e de sua apreensão. Ele indica também os limites e extensões da vida nas águas, e dá a entender o quanto o movimento das pessoas está intimamente ligado ao movimento das/nas águas, dos mais variados seres em uma relação cosmológica que pressupõe um microcosmo de habitação, a casa.
54Quem nasce em Salvaterra é “filho” de lá, “nós somos natural e filho daqui” disse Domingos; quem a escolhe para viver, ali “se planta”; a criança quando acaba de nascer está “verdinha”. Entre terra e água sabemos que foram os rios que habitaram de pessoas aquela terra, e ainda que “esse rio vai embora, rio Paracauari, nós tamo dentro, Soure e Salvaterra, dentro do rio, não sei se você já ouviu falar”, como mencionou Oneide. Da relação primordial que trouxe a vida ao território podemos constatar a íntima relação entre os dois elementos.
55Heidegger, na conferência “Construir, habitar, pensar” aponta a relação dos atos que dão título ao discurso como relação originária do ser do humano no mundo. Para o autor, existir “consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre essa terra” (Heidegger 2001:03). Todo material que há entre terra e céu possui essa potência primordial de habitação, porém as águas estão infiltradas pela atmosfera, principalmente quando pensamos na umidade amazônica, por todas as superfícies e subterrâneos terrestres, elas em sua potência de vida também vibram e seguem seu vigor. “Sem a água ninguém vive, né. Sem o líquido”, disse Martinho.
56Os moradores de Salvaterra habitam a terra, mas também a água. Como habita, a água se deixa ser habitada. Ao percebê-la dessa maneira, é possível ver a expansão dos limites da cidade da faixa de terra para a água e vice-versa. A cidade está nas águas porque está nas pessoas, as constituem biológica e simbolicamente. A água é também morada da terra, do céu, da comunidade e seus deuses. “Todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (Bachelard 1978:200), por isso a água também é morada, “o não-eu que protege o eu”, segundo Bachelard (1978:200): o verdadeiro ponto de partida da imagem.
O que eu mais gosto aqui é a tranquilidade. Aqui é um lugar muito tranquilo pra se... não pra sobreviver, né, emprego não tem, se não for emprego da prefeitura. É devido o lugar que é próprio pra se viver, que é um lugar tranquilo que o pessoal fica despreocupado com certas coisas (Martinho).
57De acordo com Martin Heidegger, a morada é onde a casa é construída, edificada (Heidegger 2001:02; Bachelard 1978:209), o abrigo é onde o ser se deixa existir e existe na liberdade de se deixar ser, preservado do dano e da ameaça, ou seja, resguardado (Heidegger 2001:03), entregue ao seu vigor de essência. A morada é o lugar do cultivo do ser. É preciso demorar-se para transformar o espaço e para compor a passagem do tempo, e por eles sermos transformados e compostos. É assim que vão se metamorfoseando espaço e lugar entrelaçando, compondo o ritmo da existência. O espaço é quantificado, praticado, descoberto, mistério; o lugar é abrigo, morada, estadia, é qualificado. Delimitamos o espaço e cultivamos um lugar. Habitamos e construímos o lugar porque por ele somos construídos e habitados. É onde criamos nossos hábitos, o hábito é constituído das nossas conversas com as coisas, são inscrições de nós nas coisas e das coisas em nós ritmadamente.
58Sempre que tínhamos oportunidade perguntávamos às pessoas que imagem mais representava a cidade. As imagens descritas falavam muito sobre o observador, suas ocupações diárias, por exemplo. Os pescadores em especial respondiam, em unanimidade: a cidade vista do mar, a cidade que se revela por detrás do farol. A pesca dá bases para a demarcação de territórios objetivos e subjetivos, representa o cenário onde são estabelecidas relações e construídas subjetividades.
59Não coincidentemente o ponto de quem observa essa imagem é um ponto em comum de caminho para pesca de todos os pescadores artesanais. A partir deste ponto se encaminham em diferentes direções. Quando de volta à cidade, em épocas de luz elétrica escassa, era esse farol que indicava a proximidade de casa. Rumo ao farol vão ao encontro do habitar das águas, habitar da terra, ao elo da relação de humanos e espaços habitados, seus lugares. Em uma tarde de maio conhecemos Silvando, comerciante dono de uma loja de materiais de construção, pescador de coração, ao descrever a imagem ofereceu-nos uma carona à configuração de sua paisagem, levando-nos ao farol para que de lá víssemos a cidade. Agarramos a oportunidade, nos deixando levar pela apreensão das paisagens do outro através das experiências ricas e sensíveis em campo.
Imagens do Farol de Salvaterra
Fonte: Peixoto 2014.
60Os pescadores descreveram imagens de quem olha a cidade da água e através dela entendem Salvaterra, evidenciando uma imagem compartilhada, um ponto de vista, um ponto de identificação e pertencimento constituído pelo olhar de cada um. As imagens que nascem do seio da relação com o território são narrativas (Achutti 1997:14), que transmitem informações objetivas sobre o lugar e sobre a pessoa que o habita, mas também evoca um universo subterrâneo, o imaginário.
61O farol está localizado em frente à cidade em uma pequena ilha, além das histórias da pesca o farol também guarda muitas histórias sobre os amores de Salvaterra, abriga há muito tempo romances clandestinos. Todas as pessoas que fizeram parte desta pesquisa estão ligadas aos rios de alguma maneira, são herdeiros de um extenso e peculiar conjunto de conhecimentos relacionados aos rios. As experiências de cada narrador com as águas estão embutidas nas narrativas, elas podem ser vistas como reflexos dessas experiências, individuais e coletivas. A demarcação dos pontos de observação de cada interlocutor representa a demarcação dos territórios dos grupos onde são estabelecidas suas relações e construídas suas subjetividades, assim como o papel dos rios em suas vidas. O espaço da cidade é vivenciado de variadas maneiras, portanto é constituído a partir da complexidade dessa diversidade.
62Oneide alertou-nos:
Nós temos o farol bem ali, naquele farol - ninguém acredita! Eu disse: tu quer acreditar tu vai lá no farol e fica sentada lá até meia-noite – criança chora e o galo canta. Você diz: você já foi lá? Já! Uma senhora, ela já morreu, ela era espírita, ela disse:
-Vocês querem ouvir ou vocês querem ver?
Aí nós éramos umas quantas né, namorado, essas coisas. Aí nós fomos pra lá na maré seca, meia-noite! Você jurava que você via criança chorar, cachorro latir, galo cantar. Dava medo? Não. Você procurava todo, o farol inteiro rodando, onde você achava cachorro e gato? Não sei.
63O farol além de ser importante elemento para uma vida positiva, ou seja, a partir da sua funcionalidade para a navegação, guarda os sentidos de um passado que se projeta e constrói simbolicamente as paredes de casa. É nesse sentido que Bachelard (1978) fala sobre a sensibilização dos limites do abrigo, o farol é um importante elemento de localização das paredes impalpáveis que essas pessoas constroem em torno de sua casa, dentro da qual podem sonhar em resguardo.
64Para compreendermos melhor essa ideia temos a contribuir as noções de “aqui dentro” e “lá fora”. Concebidos para servir de alerta aos navegantes de que estavam a se aproximar da faixa de terra, o farol também é sinônimo da proximidade de casa. Os termos posteriormente citados são usados como referência espacial dos episódios narrados. Os termos têm origem na pescaria, a pescaria de dentro é próxima à faixa de terra da cidade, nos domínios dos rios. A pesca de fora designa a de alto mar, em que o pescador se afasta da linha de costa a perder de vista. “Lá fora”, portanto faz referência aos episódios ocorridos no mar, e “aqui dentro” aos ocorridos nas proximidades, tendo sempre o farol como referência, ou para dentro dos rios, braços e lagos no sentido do interior do arquipélago.
65Não por acaso a maior parte das epifanias têm origem no território habitado. Poucos foram os episódios narrados sobre visagens em alto mar, enquanto igarapés, ilhas próximas a cidade e braços de rio que levam ao interior são povoados pelas encantarias. As imagens ligadas ao “lá fora” em sua maioria têm ares terrificantes e amedrontadores. Como é o caso da expressão “o mar não tem cabelo”, o mar não oferece suporte, “não tem onde se segurar” quando acontece um alagamento ou acidente. É como se “dentro” e “fora” indicassem os limites de casa, que estão para além da faixa de terra. Apontam, ainda, certa unidade entre os caminhos aquáticos que percorrem as Ilhas do Marajó, ligando em um sentimento de pertença – podemos pensar também em vizinhança – as várias localidades. Dentro dessa perspectiva o farol indica com seu foco as cercas imaginárias de uma casa, até onde se pode perceber sua luz, às pessoas estão em casa, água e terra compõem suas dimensões conexas.
66Na Amazônia, o termo cidade não pode dizer respeito somente à porção de terra ocupada, habitada pelo humano em aglomeração. Deve dizer respeito à porção do território – seja terra, água ou densa floresta – habitada também pelos sonhos, pelo devaneio, pela imaginação que constituem o humano. Entendendo a cidade como “um espaço fantástico onde se manifesta um perpétuo recomeçar de um querer-viver coletivo” (Rocha 2009:16). A cidade é, portanto, construída da ficção e do desejo de ser, de estar, de sair de si e estar no outro, com o outro. A cidade inscreve-se nesse “desejo irreprimível de estar-junto que se estrutura a partir e em torno de um território” (Maffesoli 2001).
67São os afetos, conflitos, a série de dramas sociais vividos no lugar que o delineiam, para além de toda a infraestrutura que a cidade proporciona. A cidade antes de ser constituída pelas entidades e instituições é composta de interações e sensações somente isoladas abstratamente. Os habitantes da cidade não são meros espectadores das transformações e imposições de um urbano devastador. A cidade é constituída dos caminhos tomados diariamente por seus habitantes em direção ao estabelecimento de seus laços, aos (des)encontros.
68Em Salvaterra esses espaços apresentam a extensão da cidade na experiência, e a expansão da casa na cidade, o lugar da habitação, o lar, ultrapassando as dicotomias das relações cidades x rios, homens x águas. Para compreender estas relações faz-se necessário ultrapassarmos a compreensão dos espaços aquáticos como meras molduras da imagem citadina. A cidade não está em uma ou outra margem, mas à terceira (Guimarães Rosa 1988), aquela até onde se expande a experiência de vivê-la. As cidades ribeirinhas são constituídas nas relações que seus habitantes estabelecem no e com o lugar.
69Salvaterra é, portanto, mais do que margem, é encruzilhada de mundos: os das águas – doces e salgadas – com o mundo terrestre, e ainda esse mundo simbólico que dá sentido a todas as coisas que configuram as suas paisagens. As relações entre estes mundos, a alquimia, estabelecem limites moventes, biodiversos, onde os homens e as mulheres desses territórios exercem papel de comunicadores: travessias, pontes, entrecruzam elementos e fecundam a vida de sentidos. Desta troca emergem subjetividades, estabelecem-se territorialidades, e a atmosfera que a engloba. Adentrá-la requer atenção aos rastros deixados pelas águas no cotidiano dos que a experienciam.